Uniban é todos nós

Wilson Correia*

No debate sobre o “Caso Uniban”, argumentei que ele não seria bem entendido se ficássemos focando a Uniban isoladamente; se culpássemos apenas os estudantes taliunibaneiros que promoveram o linchamento moral de Geisy Arruda; se vitimássemos tão-somente a “moça do microvestido”. A realidade é que ela acabou “esquartejada”: psicólogos de um lado, estilistas de moda de outro, políticos no meio; sociólogos, psicanalistas... todos e cada um a reivindicar o próprio quinhão de um caso que, a bem da verdade, não se presta a reducionismos rasteiros. O andar da moça foi tomado como ponto central da fonte do desatino, noticiado mundo afora, quando se sabe que o “rebolar” feminino é apenas uma das características formadoras das diferenças da mulher perante o homem (o desejo mal compreendido, produzindo ressentimento e ódio em moças despeitadas e em rapazes impotentes). O vestido dela teve seu momento de vilão, e, paradoxalmente, de glória, na mídia. E por aí seguiu o desfile dos reducionismos. Não poucos.

Fragmentamos o caso porque o nosso conhecimento sobre a realidade é fragmentado e porque a “parte” dominada por nós esconjura nosso pavor de encarar o “todo”, esse que, em síntese, tem a ver com o modelo societário que estamos a legitimar e em meio ao qual desenvolvemos nosso estilo existencial. Sim! Subjetividade e identidade nós não as construímos etereamente, mas muito bem plantados no cotidiano antropológico, econômico, político, cultural, ideológico e educacional, no qual navegamos como sujeitos individuais e grupais em espaços públicos e privados.

1 O caso é antropológico? Penso que sim. Envolve o modo humano de ser e estar no mundo de nossos dias, socialmente encrustado. Aqui, dizer que o caráter humano mudou é “chover no molhado”: Quando foi que o humano, jamais portador de caráter fixo e de natureza perene, deixou de mudar? Bem antes de Cristo, Heráclito já dizia que “Tudo muda” – o humano incluso nesse “tudo”. As diferenças aí também: nosso irmão índio convive pacificamente com o nu; nós, com toda a nossa civilidade, não suportamos uma minissaia – deve ser por isso que eles não precisam de psicólogos, psiquiatras, algemas, polícia e cadeia, ao passo que nós, ilustrados, não vivemos sem esses aparatos de contenção e repressão ideológica e de força.

2 O caso é econômico? Parece-me que sim. Desde quando as ideias liberais alcançaram hegemonia mundial, cujo emblema foi a queda do muro de Berlim, o mercado foi catapultado à condição de ente regulador da vida no planeta e o dinheiro foi eleito o tirano de cujas mãos passaram a depender a nossa vida e a nossa morte. Os imperativos dessa nova mundividência atendem pelos nomes de lucro, acumulação, consumo, competitividade e desregulação em escala universal.

3 O caso é político? Outra vez, respondo pela afirmativa. Ele evidencia os modos como o poder (em todas as suas expressões) tem sido empregado para administrar, disciplinar, controlar, vigiar, julgar, punir, castigar, premiar, tendo o Estado (a política subsumida pelo econômico) como o ente-mor balizador do pacto social dos incluídos (com destinação, via Estado, privatizado pelo capitalismo, de migalhas em “bolsas” aos excluídos, visando a aplacar a tensão social) das estratégias de convencimento de que esse pacto é o caminho único e de coerção daqueles que não se incluem nessa ordem cuja etiqueta histórica pode ser nomeada de mercadorização imponderável da existência e de tudo o que a ela diz respeito. A política parece estar seguindo o figurino mercadológico, ao qual o político está rendido e no qual se encontra submerso. Se, no Brasil, tivemos algum incremento de acesso a bens de consumo nos últimos anos, numa reles distribuição de renda, a isso o sistema computa como custo da manutenção do capital, e não como política de justiça social que vise a garantir a liberdade e a equidade.

