SUBJETIVIDADE E ESPIRITUALIDADE

Introdução

Uma das áreas de pesquisa do nosso mestrado em filosofia na UFPE é a subjetividade. E se diz que o problema da subjetividade começou a preocupar os filósofos principalmente a partir dos tempos modernos E o grande responsável por esta problematização, teria sido Descartes, com o seu “penso, logo existo”. A verdade é que, desde o século XVII, até hoje, nem os filósofos, nem os psicólogos conseguiram uma resposta adequada para o que se deve entender por subjetividade, e por sujeito. Por isto a “subjetividade” continua um tema para pesquisa e debate na filosofia, na psicologia, na sociologia e em outras ciências.

Ainda mais ampla do que a discussão sobre a subjetividade é, hoje em dia, a referência ao campo da espiritualidade. “Espiritualidade” é um conceito em moda, no linguajar de muita gente. Mas o que se entende por “espiritualidade” apenas está claro e distinto na cabeça de poucos. Pois, nas mais diversas menções a este termo, “espiritualidade” é um conceito vaporoso, sem limites definidos. Para alguns parece simplesmente uma outra palavra para o que, até agora, se denominava por religião. De fato, é um conceito relativamente recente, e deriva da palavra “espírito”. E quem se atreveria definir o que é o “espírito”? Se soubéssemos o que é “espírito”, seria fácil definir a “espiritualidade”, pois seria viver simplesmente conforme as características do espírito, objetivando em nossa vida a essência do “espírito”. Mas, vejam as dificuldades de compreensão quando se fala em “espírito”. Há pouco tempo foi demitida uma bibliotecária, de uma Instituição de Ensino Superior no Recife, porque classificara a “Fenomenologia do Espírito” de Hegel entre os livros espíritas; e há poucos dias uma Diretora de escola em Rio Doce levou uma queda na rua, e está convicta que foi empurrada por um “espírito”. Por isto, penso, que existem certos preâmbulos de compreensão que se deve ter em relação ao que se entende por espiritualidade em nosso tempo, antes de se decidir andar pelos caminhos de uma espiritualidade adequada aos dias de hoje.

Em primeiro lugar, é preciso estar consciente que, no passado, reflexões sobre a espiritualidade eram quase exclusivas no âmbito das religiões. E falar em “espiritualidade” logo lembrava a espiritualidade beneditina, franciscana, carmelita, jesuítica, com os célebres Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola; ou a espiritualidade medieval de desprezo do mundo da Imitação de Cristo de Tomás de Kempis. O autor da “Imitação de Cristo” é pessimista em relação ao ser humano, dizendo que: toda vez que foi para o meio dos homens voltou menos homem. Por isto recomenda um afastamento do convívio social. Também podem ser inspiradores de espiritualidade os grandes místicos, como São João da Cruz, Tereza de Ávila, Mestre Eckhart. No Ocidente pouca importância se dava à mística dos sufis muçulmanos e dos yoguis hindus. Tradicionalmente os filósofos e os ambientes acadêmicos laicos se mostravam avessos a uma proposta de espiritualidade. Por isto, talvez, até seja surpreendente, para alguns presentes, que o Departamento de Filosofia da UFPE se proponha a refletir sobre um tema destes. Mas, quem acompanha os movimentos de pensamento e espiritualidade atuais, saberá que, ao redor do mundo todo, há inúmeras iniciativas, que consideram essencial que a humanidade de hoje construa, como base de sua ação na terra, uma praxis espiritual. A meu ver, a problemática da “espiritualidade”, no âmbito da filosofia, faz parte da metafísica, da antropologia filosófica e da filosofia da religião. De fato, a preocupação com o homem, e suas religiões, não é propriamente tão nova assim. Quem, nos tempos modernos, introduziu de forma definitiva o conceito “espírito” na filosofia foi Hegel, com sua Fenomenologia do Espírito. A filosofia de Hegel, sob diversos aspectos, revolucionou concepções anteriores.

