MÚSICA E PSICANÁLISE _ por Maria de Lourdes Sekeff

MÚSICA E PSICANÁLISE

Maria de Lourdes Sekeff

mlsekeff@giro.com.br

UNESP

Resumo

Partindo do entendimento de música como processo de subjetivação envolvendo pulsões

e desejo, que somados à técnica e competência adquiridas pelo músico possibilitam

sua auto-realização, levanta-se a hipótese de uma aproximação música x psicanálise. Para

tanto considera-se que ambas envolvem o inconsciente; lidam com emoções ; constituem o

lugar da verdade; são produtos culturais; lêem o homem em sua vida cotidiana e em seu

caminho histórico e possibilitam um espaço de expressão ao sujeito. A despeito de seus

campos impermeabilizarem qualquer ultrapassagem, música e psicanálise supõem sempre

engajamento pessoal e investimento inconsciente, .justificando a aproximação.

O objetivo é confirmar o exercício da música como uma estética de subjetivação, afeta

à política do desejo, com o músico encontrando nessa prática uma função autorealizadora,

tanto quanto comprovar a pleiteada proximidade de ambas..

Fundamentação teórica: A fundamentação teórica é sustentada em Freud e MDMagno

(1986) quando penso em psicanálise; Maynard Solomon (1987), quando abordo o

músico, e Jan LaRue (1989) quando falo de análise musical “interpretativa” (interpretação

como construção de sentido), entre outros.

Metodologia: A metodologia utilizada é a bibliográfica, “interpretativa” e qualitativa.

Resultados: esta pesquisa resultará no livro Música e Psicanálise. Considerações parciais

(como um processo aberto) vêm sendo apresentadas em trabalhos do Grupo TECER,

da Psicologia da USP/ SP, assim como em discussões no Grupo de Pesquisa MÚSICA,

Discurso de uma Cultura e em ensaios:como Características Psicológicas da Música.

ARTE e CULTURA III: estudos transdisciplinares, SP.Annablume/FAPESP, 2004.

Abstract

Leaving of the music understanding as process involving drive (trieb) and desire, that

added to the technique and competence acquired by the musician make possible his selfANPPOM

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realization, gets up the hypothesis of an approach music x psychoanalysis. For so much is

considered that both involve the unconscious; they work with emotions; they constitute the

place of the truth; they are cultural products; they read the man in his daily life and in his

historical road and they make possible an expression space to the subject. In spite of their

fields they make waterproof any passing, music and psychoanalysis always suppose personal

engagement and unconscious investment, justifying the approach.

The objective is to confirm the exercise of the music as an aesthetics, affects to the politics

of the desire, with the musician finding in that practice a solemnity-enterprising function,

as much as to prove the proximity of both.

The theoretical base is sustained in Freud and MDMagno (1986) when I think about

psychoanalysis; Maynard Solomon (1987), when I think about the musician and Jan LaRue

(1989) when I work the “interpretative” musical analysis (interpretation as sense construction),

among others.

The used methodology is bibliographical, “interpretative” and qualitative.

This research will result in the book Music and Psychoanalysis. Partial considerations

(as na open process) they have been presented in works of the Group “TECER” of the

Psychology of USP/ SP, as well as in discussions in Pesquisa Group “Música: discurso de

uma cultura”, and in articles as “Características Psicológicas da Música” in the book

ARTE e CULTURA III. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2004.

Desde o início do século XX vem se observando um expressivo movimento de aproximação

entre arte e psicanálise, tendo em conta nossa condição de falantes dotados de um

inconsciente que encontra na arte uma atividade de expressão e produção de sentido. Como

ambas são produto da cultura, com a descoberta do inconsciente por Freud e logo após a

Primeira Grande Guerra, a arte faria referências explicitas à psicanálise.

Em nome de um novo cânone estético sustentado na busca de uma expressão que irrompia

do inconsciente, e a despeito de Freud não esconder uma certa antipatia em relação

à arte moderna assumindo que não a compreendia, houve influências mútuas, possibilitando

transformações e criações, como aconteceu com relação a Salvador Dali1 e Max Ernst,

pintores, este último assegurando ter sido fundamental para o seu trabalho a leitura de texANPPOM

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tos de Freud. Para Freud, para quem a arte era significativa para o entendimento do psiquismo,

essa consideração não se estendia ao expressionismo e surrealismo. Com dúvidas a

respeito dessa estética, ele tinha expressionistas e surrealistas como “loucos furiosos”. Não

obstante, já no final da vida, depois de conhecer Salvador Dali e impressionado com o pintor

catalão, modificou sua opinião. Disse então a Stefan Zweig que lhe apresentara Dali:

[...] até agora sentia-me inclinado a considerar os surrealistas [...] loucos incuráveis

[...]. Mas o jovem espanhol [...] fez-me reconsiderar minha opinião. Na

verdade, seria muito interessante investigar analiticamente, como se chega a compor

um quadro como esse. Do ponto de vista crítico poder-se-ia continuar afirmando

que o conceito de arte desafia toda ampliação, na medida em que a proporção

entre materiais inconscientes e funções pré-conscientes não se mantiverem

dentro de limites definidos2.

