Livro didático: para além da ideologia

Wilson Correia*

Vários estudos, tais como os de Bonazzi & Eco (1980), Enguita (1989), Chiappini (1997), Lajolo (1998), Freitag; Costa & Motta (1989), Lajolo (2002), Deiró (2005), entre outros, abordam questões relativas à temática “livro didático e ideologia”.

Mas, o que é livro didático?

Livro didático é aquele que realiza a intenção pedagógica. Ele é voltado especificamente para o ensino e para a aprendizagem de determinada matéria, harmonizado com currículos escolares. Ora, sabemos que a ciência, a filosofia e as artes são produzidas e sistematizadas segundo critérios teórico-metodológicos específicos, o que inclui, no mais das vezes, linguagem técnica hiperespecializada. Então, o “saber sábio” originalmente aí organizado recebe tratamento didático-pedagógico que o torna “saber ensinável”, afim de que se transforme em “saber ensinado”, aquele realmente aprendido pelo estudante (CHEVALLARD, 1991). Note que o rigor no tratamento do conceito não deve ser afetado, pois se trata de uma questão textual, e não de um trabalho que vise ao barateamento conceitual, em nível de senso aquém da filosofia, da ciência e das artes.

E ideologia, o que é?

A palavra “ideologia” foi criada em 1796 pelo francês Destutt de Tracy como nome da ciência da gênese das ideias. Pejorativamente, chama-se de ideologia a ideias que não guardam fidelidade com a realidade. É usada, ainda, para nomear a atividade de partidos políticos ou de governos. No pensamento marxiano, a ideologia é entendida como o conjunto de ideias que falseiam a realidade por parte da classe dominante. Ela o faz com o objetivo de defender os próprios interesses, em prejuízo da classe dominada, tornando-se uma espécie de “mentira coletiva”, motivada pela ignorância sobre as determinações da infra-estrutura (realidade material) na superestrutura (materiais intelectuais e espirituais: religião, política, direito, arte, filosofia, ciência e assemelhados, cujos valores são veiculados por aparelhos de ensino, família, meios de comunicação, igrejas, entre outros), conforme Durozoi & Roussel (p. 243-244). Segundo Gramsci (1977, p. 1456), as “ideologias ‘arbitrárias’ merecem ser submetidas a uma crítica que, de fato, as desqualifiquem”. Já as “ideologias ‘historicamente orgânicas’" são as que “constituem o campo no qual se realizam os avanços da ciência”, como “conquistas da ‘objetividade’”, em que as representações da realidade são reconhecidas por todos os homens, independentes de qualquer “ponto de vista meramente particular ou de grupo’” (GRAMSCI, 1977, p. 1456). Assim, a ideologia só pode ser combatida mediante a construção de compreensões não identificadas com particularismos pessoais, institucionais ou grupais.

Não há livro didático imune à ideologia

Desse modo, o livro didático não está livre de veicular ideologia (seja numa ou noutra acepções acima registradas). Ocorre que em toda ideologia subjazem valores, os quais pugnam, legitimam, explicam e propõem um modelo de sociedade e um estilo existencial. Assim, em face de um conteúdo didático que demonstre vieses ideológicos, o que se pode perguntar é: essa ideologia está a serviço de que, de quem? Como ela entende o para quê da informação, do conhecimento e do saber? Que papel social ela reserva para a escola, para o ensinar e para o aprender? Indagando assim a ideologia, então podemos analisá-la consistentemente e avaliar se ela combina com o nosso conjunto de valores (fonte de princípios e regras de ação) éticos ou se se distancia dele.

Para além da ideologia

Quando chegamos a esse ponto, então podemos adotar uma postura contrária ou favorável à ideologia veiculada pelos livros didáticos, trabalho que requer que nos coloquemos para além da ideologia em si, mas que vejamos o seu núcleo como o lugar de onde nasce o conjunto de valores sustentador da ideologia. Isso se torna decisivo porque é daí que extraímos materiais para modelarmos a sociedade e para formarmos estilos humanos com os quais a escola tem de lidar, mas que são modelos os quais podem, ou não, satisfazer as nossas necessidades, projetos, sonhos e desejos.

O livro didático não é bíblia

O que não é pedagogicamente interessante é o uso do livro didático como se ele fosse uma bíblia, portador da palavra de autoridade entendida como dogma verdadeiro e inquestionável. Não. O livro didático pode ser visto como um auxiliar, um apoio a mais, entre outros possíveis, do qual pais, professores e estudantes podem lançar mão. Há muitos materiais entre nós que fazem aquela transposição didática referida no início, os quais, sem afetar o rigor conceitual, fazem bem o tratamento textual de informações, conhecimentos e saberes científicos, filosóficos e artísticos de maneira a se adequarem ao uso em sala de aula. Um pouco de pesquisa por parte da escola, de pais de alunos e de professores no sentido de escolher os materiais de estudo que melhor atendam às necessidades dos estudantes pode ajudar a superar a eterna submissão à ideologia dominante que infesta nossos livros didáticos. Isso pode dar trabalho, é claro, mas é extremamente compensador.

Referências

1 BONAZZI, M. & ECO, U. ‘Mentiras que parecem verdades’. São Paulo: Summus, 1980.

2 CHEVALLARD, Y. ‘La transposición didáctica: del saber sábio al saber enseñado’. Buenos Aires: Aique, 1991.

3 CHIAPPINI, L. ‘Aprender e ensinar com textos didáticos e paradidáticos’. São Paulo: Cortez, 1997.

4 DEIRÓ, M. de L. C. ‘As belas mentiras: a ideologia subjacente aos textos didáticos’. São Paulo: Centauro, 2005.

5 DUROZOI, G. & ROUSSEL, A. ‘Dicionário de Filosofia’. Trad. M. Appenzeller. Campinas: Papirus, 1993.

6 ENGUITA, M. F. ‘A face oculta da escola: educação e trabalho no Capitalismo’. Trad. T. T. da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

7 FREITAG, B; COSTA, W. F. & MOTTA, V. R. ‘O livro didático em questão’. São Paulo: Cortez/AA, 1989.

8 GRAMSCI, A. ‘Quaderni del Carcere’. Torino: IG/Einaudi, 1977.

9 LAJOLO, M. ‘Do mundo da leitura para a leitura do mundo’. São Paulo: Ática, 2002

10 LAJOLO, M. ‘O livro didático em questão’. Brasília: MEC, 1998 (debates).

_________

*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br