Conversa com os homens

Mas não vou me ater aqui, para continuar minha reflexão, a textos de Hegel. Vou recuar um pouco. E, mesmo que possa parecer, para alguns, um tanto estranho, vou entrar, mais especificamente, na minha reflexão sobre a espiritualidade com um texto de Voltaire, um filósofo com fama de sarcástico em relação às questões religiosas.

No século XVIII, Voltaire escreveu um texto com o título “Micrômedas”. Neste texto, ele imagina um jovem gigante, inteligente, de um planeta da estrela Sírius, viajando pelo universo em companhia de um anão de Saturno. Chegando à terra, o habitante de Sírio entra em conversa com os homens, que, diante da estatura dele, se pareciam como minúsculos “átomos pensantes”. E o habitante de Sírio começa a conversa, dirigindo-se aos homens, dizendo: “Ó átomos inteligentes, em quem aprouve ao Ser Eterno manifestar sua sabedoria e poder, deveis, sem dúvida, experimentar as mais puras alegrias em vosso globo; porque tendo tão pouca matéria, parecendo puro espírito, passais certamente a vida a amar e a pensar; é nisso que consiste a verdadeira espiritualidade. Em parte alguma encontrei a verdadeira felicidade, mas, sem dúvida, aqui a encontrarei”. A essas palavras todos os filósofos sacudiram a cabeça; um deles, mais franco que os outros, confessou de boa fé que, à exceção de um pequeno número de habitantes, mui pouco estimados, todos eram um conjunto de loucos, malvados e infelizes. “Temos matéria mais que suficiente para causar-nos muito mal, se é que o mal vem da matéria; e espírito demais também, se é que o mal vem do espírito. Saberá o senhor que, no momento mesmo em que lhe falo, há cem mil loucos de nossa espécie, que usam chapéu, a assassinar cem mil outros animais, que usam turbante, (a assassinar ou a serem assassinados); e que na terra inteira é isso que se vê desde tempos imemoriais?” O habitante de Sírio estremeceu, e perguntou qual poderia ser a causa de tão terríveis lutas entre animais tão mesquinhos. Trata-se, respondeu o filósofo, de algum monte de lama do tamanho de seu calcanhar... A questão é de decidir se o mesmo pertencerá a um dado homem que se chama Sultão, ou a um outro que, não sei por que, se chama Imperador... – “Ah! Infelizes! exclamou o de Sírio, com indignação, como se pode conceber tal excesso de ódio. Tenho ganas de dar três passos e esmagar com os pés, em três tempos, esse formigueiro de ridículos assassinos!” - “Não vale a pena, lhe responderam; eles já trabalham suficientemente para a sua ruína... Aliás, não são eles que merecem castigo, mas esses bárbaros sedentários que no fundo de seus gabinetes, enquanto fazem a digestão, ordenam o massacre de um milhão de homens, e, em seguida, solenemente, mandam render graças a Deus.” O viajante sentia-se tomado de compaixão pela pequena raça dos humanos, na qual encontrava tão espantosos contrastes. Disse, então, aos filósofos: “Visto que pertenceis ao pequeno número dos prudentes, e que, ao que parece, não matais ninguém por dinheiro, dizei-me, peço-vos, em que vos ocupais?” Responderam-lhe os filósofos: “Nós dissecamos moscas, medimos linhas, reunimos números; estamos de acordo sobre duas ou três coisas que entendemos, e discutimos duas ou três mil que não entendemos”. O viajante resolveu então interrogar os átomos pensantes sobre os pontos em que concordavam, e perguntou: ... “Qual a distância da terra à lua?” “- Em números redondos, sessenta meios diâmetros da terra”. “- Quanto pesa vossa atmosfera?” O viajante pensava atrapalhá-los com tal pergunta, mas todos lhe responderam que o ar pesa cerca de novecentas vezes menos que um volume igual da água mais leve, e dezenove mil vezes menos que o ouro amoedado...