Segundo Renato Mezan, o que Freud reprovava na arte moderna era a “desproporção”

entre materiais inconscientes (os fantasmas estruturados na e pela obra) e “funções préconscientes”

que a estética tradicional denomina “forma”. Tanto na poesia quanto no teatro,

romance, pintura, as referências de Freud são particularmente clássicas. E em relação à

música, parece que ele nutria uma certa admiração pelo clássico Mozart.

A verdade é que a psicanálise impressionou a arte do séc. XX, além do que ela mesma

foi im-pressionada pela arte. É relevante o reconhecimento de Freud, afirmando que o método

psicanalítico baseado na livre associação fora inventado a partir de um modelo estético

de criação literária3, com seus preceitos de como os poetas deviam proceder para elaborar

suas criações poéticas.

As reflexões em torno da psicanálise e arte foram aos poucos se tornando mais densas,

respondendo por uma articulação epistemológica que resultou em livros, ensaios e artigos:

Uma Recordação Infantil de Leonardo Da Vinci de Freud, Psicanálise e Cinema de Christian

Metz (1980), Psicanálise e Literatura de Giovanna Bartucci (org. 2001). É a descoberta

do inconsciente animando a referida aproximação!

Não obstante no campo da música esses estudos terem sido relativamente acanhados,

não registrando quaisquer rubricas bibliográficas a não ser um ou outro trabalho isolado

como o do lacaniano MDMagno, A Música(1986)4, questionamentos semelhantes vez por

outra emergiam. Mas Freud não se dedicou a investigações musicais. Aliás, ele considerava

mesmo não possuir gosto musical, como dissera à dra.Jeanne Lampl-de Groot, sua antiga

discípula (abril de 1922).

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É na intersecção desses dois campos, música e psicanálise, que esta comunicação se

situa, partindo para tanto do entendimento de que ambas são receptáculo daquele lugar de

opacidade intransponível que é o imaginário, parafraseando Christian Metz (1980)5. Ao

mesmo tempo meu entusiasmo por essa temática se exacerbou com a leitura dos livros organizados

por Giovanni Bartucci (2002, 2001, 2000), onde especialistas refletem processos

de subjetivação nos campos da arte, literatura e cinema. Como a música não fora objeto

dessas reflexões, aguçou-se mais o meu interesse.

Para este trabalho retiro a música do umbigo da sala de concertos para o eixo do pensamento

reflexivo, entendendo o produto musical como alteridade (lição de Proust) e autonomia

(lição de Valery)6, e a criação musical como um processo de auto-realização envolvendo

inconsciente, desejo e modos de relação com a pulsão.

Criada, a psicanálise se espraiaria entre artistas e intelectuais, insuflando o surgimento

de movimentos como o dadaísmo, o geometrismo, e “a preocupação pela pureza das formas

e pela funcionalidade do objeto, que conduzirá à Bauhaus”7. Hoje, ao contrário, tem-se

um certo esmaecimento do fascínio exercido pela psicanálise e por sua visão de mundo,

pois estamos todos hipnotizados pelo Projeto Genoma com seu viés de cura, inclusive

mental, num arco que vai da esquizofrenia à distimia.

Naquele instante, entretanto, a articulação entre saber psicanalítico e literatura constituiu

para Freud uma das condições de possibilidade para que ele empreendesse a metodologia

psicanalítica8. Ele se valeu, e quantas vezes! da arte, literatura, mitologia e filosofia

para explicitar seus pressupostos, encontrando aí o caminho para mostrar a dimensão do

que escapa à possibilidade de abordagem pelo universo da lógica e da consciência. Seus

escritos clínicos passaram então a reproduzir, na reconstrução teórica da psicanálise de

um sujeito, a espessura mito-poética que caracteriza o processo psicanalítico9.

