ÉTICA: CORRUPÇÃO, VIOLÊNCIA E PENA DE MORTE

1. Considerações iniciais

Segundo Aristóteles, o homem é um ser que se caracteriza pelo uso da palavra. A palavra o leva ao diálogo. Por isto, a pena de morte sempre será um ato contra o homem, pois corta radicalmente a possibilidade do diálogo. Mas, antes de tecer comentários diretos em relação à pena de morte, e situá-la em relação à ética, penso serem necessários alguns comentários preliminares, a partir de uma compreensão filosófica do homem.

A razão é uma propriedade do homem, que nos torna participantes das dimensões do Ser-em-si. E estas dimensões do ser, por definição, são ilimitadas. Como a razão nos faz participantes deste Ser, é compreensível que o homem, em função de suas aspirações e possibilidades racionais, seja um ser aberto, sem limites. Mas a definição aristotélica, além de caracterizar o homem como um ser racional, também o caracteriza como um ser animal. E o animal, por natureza, é um ser "fechado", limitado às ações instintivas. O animal participa da vida do ser, mas não da racionalidade. Contrariamente aos animais, o homem não está mais limitado por seus instintos, nem os instintos lhe indicam o caminho para sua humanidade. Existem, assim, no homem duas dimensões: a racionalidade, aberta e ilimitada por natureza; e a animalidade, necessariamente limitada para realizar sua natureza. Como o homem é, por assim dizer, um ser misto, por um lado deverá exercitar as suas dimensões ilimitadas da racionalidade e, por outro, caminhar nos limites de sua animalidade. Isto significa que o homem não é nem anjo, nem deus. Como ele não possui pré-determinados os limites de sua existência, ele mesmo terá que estabelecer os caminhos de seu divagar existencial. Se não fizer isto, estará à mercê de sua vontade-de-poder sem fronteiras. E o homem, com sua vontade-de-poder não limitada, se torna tirano, opressor, destruidor, violento, corrupto; ou imaginoso e fantasioso. Por isto, o homem somente será verdadeiramente humano quando traçar um limite às suas potencialidades ilimitadas. E estes limites se constituirão em seu caminho de vida. É neste caminho que se situa a ética, como normatizadora da vontade ilimitada de busca de poder. Quando o homem não se coloca limites éticos, a história demonstra que sua ânsia pelo ilimitado o encaminha pelo egoísmo, pela ganância, pela vaidade, pela dominação, pela excitação dos vícios e das paixões, pelo fantasioso e imaginativo sem fronteiras. E o homem, que se deixa levar por suas potencialidade ilimitadas, necessariamente se torna violento. Pois tenta arrebatar aos outros, de forma indevida, o que ele não possui mas deseja. Esquece que ele apenas é um ser que participa finitamente das dimensões do Ser-em-si. Por isto, para o homem ser verdadeiramente humano, necessita absolutamente de conhecer-se a si mesmo, como já ensinava Sócrates na Antiguidade. Assim o socrático "conhece-te a ti mesmo" se torna o ponto de partida da humanização em nossa sociedade.

Esta busca de auto-conhecimento nos mostra que, num sentido ontológico, fundamentalmente todos os homens são iguais. Todos possuímos tendências, aspirações e potencialidade ilimitadas; por isto, também, todos necessitamos limitar nossas tendências, traçando caminhos de vida. Justamente no traçar destes caminhos se diferenciam as culturas e as civilizações. Há, assim, nos diversos povos, diferentes sistemas de educação, de governos, de religiões, de hierarquia de valores.

É claro, no nível ontológico, pelo qual todos os homens são fundamentalmente iguais, não podemos mundar o homem. Mas a nossa grande chance de ação se situa no nível sistêmico. E em relação a este nível sistêmico pretendo fazer algumas considerações sobre as violências que afligem dramaticamente a realidade brasileira.

2. Aspectos sitêmicos da imoralidade e violência brasileira

A constituição ontológica do homem nos previne contra falsas esperanças de que em algum dia chegaremos à "terra sem males", onde não existirá mais violência. O homem possui em sua própria natureza a raiz da imoralidade. A sua vontade não controlada de poder-ser-cada-vez-mais o torna violento.

Esta imoralidade e violência do homem estão registradas na história. Ao mesmo tempo registra-se também na o processo civilizatório do homem. Na história de todos os povos encontramos os elementos do bem e do mal coexistindo. E no entrecruzamento do "amor à vida" e do "amor à morte" os grupos humanos, muitas vezes, devem optar novamente pelo caminho a seguir. Neste vai-e-vem das opções históricas verifica-se se uma determinada sociedade se orienta pelos caminhos da dignificação do homem, ou pelos caminhos da degradação. Neste sentido, quais foram os encaminhamentos da sociedade brasileira até agora?