Micrômedas lhes disse, então: “Visto que sabeis tão bem o que se acha fora de vós, sem dúvida conheceis melhor o que existe dentro de vós. Dizei-me o que é a vossa alma, como formais as idéias”. Os filósofos falavam todos ao mesmo tempo como antes; mas cada qual tinha uma opinião. O mais velho citava Aristóteles, outro pronunciava o nome de Descartes, este o de Leibniz, aquele o de Malebranche, um outro o de Locke. Um velho peripatético disse bem alto e com confiança: “A alma é uma enteléquia e uma razão pela qual ela tem o poder de ser o que é. É o que declara expressamente Aristóteles, à página 633 da edição do Louvre”. E citou a passagem... O cartesiano tomou a palavra, e disse: “A alma é o espírito puro que recebeu no ventre materno todas a idéias metafísicas e que, saindo desse lugar, tem de ir à escola aprender de novo, o que sabia tão bem e não conseguirá saber nunca mais”. – De que vale, disse o animal de oito léguas, que tua alma seja tão sábia no ventre materno, se vens a ser tão ignorante quando tens barba no queixo? Mas, que entendes por espírito? - Que me pergunta? disse o argumentador; não faço a menor idéia; dizem que não é matéria. – Mas sabes, ao menos, o que é a matéria? - Muito bem, respondeu-lhe o homem. Por exemplo, esta pedra é cinzenta, tem uma certa forma e três dimensões; é pesada e divisível. – Pois bem, respondeu o de Sírio, o que é essa coisa que te parece divisível, pesada e cinzenta? Vês alguns atributos, mas quero saber se conheces o fundo das coisas. Podes dizer-me? - Não, disse o outro. – Não sabes então, o que é a matéria.

Micrômedas dirigiu-se, em seguida, a um outro sábio...e perguntou-lhe o que era sua alma e o que ela fazia. “Nada, disse o filósofo malebranchiano; é Deus que faz tudo por mim; tudo vejo nele, e nele é que faço tudo; é ele quem tudo faz, sem que me intrometa. – Se assim é, tanto vale existir como não, responde o sábio de Sírio. – E tu, meu amigo, disse a um leibniziano, dize-me o que pensas de tua alma. – É um ponteiro que marca as horas enquanto meu corpo faz o papel de relógio, ou então minha alma é um espelho do universo, e o meu corpo é a moldura desse espelho; tudo isso é claro.

Um pequeno adepto de Locke estava ali perto, e quando afinal lhe dirigiram a palavra, disse: “Não sei como penso, mas sei que nunca pensei sem o auxílio dos meus sentidos. Que haja substâncias imateriais e inteligentes, não duvido; mas duvido muito que seja impossível a Deus comunicar pensamento à matéria. Reverencio o poder eterno, não me toca traçar-lhe limites: nada afirmo, contento-me de pensar que há muito mais coisas possíveis do que se pensa”... Mas havia também, por infelicidade, um animalzinho de boné quadrado, que cortou a palavra a todos os outros animais filósofos; disse que conhecia todo o segredo, que tudo se encontrava na “Suma” de Santo Tomás; olhou de alto a baixo os dois habitantes do céu; asseverou que suas pessoas, os mundos que habitavam, o seu sol e suas estrelas, tudo era feito exclusivamente para o homem. Ao ouvirem essas palavras, os dois viajantes quase sufocaram de tanto rir...

Ensinamentos do texto

Bem. Até aqui as referências ao texto de Voltaire. Um texto escrito no tempo de Kant e antes de Hegel. Claro, não podemos concordar com tudo que Voltaire escreveu, em outros textos, mas, este texto sobre o “Micrômedas”, nos abre um leque de questionamentos sobre a nossa existência neste mundo e a valoração de nossos conhecimentos e ação no mundo. Segundo Kant, todos estes questionamentos se inscrevem em quatro perguntas fundamentais:

- O que podemos conhecer?

- O que devemos fazer?

- O que podemos esperar?

- Quem é o homem?

Voltaire nos mostra que, de fato, conhecemos muito pouco, nem sabemos como se formam as nossas idéias. Mas, nos alerta que precisamos dos sentidos para compreendermos e conhecermos o mundo. Ainda, desconhecemos muito mais do que conhecemos. Conhecemos algumas coisas do mundo mecânico e matemático, mas pouco da nossa interioridade, da nossa dimensão espiritual.