Em relação à música, se é certo que esta não lhe suscitou maiores investigações, também

é certa a constatação de que ela sempre se relaciona com o corpo biológico do criador/

receptor e com a “palavra” que o sujeito dessa linguagem articula na construção/ reconstrução

do discurso musical, tendo as múltiplas articulações dessa relação, a função de fazer

“ressoar”. Desse modo a referida aproximação ganha um matiz provocador, particularmente

se se considera que o mesmo Freud que dizia gostar de música, que freqüentava óperas e

dizia admirar Mozart, é o mesmo Freud que tinha sérios desentendimentos com essa arte,

afirmando: A música, sou quase incapaz de fruir [...]; uma disposição racionalista ou talANPPOM

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vez analítica luta em mim contra a emoção quando não posso saber porque estou comovido,

nem o que é que me pega10.

Mas, ele gostava sim de ópera, o que, aliás, é fácil de entender. Ópera é música com

palavras, é drama musical sustentado por um libreto. Ora, se por um lado o libreto aborda

no geral questões psicológicas: paixão, amor, ódio, traição, sofrimento, tragédia, temas que

sempre ocuparam a atenção de Freud, e se por outro a ópera constitui um espetáculo, é natural

que ele, sensível a questões psicológicas e a impressões visuais, sentisse atração por

esse gênero de música.

Assim, embora sem se voltar especificamente para a investigação da música, ele inferiu

que movimentos constitutivos do discurso musical vão além do significante, possibilitando

“marcas” particulares do sujeito, o que significa dizer que elas trazem alguma coisa

do inconsciente que se presentifica na obra musical, constituindo o estilo próprio do compositor

(e só nesse sentido). Não que a música fale alguma coisa. Não! Música só fala de

música, mas resulta sim, de um ato criativo, impulsionado entre outros por pulsões (de auto-

realização) e desejo.

Tendo em conta que a obra musical sempre inclui uma visão de mundo, que cada época

se caracteriza por uma tendência dominante e que essa tendência ainda hoje se volta

para processos psíquicos e psicológicos, busquei aquele diálogo de intersecção entre música

e psicanálise, não obstante sabendo que ambas mantém projetos diferentes e ambas têm

seus limites. Para tanto considero música como estética de subjetivação que, “pressionando”

o músico à significação, possibilita a auto-realização, ao mesmo tempo em que burla a

lacuna psicológica de não (se) ser plenamente presente em si mesmo.

Somos constituídos pelas linguagens que produzimos e nelas a psicanálise nos “revela”

em múltiplas linhas divergentes. Entretanto, a despeito da psicanálise como processo

terapêutico se sustentar numa troca de palavras, a verdade é que a palavra não constitui a

única forma de fala, a única forma de expressão do eu. O inconsciente encontra sempre um

modo de se manifestar, seja pelo caminho do verbal, do não-verbal e até mesmo pelos dois,

simultaneamente, com o sujeito da fala podendo expressar mais do que pensa e com o ato

psíquico podendo envolver mais de um sentido (como acontece na escuta musical). Como

nesse movimento nada é gratuito, tudo é significante, infere-se que o exercício da linguagem

musical também revela o músico (seu estilo único, e só nesse sentido) e também revela

o receptor (pois música não “fala” só do texto, mas do texto dentro de nós).

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Ao contrário da lingüística, ciência do simbólico, que objetiva o significado enquanto

tal, psicanálise e música, ciências humanas, objetivam a expressão, diferindo entretanto

em suas perspectivas. Se a psicanálise se debruça sobre o inconsciente e seus processos

primário e secundário, e se à lingüística cabe ênfase no processo secundário, a linguagem

musical, com sua presença marcada de ausências, privilegia o campo da expressão, permeando

ambos os processos, com dominância do processo secundário. Se ainda, no sentido

considerado por Lacan11, o imaginário é oposto ao simbólico mas em permanente imbricação

com este, e se é certo que a psicanálise se relaciona com o desejo, com o imaginário e o

simbólico, também é certo que o exercício da música envolve essa relação, haja vista ser

um processo que utiliza mecanismos e jogos que “regulam” o inconsciente. É assim que a

psicanálise encontra em certa medida um interlocutor na música, pois que jogos do imaginário

e do simbólico se assinalam no trabalho musical.

Marcada por uma produção de sentido e potência criadora singular, a música de algum

modo cruza com a psicanálise, haja vista que o trabalho musical envolve o inconsciente

como foi dito, e este, como diz Lacan, não deixa nenhuma de nossas ações fora de seu

campo. Elementos em comum perpassam o universo das duas: ambas são dotadas de um

caráter subversivo, transformador, e ambas em princípio podem aliviar certas tensões de

nossa psique. Entretanto, diferenças permanecem, em razão de que na linguagem musical

as fantasias ali colocadas não o são sob o olhar da consciência, e assim não se desvanecem,

permanecendo fantasmas, tornando a escritura musical o seu “duplo”, uma fronteira constantemente

deslocada. Compor é desse modo uma atividade inesgotável, ao contrário da

análise que se dá na transferência com uma pessoa real, com a fala ao analista sendo devolvida

ao analisando, objetivando a autonomia do paciente.

