Recordando a minha origem e a minha infância na roça

RECORDANDO A MINHA ORIGEM E A MINHA INFÂNCIA NA ROÇA

Costumo com frequência recordar a minha infância vivida até os dez anos, inicialmente na Fazenda Rabicho ou Barriguda, onde nasci e mais tarde na Fazenda Ribeirão ou Pé da Serra, de meus pais Raimundo Ferreira do Prado e Julieta Antonio da Rocha, em Buritis, no sertão quase inóspito de Minas Gerais e, ocasionalmente, também na Fazenda Lamarão, de meus avós maternos Honório Antonio da Rocha e Teodora Antonio da Silva. Recordar o passado, dá-me a leve sensação como se estivesse retornando fisicamente àquelas paragens, andando pelas estradas, campos e matas, apreciando a diversidade da natureza, a beleza das árvores, suas formas nos mínimos detalhes, os animais silvestres, o cantar das aves, o murmurejo das águas dos riachos: Rabicho, Barriguda, Salobro, Macaúba, Ribeirão, Curral Velho, Lamarão, Lamarãozinho, somando-se à preciosidade do rio Urucuia, um dos principais afluentes da margem esquerda do rio São Francisco, com suas águas límpidas, suas curvas, seus peixes, sua história e suas lendas...

Nessas andanças da imaginação, reencontro todo aquele cenário bucólico, virgem e denso, alegre e rústico, onde tenho a nítida percepção da presença de meus pais, de minhas irmãs: Olga, Ordália, Neli e Dina, de meus avós, dos companheiros José Rodrigues de Moura (o Nego de Paulina), do Manoel, afilhado de Roselmiro Antônio Pires, o Miro administrador da fazenda, sua esposa, Arci, de nome verdadeiro Arciliêta Santana Prado, mulher de voz firme e determinada, mãe de Eustáchio Santana Prado, conhecido por Gilinho, amigo de muitas brincadeiras, de meu tio Cláudio e os tios de minha mãe, além de toda a vizinhança, enfim, de tudo que havia ali, como se voltasse no tempo e o tempo ali parasse.

A sede da Fazenda Lamarão ficava a 18 quilômetros de Buritis, na margem direita do rio Urucuia, rente da estrada que recebia o nome de estrada real, pela qual se dava o trânsito de pessoas a pé, a cavalo ou em carro de boi. Não me cansava de comemorar quando o meu pai me deixava passar alguns dias por lá, tendo aquele lugar marcado profundamente a minha infância. Não sei definir direito, mas talvez porque se tratava de uma Fazenda bem organizada para os padrões da época e da região.

A Fazenda Rabicho ou Barriguda, também de grande extensão territorial, com a sede na margem direita do córrego Rabicho, era bastante movimentada, entretanto, não mantinha mais a tradição do tempo de meus avós paternos, Marinho Ferreira do Prado e Maria Cândida Lopes, (conhecida como dona Maroca). Já na Fazenda Lamarão predominava a tradição de ser encontro de fiéis por ocasião de pouso dos padres que viajavam a cavalo de Paracatu ou de Unaí com destino a Buritis para celebração das festas de setembro em honra e glória à Padroeira N. Senhora da Pena. Dá-se para notar as dificuldades e o atraso da época. Estou falando do fim da primeira metade e do começo da segunda metade do século XX, tudo vivido dentro de uma simplicidade comovente. Não havia automóveis, energia elétrica, geladeira, rádio, porém, ninguém reclamava a falta de nada, nem passava fome. Aliás, esse era um fato normal, predominante nas outras fazendas do Vale do Urucuia, no sertão agreste de Minas.

A venda de gado só acontecia uma vez por ano e tinha que ser para o mesmo comprador tradicional, que geralmente vinha a cavalo de Paracatu ou de Unaí. O gado disponível para vender, era reunido com antecedência em pastos ou largas ao redor da sede, de forma que, no dia que chegasse o comprador, estivesse em condições de ser mostrado e combinado no curral. Não havia, portanto, a possibilidade de reuni-lo em cima da hora, porquanto naquele tempo as fazendas não eram cercadas nas divisas com os confrontantes. Apenas alguns pastos ou o que se costumavam chamar de largas ao redor da sede principal é que eram cercados. O gado era criado em regime extensivo, isto é, solto misturado com o gado de outros fazendeiros vizinhos. Esse procedimento de cria, recria e de venda era normalmente adotado pela maioria dos fazendeiros da época. Um exemplo interessante, é que não havia extravio nem roubo de gado.

Tive pouco tempo para brincar na infância, pois era solicitado para trabalhar na lida da roça, do gado ou nas tarefas com o carro de boi. A lista de tarefas era copiosa e longa. E sem reclamar nada, procurava fazer um pouco de tudo, apesar da tenra idade e da visão futurista que tinha de vir a conquistar outros espaços na cidade grande. A vida era bastante árdua, mas reinava o sossego e a paz. Não existia a violência do campo, nem movimentos pela posse da terra. Nenhum fazendeiro se sentia ameaçado. Quem não tivesse um pedaço de terra morava tranquilamente nas fazendas como agregado. Podia plantar no sistema de meação que consistia de um acordo verbal entre proprietário e agregado, de tal modo que, após a colheita, era feita a partilha, cabendo a cada parte a quantia devida. Havia muito respeito e lealdade. Os agregados eram independentes, com liberdade para trabalhar para quem quisessem, porém, na mesma igualdade do valor pago pelo dia de serviço, costumavam dar preferência para os donos das terras onde viviam, prevalecendo o princípio da parceria, do respeito e da camaradagem.

Todo trabalho era manual, com pouco preparo de solo para plantio. Não existiam máquinas agrícolas, técnica de manejo, sementes selecionadas, defensivos, venenos poluentes, devastação de matas, de cerrados, etc. Geralmente só se plantavam o necessário para a subsistência familiar. Consequentemente, não ocorriam grandes agressões contra o meio ambiente e à natureza.

As pastagens eram nativas. O gado parecia mais saudável, dependia menos de cuidados e de menor controle de vacinações.

Não havia correria, inflação, ganância por grandes lucros, apelo de consumo, nem o estresse de prejuízo eminente. O povo parecia mais unido, mais feliz! Até os animais viviam protegidos na natureza que lhes dava segurança, berço e vida.

Num momento desses, costumo dizer que, o progresso tem lá as suas vantagens, mas também as suas desvantagens. Hoje é bom também, mas nunca como era antes...

Florianópolis (SC), 17 de abril de 2003

Onofre Ferreira do Prado
Enviado por Onofre Ferreira do Prado em 26/11/2009
Reeditado em 13/09/2022
Código do texto: T1946093
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