No que se refere ao “que devemos fazer”, quantos absurdos: guerras, corrupções, intolerâncias, em vez da convivência pacífica, da compreensão, do amor e da compaixão. Quanto às esperanças dos homens, o que nos propõem as utopias, as ideologias, as religiões? Muitos fanatismos, fundamentalismos, reduzindo a nossa compreensão de Deus ao tamanho de nossa minúscula cabeça, e de nossas palavras finitas. E a grande pergunta que fica: Quem é o ser humano? Qual o sentido de sua vida? O que ele deve fazer nesta terra, e o que pode esperar? É neste quadro de questionamentos que se situa, hoje em dia, no meu entender, a pergunta pela espiritualidade.

Em tempos passados, as religiões se julgavam aptas a dar resposta a tudo. Acontece que hoje em dia surgiram novas perguntas para as quais não existem respostas, nem nas filosofias, nem nas religiões. Algumas filosofias tentaram expulsar de seu campo as referências ao espírito humano, e tudo que se referia aos problemas para os quais as religiões propunham respostas. Por isto, falar de espiritualidade numa universidade laica, muitas vezes, era mal visto, e em alguns departamentos ainda hoje é assim, também na UFPE. Por outro lado, cada vez mais se verifica a importância da dimensão de transcendência para uma organização da vida com sentido. Mas, nesta nova ressurgência da compreensão do ser humano, o campo da espiritualidade toma, às vezes, o lugar que cabia às religiões, historicamente institucionalizadas. Há como que um ressentimento em relação ao desvio de muitas instituições religiosas no passado, quando foram coniventes com crueldades, guerras e discriminações, desviando-se de valores espirituais fundamentais para a dignidade da vida humana. Em sua etimologia, a “religião” deveria ser a ponte que liga o vazio existencial do homem aos valores pelos quais aspira na profundidade interior de seu ser. Mas, muitas religiões se perdem, ainda hoje, em rituais exteriores exóticos ao homem de hoje, e em simbologias já não mais compreendidas. Algumas destas religiões falam uma linguagem originária de uma visão de mundo ultrapassada. E muitos antigos fiéis, um pouco mais ilustrados, já não agüentam as rezas,os cultos e os sermões de pastores e padres que não conseguem responder, ou analisar, as novas perguntas e aspirações do homem em nosso tempo. Mas, como “o coração humano não descansa enquanto não descansar em Deus”, na linguagem de Santo Agostinho, busca-se uma nova “religião”, que agora se denomina de espiritualidade. Mas, onde está a base desta nova espiritualidade? Pode-se dizer que esta “espiritualidade” já não é mais uma religião institucionalizada, cultual, com dogmas prefixados doutrinariamente. Busca-se uma espiritualidade viva, inserida na vida do dia-a-dia, que nos permita um contato direto com o transcendente, o divino, donde se espera a resposta para uma vida, com sentido, para a nossa ação e a nossa permanência neste planeta terra. Desta forma, o homem de hoje quer saber, de uma maneira renovada, o que devemos fazer, o que podemos esperar e o que é o ser humano, como já perguntava Kant. Mas, será que o homem de hoje está preparado para construir a espiritualidade que busca, sem a mediação institucional? É uma pergunta.

Evidentemente, para que se possa construir uma espiritualidade, capaz de corresponder aos anseios do homem de hoje, em relação a si mesmo, ao mundo e ao que está para além desta nossa vida, não podemos nos fiar apenas em nosso imaginário. Muitos “homens de espírito” no passado, e hoje, nos deram, e nos dão, dicas ilustrativas para evitarmos novas ilusões. Estes “homens de espírito” não os encontramos apenas entre os “santos” da Igreja Católica, mas os encontramos entre os cientistas, os sociólogos, os psicólogos, os ecologistas, as feministas, os sufis árabes, os yoguis hindus, os líderes religiosos, os teólogos e os filósofos. Enfim, entre eles encontramos profetas, sábios e iluminados. E todos os que dão testemunho exemplar da “experiência espiritual” na humanidade merecem a nossa estima. Mas o que esta experiência espiritual de tantos registra? Nestes registros há também atitudes espirituais que devem ser definitivamente esquecidas, e outras que são, de fato, as raízes da adequada espiritualidade que buscamos. Esta vasta experiência espiritual da humanidade é um desafio para nós. Temos diante de nós um vasto campo de leituras e pesquisas. Pois, quanto mais conhecermos o que a humanidade já fez e ainda faz, de bom e de mal, tanto melhor para construir uma adequada espiritualidade em nossas vidas. Façamos algumas considerações.