Se não em termos da música em si, questionamentos podem ser levantados em torno

da escuta e particularmente da educação musical. Considerando a função normativa e formativa

da educação, o que pode fazer o educador musical, tendo em vista as conquistas

freudianas? São questões a serem investigadas, cabendo sim, pesquisas sobre a temática.

Aliás, em termos de educação, estudos vem sendo retomados desde a década de 70 na

França, com uma metodologia rigorosa que, espera-se, também sejam aplicados à área da

música.

O que torna a aproximação música x psicanálise uma reflexão necessária, é particularmente

o fato de que o investimento em atividades musicais favorece “a constituição de

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uma dialética da alteridade por meio da inscrição da pulsão no campo da cultura, além do

que, no processo de criação, no trabalho de construção/ escuta de formas sonoras, o músico

encontra o lugar psíquico de constituição de uma estética da subjetividade. Sem que se esqueça

ainda que a psicanálise, como discurso teórico de referência obrigatória no campo

das ciências humanas, e a música como referência obrigatória no campo das práticas afetivo-

sonoras, estimulam o indivíduo a pensar para além da significação. E mais, se se faz

semiologia da música, se existem vários tipos de abordagem musical: acústica, física, histórica,

estilística, porque não se pensar em música e psicanálise? Lacan demonstrou essa

preocupação quando, no Seminário 20, lembrou que “seria preciso, alguma vez, falar da

música; não sei se jamais terei tempo”12 (e não mais o teve).

Com esse entorno, com base no entendimento de que psicanálise é a arte de decifrar

uma verdade e consciente de que a música é, em alguma dimensão, guardiã do inconsciente,

acabei por me voltar à observação freudiana de que artistas são capazes, por meio de

sua arte, de presentificar o inconsciente (como estilo, no caso do compositor, como vivência,

no caso do receptor). A pertinência desse objeto de estudo repousa no fato de que música

e psicanálise lêem o homem em sua vida cotidiana e em seu caminho histórico; ambas

envolvem o inconsciente que, com a instauração da psicanálise ganha um estatuto ontológico,

e ambas lidam com expressões e emoções. Como a música carrega em seus flancos o

não consciente e como a psicanálise teoriza em torno daquilo que escapa ao consciente, a

aproximação se reforça.

Neste trabalho encontro suporte teórico no próprio Freud quando penso em psicanálise,

em Maynard Solomon13 quando penso no músico (Beethoven é o recorte a ser adotado),

e em Jan LaRue14 quando trato de análise musical “interpretativa”, o que pretendo nas

Sonatas para piano de Beethoven.

Com metodologia bibliográfica, “interpretativa” e qualitativa, o trabalho final, um livro,

tratará de Música e Psicanálise (questões epistemológicas referentes à psicanálise e à

música), Características psicológicas da música (aconceitualidade e indução), Sonhos (adentrando-

se nos processos oníricos e fantasias musicais), Processo de criação musical

(abordando também inspiração, imaginação, criatividade), Beethoven, o homem, o músico,

e finalmente No universo da análise (levantamento de perfis, de marcas e traços singulares

utilizados por Beethoven em suas Sonatas para piano), enquanto As Considerações finais

pretendem sublinhar não só a força do psicológico na escrita musical de Beethoven como

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ratificar o processo de auto-realização, com o músico tendendo a realizar o que existe nele

em germe, a crescer a se completar, embora música sempre resulte em autonomia, alteridade,

falando só dela mesma, música.

O objetivo é confirmar a criação musical como estética de subjetivação, na medida em

que, inscrito nos registros da alteridade e diferença, da insuficiência e incompletude, o músico

sempre encontra, na construção e reconstrução musicais uma função auto-realizadora,

processada em movimentos inventivos que não prescindem da subjetividade. Nesse movimento

ele joga com outros possíveis, transgride o estabelecido, descontrói certezas narcísicas

e reinventa novas articulações que resultam em formas musicais de sentido e feição

única.

Como a psicanálise, a música é produtora de rupturas e descontinuidades na construção

da subjetividade; parte da pulsão para a “descarga” e tende para um alvo (a autorealização);

ambas são afetas a uma “política do desejo”, são produtos culturais e compartilham

um mesmo espírito de época. Como a pulsão é uma força que para tal fim necessita

ser submetida a um trabalho de ligação e simbolização, a música se afigura como um lugar

de possibilidades de ordenação de destinos possíveis, inscrevendo-a no registro da simbolização.