Segundo alguns relatórios, já antes de os portugueses pisarem no Brasil, as condições estavam postas para se implantar aqui um sistema violento e imoral. Os relatos sobre a situação moral de Portugal, no tempo das descobertas, dão conta de que a passos agigantados se produzira a corrupção dos costumes. A sede de riquezas, inoculada pelos descobrimentos, desenvolvera as paixões do jogo, do luxo, da libertinagem. Mesmo nos mais inocentes jogos os viciados especulavam com enormes somas.

Sobre o período de D.João III (1521-1557) Alexandre Herculado relata, em sua "História da origem e do estabelecimento da Inquisição em Portugal", que a imoralidade pululava por toda parte: o povo ignorava a religião. Havia escravidão em Portugal, e as cenas mais terríveis da Cabana do Pai Tomaz não assumiam cores tão carregadas como seriam as da descrição da escravidão dos mouros e negros, além dos outros trazidos de diversas regiões. Os filhos de escravos eram marcados na cara com ferro em brasa. Quase todos eles não cativos nas guerras ou comprados já como escravos, mas homens livres arrebatados da pátria por navegadores cruéis e violentos.

Em relação aos mesmos tempos L.A. Rebello da Silva relata que era profunda a ignorância destes tempos; mesmo na Corte poucos sabiam ler e escrever. Feitiços, benzimentos, agouros, adivinhações, conjurações diabólicas e as práticas mais supersticiosas constituiam o fundo da religião popular. Em relação aos séculos XVII e XVIII o mesmo Rebello da Silva ainda informa que o país ia-se arruinando na mesma progressão em que o luxo levantava o colo. Fazia-se tudo por dinheiro: uma cobiça insaciável devorava a todos. Por outro lado, havia muita miséria. E nunca correra-se tanto atrás de dinheiro e de ouro como nestes tempos de miséria.

Segundo Oliveira Martins, o geral da população que o Brasil adquiriu nos primeiros tempos foi a pior possível. Para cá vinham carregamentos de mulheres mais ou menos perdidas. O Brasil era, além disto, asilo, couto e homísio garantido a todos os criminosos que aí quisessem ir. Em pouco tempo, além da escravidão dos índios, aprisionados em guerra ou não, veio também a dos escravos africanos, trazidos para cá com extrema violência nos navios negreiros. Algumas capitanias tornaram-se o valhacouto de contrabandistas. Criminosos havia que cometiam muitos crimes, mas ficavam impunes se mudassem de uma para outra capitania.

Anchieta, em sua "Informação sobre o Brasil", escrita em 1584, se queixa de que os maiores impedimentos de que sofria a catequese dos índios provinham dos próprios portugueses, que não tinham nenhum zelo pela salvação deles. E acrescentava: os que pior vivem são os que mais tratam com os portugueses, ensinados de seu mau exemplo e, muitas vezes, pior doutrina.

Segundo o historiador Varnhagen, nestes tempos, o "Código Filipino" castigava com degredo para o Brasil nada menos do que 256 crimes ou faltas. O resultado de tudo isto foi, embora parra cá também viesse gente muito boa nas expedições, que no primeiro século de nossa história se apurasse aqui a desmoralização. O mesmo Varnhagen ainda afirma que a depravação da população se tornara tal que, às vésperas da invasão holandesa, o Brasil bradava aos céus, por causa de seus costumes pervertidos, pedindo uma invasão.

Em 1657, em um extenso relatório que Antônio Vieira enviou do Maranhão ao Rei, ele protesta contra as injustiças, tiranias e violências praticadas contra os índios que, segundo ele, excediam as feitas pelos portugueses na África. Afirma Vieira que, em 40 anos, matara-se por esta costa e sertões mais de dois milhões de índios, e mais de quinhentas povoações haviam sido exterminadas. E disto nunca se vira castigo. Pelo contrário, requeria-se ainda ao Rei para continuar com esta matança. Em outra ocasião Vieira já havia escrito que esta terrível escravidão disfarçada dos índios era mantida pelos próprios governantes.

Em 1707, no primeiro encontro dos bispos do Brasil na Bahia, embora não fosse condenado o sistema da escravidão, contudo os bispos exigiam tratamento humanitário para os escravos, ameaçando com excomunhão os senhores de escravos desumanos, atrozes e violentos.

No século XIX, o francês Debret, um dos fundadores da Escola de Artes do Rio de Janeiro, a convite de D. João VI, retratou a vida real do Brasil em pranchetas, impressas posteriormente na França. Na época, o Brasil contestou as cenas de Debret, afirmando que no Brasil não havia torturas, e os escravos não eram maltratados. Hoje os historiadores afirmam que Debret ainda enfeitou a realidade.