A situação atual da humanidade

Como no tempo de Voltaire, ainda hoje homens de chapéu, cawboys (para não dizer Bush), estão matando homens de turbante, e vice-versa. Alem disto, o homem de hoje penetra profundamente no interior da matéria, com uma tecnologia maravilhosa; desvenda os segredos da parte mecânica do corpo humano, mapeando seu genoma. Interfere na genética dos seres vivos, despertando otimismos e pessimismos, substituindo antigas utopias de futuros paraísos, da fonte da juventude, ou de torres de babel, dilúvios e catástrofes apocalípticas. Diante deste poder do homem tecnológico, alguns o acusam de querer “brincar de deus”, outros apenas sugerem cautela, responsabilidade e cuidado para com a terra e a humanidade. Neste quadro de paradoxos, contradições e expectativas, surgem temores, inseguranças, perplexidades e esperanças. De fato, nossa visão do mundo se ampliou. Os espaços se tornaram ilimitados. Deus já não é mais apenas do tamanho de nossa cabeça, um Deus que nos ameaça com o inferno por qualquer desvio. Já não é difícil compreender o que o filósofo Nicolau de Cusa ensinou no século XV. Para Cusa o universo é um absoluto contraído, inscrito no absoluto não contraído, que, para ele, é Deus. Sendo Deus o absoluto não contraído, Ele não pode ser denominado. Deus não tem nome próprio. Ele está para além e para aquém de todo nome. Nenhum conceito deste mundo finito consegue expressar o que Deus é. Os nomes, que as religiões dão a Deus, apenas dizem alguma coisa de Deus. Nenhum é absoluto, único. Por isto, todos os nomes de Deus são válidos. Podemos denominá-lo de Javé, Jeová, Elohim, Eloá, El Shadai, Alá, Brama, Tupã, Thien, Olurum, Espírito Absoluto, etc... Todos estes nomes apenas dizem alguma coisa de Deus, a partir das línguas e culturas dentro das quais são pronunciados. Para Cusa, quando os homens se conscientizarem disto, haverá tolerância e paz religiosa; e uma cultura poderá aprender de outra os valores de suas experiências espirituais.

Outro ensinamento de Cusa é muito profundo: o Universo, como absoluto contraído, está inscrito, como um polígono, no absoluto não contraído, simbolizado pelo círculo. O que sugere o “panenteísmo”, um paradigma nada estranho ao cristianismo, pois o Apóstolo Paulo, no Areópago de Atenas, já pregava, que nós “vivemos, nos movemos e existimos em Deus”(cf. At 17,28). Penso eu, que a espiritualidade que hoje se propõe tem muito a ver com esta compreensão. “O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas”(At 17,24). Outra frase do Apóstolo Paulo!