Por fim lembro que toda e qualquer forma de música é sempre um modo de ler, interpretar.

E se na escuta psicanalítica o importante é a função do analista captando no silêncio

da escuta manifestações do inconsciente do analisando com um descomprometimento

com o que este pensa que diz, no caso da música o importante é a construção de sentido

que compositor e receptor estabelecem, comprometidos com a expressão que as formas

sonoras autorizam e legitimam. O que significa dizer que, em ambos os casos, é sempre

possível a percepção de uma “outra fala” ampliando os limites da experiência humana. No

caso do compositor essa outra fala se revela na maneira como ele organiza os sons, como

ele diz o que diz, com a competência da técnica musical (aprendida) somada ao desejo; e no

caso do receptor, à maneira como ele capta os sons musicais, reorganizando-os, reconstruindo-

os, embalado também por seu desejo. Na relação umbilical que compositor/ receptor

estabelecem, na intimidade daquele instante de escuta, algo penetra na construção/ reconstrução,

produzindo ali sua marca, seu traço, sua singularidade.

Embora a obra musical uma vez concluída se assinale como autonomia onde a “intenção”

do compositor não goza de nenhum privilégio e onde o texto não apresenta um sentiANPPOM

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do único, o que significa dizer que ela sobrevive à subjetividade do seu criador, ainda

assim a vivência musical, tanto quanto o texto (escritura), não deixa de “desvelar” marcas

do compositor (estilo próprio) tanto quanto do “leitor”, possibilitando a percepção da singularidade

de ambos.

E mais, se psicanálise é conhecimento, música também o é. Considerando que o objeto

da música é a própria música, materialidade sonora que se volta para si mesma numa autoreflexibilidade

que acaba por dotá-la de uma potência que se movimenta entre construção e

sensibilidade, a poética que funda esse objeto propicia àquele que o vivencia um mergulho

no ´estranhamento` possibilitando alcançar o conhecimento em razão do saber estético dessa

vivência, lembra a psicanalista Eliane Accioly Fonseca15.

A despeito de toda essa reflexão deixe-se claro que a especificidade de ambos esses

campos se mantém incólume, impermeabilizando qualquer ultrapassagem “territorial”.

Como aproximação não é ultrapassagem, este trabalho acaba por se sustentar, com a subjetividade

possibilitando pelo “descentramento”, um engendramento da criatividade na própria

subjetividade. Como diz Joel Birman em Fantasiando sobre a Sublime Ação:

[...] a concepção da subjetividade formulada no discurso freudiano [...] marcada

pelo “descentramento” [...] encontraria no processo de produção da inquietante

estranheza o seu engendramento e a sua condição de possibilidade [...]. Seria por

este viés descentrado que a criatividade poderia se engendrar na subjetividade

[...]16.

Referências

1 RIVERA, Tânia. Arte e Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p.22.

2 MEZAN, Renato. Freud, pensador da Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.610.

3 FREUD, S. (1920b). Para la prehistoria de la técnica analítica. A.E., v. XVIII, p.257 a 260.

4 MDMagno. A Música. Rio de Janeiro, editora aoutra, 1986.

5 METZ, Christian et al. Psicanálise e Cinema. São Paulo:Global Editora, 1980.

6 BELLEMIN-NÖEL, Jean . Psicanálise e Literatura. São Paulo: Cultrix, 1983, p.77.

7 MEZAN, Renato. Freud, a conquista do proibido. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p.60.

8 SAMPAIO, Camila Pedral. “A incidência da literatura na interpretação psicanalítica”. In Giovanna Bartucci

(Org.). Psicanálise, Arte e Estéticas de Subjetivação. Rio de Janeiro:Imago, 2002, p. 153 a 175.

9 BIRMAN, Birman. “A Escrita em Psicanálise”. In Giovanna Bartucci (Org.), 2001, p.185 a 196.

10In MDMagno, op.cit., p.10.

11 In SOUZA, Alduísio M. de. Uma leitura introdutória a Lacan, exegese de um estilo. Porto Alegre: Artes

Médicas,, 1985.

12 In MDMagno, op.cit, p.14.

13 SOLOMON, Maynard . Beethoven. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.

14 LaRue, Jan. Análisis Del Estilo Musical. Barcelona: Editorial Labor, 1989.

15 FONSECA, Eliane Accioly. Corpo-de-sonho.Arte e Psicanálise. São Paulo: Annablume: 1998, p.13 e 14.

16 BIRMAN, Joel. “Fantasiando sobre a Sublime Ação”. In Bartucci, G.op.cit., 2002, p.127.