5 O caso é cultural? Como não ser expressão de uma cultura, como produto humano? Ele expressa o antropocentrismo individualista e egóico cunhado na modernidade, com lastro numa concepção de racionalidade tecnocientífica tomada como a essência natural e autogestora do humano no mundo (razão e humano se identificam no trabalho de modelar o mundo e desse mundo ser um produto). É a perspectiva de prevalência do “eu” idiotizado (eu-em-mim), do privado (vale o meu), do humano em si (vazio) o qual não se estende ao outro, e que não abre espaço para que o outro possa se estender a ele, uma vez que “só posso ser até onde começa o ser do outro”. Se o ser de um fosse entendido como aquele que vai até onde vai o ser do outro, o sistema suportaria os riscos de tamanha liberdade? Tendo isso por base, toda a expressão simbólica do humano só recebe a chancela de “nihl obstat” (nada impede de circular) se se acomodar em caixas reservadas à embalegem de mercadorias. O que não é venal, nem comprável, passa a ser solenemente desqualificado, desprestigiado e ignorado. Por exemplo: não se compra o saber que refina o espírito; compra-se um canudo. E não foi exatamente o diploma, passaporte para a vida mercadorizada, o objeto que os taliunibaneiros viram ameaçado?

6 O caso concretiza uma ideologia? Sim, penso eu. A que arrasta e justifica todos os valores embutidos no modo antropológico, econômico, político e cultural de ser-e-estar-no-mundo em nossos dias brasileiros. A compreensão cognitiva, teórica, conceitual é a de que as coisas são assim porque assim são e não há outra via para os homens e mulheres atuais. Certo está o capitalismo. Correta está a democracia. Boa é a mídia rumorosa e sensacionalista que faz da miséria humana o espetáculo para os pigmeus que atendem pelo apelido de “homem” e de “mulher”. Ajuizada é a cultura narcísica em que nos vemos e em favor de um materialismo rústico, tosco e servil. Justa é a educação do canudo, a que prepara para os mercados (de trabalho e consumo, sobretudo), a que reduz cidadania à capacidade de consumir, a que pretere formação em benefício da certificação. Justificada está a ideologia que explica, fundamenta, legitima e deseja perpetuar o “stato quo” socialmente produzido e que parece imponderável sobre nossas cabeças e corações.

7 O caso tem a ver com a educação? Tem. Se a educação global é o processo aberto em cujo percurso o homem e a mulher podem chegar à feição que costumamos chamar “humana”, diferente da besta fera (não sendo isso o que necessariamente verificamos sempre), e se a educação escolar-formal cuida especificamente de oferecer acesso aos saberes científicos, filosóficos e artísticos especializados, então todas as facetas anteriores do “Caso Uniban Geisy Arruda” é um caso eminentemente vinculado à educação, pois é a educabilidade a base do que chamamos modelo societário e estilo existencial. É aqui, aliás, que todos os aspectos anteriormente discutidos ficam mais transparentes. Todos sabem que a Uniban é uma empresa privada que se dedica, prioritariamente, a ministrar informações extraídas das ciências, da filosofia e das artes aos filhos da classe “c”, preponderantemente. Assim, se estar na universidade é um ganho para essa classe, a qualidade do que encontram no meio universitário repete a expropriação de que já é historicamente vítima em nosso país: uma escola de ponta para a elite mandatária e uma outra, de segunda, para as classes populares, voltada para instrumentalizar quem obedece, no trabalho e em outras esferas da vida em sociedade. Essa classe “c” que, não tendo recebido educação escolar de qualidade até o ensino médio, não consegue entrar nas universidades públicas e, aí, para completar a expropriação e a injustiça educacional, tem de pagar um canudo igual a quando se compra um bem qualquer a “suaves” prestações. É aí que a Uniban encontrou o seu “nicho”. Em troca de mensalidades baratas, essa empresa oferece um canudo barato, o qual é amealhado mediante a freqüência a aulas baratas, de “conteúdos” baratos e ministradas por docentes baratos. (– Conteúdo? – Você ficou louco? O negócio agora, o despotismo da vez, pertence à dupla denominada “competência” e “habilidade”, ao “aprender a aprender” porque agora vale o autodidatismo do tipo piagetiano, com vistas para a “servidão voluntária”, como diria Etienne de La Boetie, ao “deus mercado” e ao seu mandamento sacrossanto da “oferta e da procura”, naturalmente existente na realidade natural e humana. Esse mesmo mercado que agora nos diz que a escola deve aprovar automaticamente todo mundo, uma vez que ele, mercado, é quem realizará a verdadeira avaliação de todo mundo, estabelecendo quem poderá ser incluído na vida de consumidor –cidadão– quem ficará fora dessa vida apequenada de nossas sociedades liberais-capitalistas). Não é sem motivos, portanto, que, pelos critérios de avaliação do MEC, a Uniban, figurando como a quarta maior em número de estudantes no Brasil, esteja como a décima sexta pior em qualidade de ensino (lá não se fala em pesquisa para a produção de conhecimento, muito menos em extensão, que é a aplicação desse conhecimento na resolução de problemas humanos e sociais do entorno onde a Uniban se encontra).