Como seres finitos, estamos envoltos pelo infinito. Envoltos como que num manto. Neste sentido, não vamos para o céu depois da morte. Nós já estamos no céu! Nossa terrinha, como um grão de areia, nadando no imenso Universo, já está incrustada neste imenso e maravilhoso céu. E quem nos vai conscientizar cada vez mais desta verdade, que está muito além das mesquinharias de nossa vida individual, é a espiritualidade que construirmos e assumirmos para a nossa vida, aqui e agora. E se nos encaminharmos por uma espiritualidade, que vê além das fronteiras de nossa cultura, de nosso momento histórico, de nossos traumas psicológicos, de nossas circunstâncias, de nossas intrigas doutrinárias e diárias, estaremos nos abrindo para o mundo do Espírito Absoluto. E mais uma vez me reporto a Nicolau de Cusa, que, em seus livros “De docta ignorantia” e “Visio Dei”, ensina que Deus está para além do máximo e para aquém do mínimo. Para Agostinho, Deus é o Senhor do Céu e da terra, mas também está mais íntimo a nós do que nós mesmos. E, como este Deus é o Deus da vida, para Agostinho as sementes da vida estão espalhadas pelo universo inteiro. Mas a razão humana, que é o dom mais sublime que Deus presenteou ao homem, deve localizar estas sementes e contribuir para que floresçam. Isto significa que qualquer espiritualidade, que queira ser legítima, deve ser uma espiritualidade que favoreça a vida. A vida em todos os seus níveis: a vida humana, animal e vegetal, pois todos os seres vivos pertencem a um único sistema ecológico e cósmico. E de que forma nós favoreceremos a vida? Amando a natureza. Agostinho nos diz: “Ama, e faze o que quiseres”. O verdadeiro “homem de espírito” leva a sua vida com amor. Pensa, fala e age com respeito, dedicação e responsabilidade. Isto, justamente, significa agir de acordo com o espírito, com espiritualidade, a partir do dinamismo que provém do mais íntimo de nossa natureza. Ter espiritualidade é contribuir na “amorização” do mundo, usando a linguagem de Teilhard de Chardin, de quem, este ano se celebram os 50 anos de sua morte.

Como assinalei acima, a espiritualidade de hoje deve traduzir-se em ação. A espiritualidade não é, apenas, o que poderia deixar a entender o texto iluminista de Voltaire, quando diz que a verdadeira espiritualidade seria pensar e amar. A espiritualidade não consiste, simplesmente, num pensar e num amar abstrato. Também não é mais a espiritualidade dos eremitas, dos que se escondem nos desertos, nas montanhas, ou no interior dos conventos, fugindo do mundo mau e pecaminoso. Os “espirituais” de hoje devem mergulhar profundamente na realidade dos homens e da terra. A espiritualidade de hoje se realiza no ambiente do trabalho, na família, no engajamento político, social e cultural; no engajamento pela justiça, pela paz e na luta por uma vida mais digna para um número sempre maior de pessoas; na preocupação por uma terra mais habitável, mais paradisíaca, pois a “terra e os céus deveriam narrar a glória de Deus”, segundo a compreensão cristã. Ainda a partir desta compreensão cristã, o homem pode conhecer e amar o Deus maravilhoso e invisível observando e mexendo com o mundo visível (cf. Rm 1,20).

Essa doutrina é muito interessante, pois ela sugere que pelo exame, pela pesquisa do mundo material, seja na pesquisa do universo ou da nanociência, tudo nos pode elevar o espírito. Não é necessário viajar aos espaços para admirar a grandiosidade deste mundo, basta contemplar uma flor. Pois em tudo se oculta o mistério da presença divina. E em qualquer atividade nossa, a “centelha divina”, presente em nós, na linguagem dos neoplatônicos, pode alimentar o fogo de nossa espiritualidade.

O interessante é que, para se chegar a uma atitude espiritual, que nos dê sentido na vida, necessita-se do intercâmbio humano. Neste sentido, é bom recordar o que Aristóteles nos ensina: o homem é um ser racional e social. Eu acrescento: o homem é um ser espiritual: racional, social, passional, ambiental e circunstancial. A verdadeira espiritualidade não pode dispensar nenhuma destas dimensões de nosso ser. Vejamos:

Como seres racionais: Para corresponder ao que eu sou, devo alimentar uma grande curiosidade por conhecer. Conhecer o mundo físico, psíquico, social e espiritual. Quanta coisa maravilhosa os cientistas estão descobrindo! Freud me ensina alguma coisa? Ótimo! Marx me ensina alguma coisa? Vamos aprender! E os “homens de espírito”, o que eles dizem? Ensinamentos profundos que calam no nosso interior! Vamos lê-los, meditar suas sentenças. E quem são estes “homens de espírito”? Apenas para mencionar alguns, mais próximos a nós, por exemplo: Albert Schweitzer, Gandhi, Martin Luther King, Helder Camara, o Dalai Lama e tantos outros, que escreveram textos que podem alimentar profundamente nossa espiritualidade. Da síntese de tudo que nos dizem teremos que fazer uma opção ativa para a nossa vida. Uma opção fundamental em nossas vidas. Ninguém pode contentar-se em ser apenas imitador ou intérprete da vida ou do pensamento de outra pessoa. Nós somos dotados de uma razão individualizada nesta terra, temos uma subjetividade que somente é nossa. E, perante a qual somos responsáveis. Por isto, na vida terrena, deveríamos ser capazes de fazer as nossas sínteses, nossas opções, levar a nossa vida de forma individualizada. Não me parece que uma vida tenha sentido, quando apenas pensamos o que os outros pensaram, ou fazemos o que os outros fizeram; ou obedecemos cegamente a superiores ou ideologias É verdade, temos idéias e ações comuns à humanidade, mas estas idéias e ações devem ser vividas por nós, como pessoas individuais, sujeitos responsáveis por nossas próprias vidas. O certo é que a espiritualidade não pode dispensar a nossa racionalidade individual. Os primeiros cristãos definiram que o culto deve ser racional, e cada fiel deve saber dar razões de sua fé. Portanto, nada de “saltos no escuro”, ou de cultos exaltados e irracionais, com transes e drogas.

Como seres sociais: Embora indivíduos, fazemos parte da humanidade como um todo. Por isto, o que interessa à humanidade, também deve interessar a nós pessoalmente. O que existe de bem, e o que existe de mal entre os homens: gestos de solidariedade, de bem-estar, de justiça, de paz e de progresso; mas também as injustiças, as violências, as guerras, os racismos, a miséria e as doenças. Nada do que é humano nos pode ser estranho, como já dizia Terêncio na Antiguidade O homem espiritual não pode ficar indiferente em relação ao que acontece ao próximo ou ao distante.

Como seres passionais: O ser humano não se reduz simplesmente ao seu pensamento e à sua razão. Nele existem sentimentos, paixões e afetos. O homem espiritualizado se orienta pela lógica do coração; possui sentimentos de amor e compaixão; sua espiritualidade está repleta de afetividade. Deve ser um apaixonado por tudo o que dignifica o nosso existir terreno. Mas também deve ser sensível e capaz de indignar-se com tudo o que rebaixa os seres vivos, a natureza como um todo e, conseqüentemente, o ser humano.

Como seres ambientais: O ser humano é um ser terrestre. Por isto, enquanto ele vive aqui, o sentido de seu existir é ser fiel à terra, às suas maravilhas e às suas imperfeições. Freud adverte que o ser humano, enquanto terreno, deveria, por enquanto, deixar o céu aos anjos e aos pardais. E Nietzsche nos exige que sejamos fiéis à terra. Isto tem como conseqüência para uma espiritualidade autêntica que, se Deus nos colocou nesta terra, o sentido de nosso existir é viver de acordo com as leis desta terra. E a terra, com suas maravilhas e perigos, merece admiração, cuidado, pesquisa e trabalho, para que a conheçamos, respeitemos e ela permaneça favorável ao homem e aos outros seres que a habitam. Por isto a espiritualidade desejada necessita de um “grão” ecológico. É necessária a sensibilidade pela beleza de uma flor, pela brisa suave de um ar puro, pela transparência das águas fluviais, pelo verde das árvores, por uma paisagem deslumbrante. Pois, conforme a experiência espiritual do Profeta Elias, Deus se manifesta na brisa suave do entardecer. Mas, esta mesma espiritualidade também exige que nos dediquemos ao estudo da natureza para que ela não nos surpreenda catastroficamente.