O Conde de Gobineau, diplomata francês do séc. XIX no Brasil, escreveu em sua obra de "Filosofia da História" que a população brasileira não teria estrutura para ser diferente do que é.

Além destes relatos poderíamos mencionar a Guerra do Paraguai, em que o Brasil foi parceiro de um verdadeiro genocídio de um povo. E, certamente, os soldados brasileiros, que participaram desta guerra, não voltaram dela mais humanizados!.

Embora as referências históricas e literárias que mencionei deixem de lado muita coisa boa, contudo nos mostram que não somos um povo tão bom, compreensivo, cordial, afetivo, simpático, filantrópico, religioso e pacífico como, muitas vezes, nos quiseram ensinar. Um estudo objetivo da história do Brasil nos mostra as terríveis injustiças, crueldades, opressões e violências praticadas nesta terra no decorrer dos séculos. O fato de hoje existirem sequestros, estupros, assaltos, homicídios, prisões superlotas e infernalmente desumanas, torturas, corrupção, perversão, pedofilia, esquadrões da morte, opressão, exploração, ignorância, arrogância, falta de interesse pelo bem comum, marajás políticos corruptos e gente da elite da pior espécie, pistoleiros, torturadores, contrabandistas, traficantes de drogas, poluidores da natureza e exterminadores de animais... não é nenhuma novidade, nem gratuito. O Brasil foi isto desde as origens. Esta realidade, de certa forma, era ocultada à sociedade em geral. Procedia-se analogamente ao que se diz do avestruz: esconde a cabeça na areia esperando que o perigo passe. No Brasil queria-se esconder a violência do passado para não admitir as suas consequências. Hoje já não é mais possível esconder esta realidade. O Brasil, muitas vezes, expulsou, ou neutralizou aqueles que tentavam alertar para esta situação, taxando-os de subversivos ou não patrióticos. Hoje estamos colhendo os frutos desta ocultação, e falta de decisão para desencadear um processo civilizatório, que poderia ter revertido estas falhas sistêmicas. Formaram-se, assim, como que duas sociedades no Brasil: uma parcela da população é composta de pessoas simpáticas, alegres, cordiais, religiosas, pacíficas, anti-baderneiras, muito sensíveis a qualquer crítica; mas, ao mesmo tempo, burladoras das leis, corruptas, imorais, interessadas somente no que lhes convêm, e sem nenhuma noção de bem comum. Esta sociedade hoje está escandalizada com a violência, com os sequestros, com as greves, com os cheira-cola, com os flanelinhas, com os sem-terra, com a reforma agrária, com os posseiros, com os favelados, e a todos eles consideram maconheiros. Para esta população, o povo (eles não se consideram povo!) não presta. Consideram que a solução para os problemas da violência é a repressão, e até a pena de morte.

Do outro lado temos aquela parcela da população que não tem escola, que dá cachaça aos bebês para dormirem, ou não sentirem a dor de barriga por falta de comida, que cata lixo, que aluga crianças para pedir esmola, que não tem saúde, que não encontra trabalho e se sujeita a qualquer coisa para sobreviver. Isto faz com que haja no Brasil uma sociedade sem Lei, sem bondade, sem compreensão nem cordialidade, mas regida apenas por uma instintiva luta pela vida. O que, naturalmente, se expressa pela violência.

Mas, qual seria a solução para este quadro bastante tenebroso que ainda perdura na nossa sociedade? A pena de morte? Quem assim pensa está propondo um erro histórico ainda maior do que aquele que motivou a situação atual. Violência não se resolve com ainda maior violência. Há outros caminhos humanitários que, certamente, podem minimizar a insegurança que nos aflige. E estes caminhos, necessariamente, terão que distender-se pelas sendas da ética. Pois, a ética é como o cimento da coesão social. Vejamos alguns indicativos neste sentido.

3. Bases pré-éticas para uma sociedade ética

Ontologicamente não é possível modificar o homem, mas sistemicamente a sociedade poderá ser organizada no sentido da dignidade e humanização cada vez maior deste homem. Para isto é necesssária uma vontade política de implementação de um verdadeiro processo civilizatório. E é justamente esta vontade que faltou, até agora, na política brasileira. Parece que alguns projetos sociais de hoje se situem no horizonte de tal propósito. Neste processo não existe uma ética pronta, que se possa impor como uma carapuça por cima das pessoas. Na medida em que um povo se civiliza a ética avança, assume forma e se solidifica. A ética nada mais é do que o "cimento" que une projetos, ideais, costumes, valores e símbolos de uma sociedade. E, para que se possa constituir uma ética verdadeira, será preciso que o homem, nesta sociedade, ultrapasse o limiar das condições sub-humanas.