No frigir dos ovos, depois de todas essas considerações, é possível afirmar que, no “Caso Uniban Geisy Arruda” o que é caso de ética (“ethos” = modo estrutural de o humano ser, estar, agir na sociedade e no mundo) tornou-se um assunto de etiqueta (pequena ética, voltada para o trato social: vestimenta, cumprimentos e assemelhados). Em lugar de ver o caso desde a estrutura, preferiram vê-lo pelo viés da conjuntura. Abortaram o que interessa: os fatores estruturantes da vida em sociedade nos dias atuais, da existência individual e grupal.

Enquanto o caso estava em andamento, cumpria, eticamente falando, indignar-se contra a barbárie do linchamento moral que 700 estudantes haviam feito de Geisy Arruda. A expulsão da moça pela Uniban evidenciou a qualidade da mente dos gestores educacionais que temos, guiados pela cabeça cheia (de cifrão) e não pela cabeça bem formada (da cultura dos valores mais humanos). O “voltar atrás” por parte da Uniban só funcionou como “mea culpa”, como admissão do tiro no pé que ela deu, mas, irônica e infelizmente, não por uma motivação de cunho formativo, mas econômico-financeiro e certificador.

O que está acontecendo com Geisy Arruda no pós-linchamento é parte do problema, mas ganha nitidez e delineamento decorrente dos crimes de que foi vítima no interior de uma empresa que deveria ser uma instituição educacional. Geisy saiu, sim, à grita e em autodefesa. Porém, se ela se deixa seduzir pelas propostas de setores mercadomidiáticos, isso também deve ser computado às motivações que derivam das condições estruturais de nossa vida em sociedade. Geisy é, muitas outras vezes, produto da sociedade na qual vivemos. Não se tratava de defender a pessoa Geisy, mas um modo de ser, fonte de tudo o mais que o caso ensejou.

Por essas razões, a Uniban é a cara da nossa sociedade. Como somos os produtores desse modelo societário que está aí, como somos seres sociais, a Uniban é a nossa cara. A Uniban é todos nós. Geisy é nossa filha, irmã, amiga, colega (menos dos taliunibaneiros que parecem não ser mulheristas; mulherista é quem gosta de mulher), mas machistas (machista é quem gosta de macho). Os 700 néscios que a trucidaram moralmente são nossos filhos, irmãos, amigos, colegas (ainda que façamos de tudo para repudiá-los e não nos reconhecermos na pequenez de cada um deles). Os empresários da Uniban são nossos iguais, caracterizados pela falta de escrúpulo que faz com que percam de vista o fato de a educação ser um bem social, parte do bem comum, e que o Estado lhes dá apenas a “concessão do direito” para atuar no setor, motivo pelo qual não deveriam reduzir a educação a uma mercadoria a mais, a um simples meio de auferir lucro sobre lucro. Deveriam vê-la como parte da “coisa pública”, de caráter formador, educativo

Que tivéssemos a coragem de, narcisisticamente às avessas, olhar no espelho. Em outras palavras, olhar para a sociedade em que vivemos, olhar para nós próprios e para o estilo de vida que estamos levando. Que tivéssemos a coragem de perguntar (e responder): Somos a favor desse modelo de sociedade que erigimos e no qual estamos tendo que nos ajeitar? Somos favoráveis a esse estilo existencial, no qual empacotamos nosso “eu”, alheio à dimensão coletiva da manutenção da vida? Somos favoráveis ao “eu por mim” em uma sociedade infantilmente materialista e na qual todos matam todos (“um leão a cada dia”), na tentativa de se salvar no aqui e agora da vida terráquea?

Quando tivermos a coragem de encarar seriamente essas questões, quem sabe não voltemos a descobrir a educação como valor e o mais desejável valor de educar?

_________

*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br.