Como seres circunstanciais: Ortega y Gasset ensina que o homem é ele e suas circunstâncias. Historicamente somos homens e mulheres do século XXI, com todas as circunstâncias científicas, tecnológicas, culturais, sociais políticas e religiosas deste momento histórico. Este é o nosso tempo de vida. E esta vida tem uma certa duração, contra a qual, nem plásticas, nem transplantes, nem a purificação do genoma humano tem poder. Já a sabedoria antiga, de mil anos antes de Cristo, dizia que a vida do homem é 70 anos, alguns chegam a 80, e o que passa disto é miséria. E, como vemos hoje, nem o Papa escapa deste determinismo. É importante estar consciente deste limite, tanto para nossas idéias como para a nossa ação. Agora somos importantes, onde estamos, mas, daqui a mais algumas décadas, apenas seremos lembrança. E a nossa única chance que temos nesta nossa vida, neste tempo de nossa presença histórica objetivada, é tornar nossa vida significativa. Sartre, em sua filosofia existencialista, nos ensina que somos totalmente responsáveis por nosso existir. Se formos bons, será mérito nosso, se formos bandidos, a culpa é nossa. Que não procuremos jogar a culpa para outros, ou sobre as circunstancias. Já Sartre pede uma ética de responsabilidade e de cumplicidade. Hoje, Hans Jonas reforça e amplia esta exigência para a vida em sua “Ética da responsabilidade”. Nesta visão realística do nosso existir, achei muito interessante o testemunho de um velho professor meu, ainda muito consciente, mas vislumbrando o apagar de suas luzes, que dizia: “Como é bom ser bom”. Ele se sentia espiritualmente gratificado, porque tinha a consciência de que em sua vida procurou ser “bom”. Talvez este pudesse ser o lema para a estruturação da espiritualidade de qualquer um de nós: procurar ser bom em nossa vida, nas circunstâncias de cada dia. Para que, ao final de nosso existir, nesta terrinha querida, possamos exclamar: como foi bom ter sido bom!

Conclusão

Mas, como chegar a assumir este propósito? Em conclusão, gostaria de me referir a um caminho que, há uns 15 anos atrás, construí para mim mesmo. Além de acompanhar, lendo e estudando as experiências espirituais de “homens de espírito”: filósofos, cientistas, religiosos, políticos, etc. formulei o seguinte plano de atitude de vida, de práxis existencial, que resultou em uma espécie de Dez Mandamentos para uma vida com espiritualidade:

1. Tentar fazer bem o que temos a fazer em nossa vida íntima, familiar, profissional e social.

2. Saber que a vida é um grande mistério, e aceitá-la como tal.

3. Continuar sempre no processo de aperfeiçoamento e esclarecimento da nossa percepção da “realidade”, embora com a consciência clara de que nunca chegaremos a uma compreensão perfeita e definitiva.

4. Ir ajustando a nossa práxis às modificações em nossa percepção da “realidade”, e às modificações no ambiente social em que estamos inseridos.

5. Mostrar esperança no futuro da humanidade.

6. Manter-nos abertos, e seguindo, cada dia, as inquietudes que a “curiosidade”, em relação ao mundo, nos coloca.

7. Viver, sentindo-se parte da humanidade, confraternizando com os demais homens, alegrando-se com as bem-aventuranças, e sofrendo com as maldades que atingem a humanidade.

8. Não ser otimista demais, mas tendo a consciência de que a nossa passagem por esta vida é muito importante, embora nossas tarefas sejam percebidas como insignificantes (nossas ações fazem parte do mistério da vida).

9. Participar, de acordo com nossas preferências e habilidades, em grupos, instituições, etc., que tenham como objetivo uma melhor análise, ou modificação da sociedade atual.

10. Contribuir, na medida de nossas possibilidades, para que cada vez mais pessoas tenham acesso aos bens espirituais, culturais, científicos, econômicos e sociais de nossa civilização.

Penso que, agindo de acordo com estes 10 indicativos a nossa vida terá sentido, pois estará baseada numa sólida espiritualidade . Mas o que é, propriamente, a espiritualidade? No meu entender, é o caminho ao encontro de nós mesmos, em que procuramos o aperfeiçoamento de todas as dimensões do nosso existir: espirituais, corporais, racionais, psíquicas, passionais, sentimentais, afetivas e intelectuais. E esta é uma tarefa insubstituível. Somente nós, como indivíduos, como sujeitos podemos trilhar este caminho.

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• Texto apresentado no “Café Filosófico” da Livraria

Cultura no Recife/Pernambuco, em 18 de março de 2005.