Quando, por exemplo, uma família não possui as condições mínimas de moradia, de alimentação, de trabalho, de escola, de saúde, os filhos aparecerão na rua como menores abandonados, ou desassistidos, com todas as outras consequências sociais. E qual a solução para isto? a repressão aos menores? Absurdo. É preciso enfrentar as causas desta miséria e delinquência infantil. A causa não está nos menores, mas na sociedade que não zela pela constituição e consistência de suas famílias, para que tenham condições de abrigar os seus filhos com dignidade.

Quando a qualidade de vida de uma população está abaixo do limiar da dignidade humana, os homicídios e o desrespeito à vida se multiplicam. Então já não se respeita a vida como algo sagrado, e se mata por qualquer ninharia.

A organização sistêmica da sociedade brasileira ainda é tão rudimentar que o relacionamento entre as pessoas, muitas vezes, se articula em níveis infra-éticos. O trabalhador é explorado, a distribuição de renda é vergonhosa, a escolaridade baixíssima, a saúde, moradia, alimentação descuidadas, a justiça precaríssima... Para reverter isto não basta a vontade de um. É necessária uma opção política global, que prestigie o desenvolvimento das potencialidades humanizadoras do ser humano, como: a racionalidade, a sociabilidade, a liberdade, a responsabilidade, a honestidade, etc.

Embora, no momento, pareça a muitos que a sociedade brasileira esteja num processo de deteriorização crescente, sem perspectivas de saída, com uma desmoralização cada vez maior, com homicídios e violências de toda ordem, estou convencido que estamos, pela primeira vez na história deste país, numa encruzilhada que nos permite iniciar a construção de uma sociedade ética. Se este processo vai levar uma, duas, três ou mais décadas, não sei. Mas há indícios de uma nova fervura. A pressão social se torna cada vez maior. Não sabemos qual a pressão que a "panela" suportará. Só sei que, sem o aumento das pressões sociais, a mentalidade dos responsáveis pelo sistema, que até há pouco era predominante e causador de nossas mazelas, não se alterará.

Um fator positivo de mudança do momento histórico em que vivemos é o crescimento da consciência coletiva em relação aos problemas que nos afligem. O primeiro passo de toda mudança é saber do que se trata. Nisto hoje nos ajuda a mídia. Embora grande parte dela esteja nas mãos de sonegadores da verdade total, manipuladores de informações, que até podem contribuir para gerar maior violência, contudo, a leitura crítica das informações que recebemos nos permite criar uma imagem bastante adequada sobre o que está ocorrendo.

Se quisermos uma sociedade ética, isto é humana, é urgente que políticos, elites econômicas e culturais revertam a sua mentalidade em função do bem comum de toda a população. Enquanto se escolherem políticos que buscam apenas o poder pessoal, e as elites econômicas permanecerem insensíveis à miséria, à ignorância de seus concidadãos, certamente os crimes de toda ordem continuarão a ser o retrato do Brasil. Para nossa vergonha. E, segundo se atribui a Capistrano de Abreu, bastaria que a constituição brasileira tivesse apenas dois parágrafos: 1. Que todo brasileiro tivesse vergonha na cara; 2. que todo o restante fosse revogado.

Diante do que expus, não há que negar, a sociedade brasileira, por um lado, está marcada pela violência. E uma violência, muitas vezes, hedionda. Para coibir esta violência, será que a solução seria a pena de morte?

4. A hipocrisia da pena de morte para o Brasil

Se a sociedade brasileira, representada por suas lideranças políticas, tivesse feito tudo, no decorrer de sua história, para convencionar uma sociedade ética, e os crimes, apesar disto, não cedessem, até se poderia admitir uma discussão sobre a conveniência ou não da pena de morte. Mas, se isto fosse o caso, pode-se estar certo que ninguém mais levantaria este problema. Pois, na medida em que os povos se humanizam, excluem a pena de morte de sua constituições. Hoje, toda a Comunidade Européia aboliu a pena de morte. No Brasil, com uma organização social rudimentar, e impregnada de imjustiças sociais históricas as mais absurdas, como então falar em pena de morte? É uma vergonhosa hipocrisia pensar nestes termos. A solução é um verdadeiro processo civilizatório, que supere as monstruosidades das injustiças e ignorâncias sociais e culturais.

Quando as condições mínimas de uma vida humana não são dadas, como avaliar eticamente o comportamento humano? No meu entender, para não sermos hipócritas, em vez de pensarmos em pena de morte, repressão extrema, e coisas que tais,. construamos um país com educação, com economia justa, com trabalho, moradia, justiça, alimentação e saúde para todos os cidadãos. E quando isto ocorrer os crimes descerão a um patamar absorvível. Demonstrar simpatia pela pena de morte já é um incentivo para que aumentem os esquadrões da morte, os homicídios, a justiça pelas próprias mãos e a violência institucionalizada.

Optemos por uma sociedade ética, humanitariamente civilizada e a violência decrescerá.

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