Da porta-bandeira e do mestre-sala

Dificilmente muitos não ficam fascinados com o maravilhoso casal de porta-bandeira e mestre-sala. Para lá e para cá, de um lado para o outro, a incansável dupla leva o pavilhão da escola. Com passos leves e certeiros, lábios abertos e braços pelo ar, eles caminham na encantada e iluminada avenida nos dias de carnaval. O título deste artigo é mais que uma homenagem ao casal, ele traz em destaque, e não por acaso, a porta-bandeira, haja vista que sempre as pessoas tendem a mencionar em primeiro lugar o mestre-sala. Obviamente, nada contra. Mas que me perdoem os carnavalescos e os machistas de plantão, mas a porta-bandeira é fundamental.

Parece-me, contudo, que não existe uma narrativa comum das origens desse casal. Provavelmente, pode-se tecer um tronco comum em sua história: a bela dupla de porta-bandeira e mestre-sala tem suas origens na miscigenação de etnias diferentes. Neste caso, vale lembrar o encontro dos índios, dos portugueses e dos negros ainda nos tempos coloniais. Verifiquei três possibilidades de emergência, maturação e desenvolvimento da dupla e de sua singular dança.

A primeira possibilidade tem por fundamento as danças, rituais e momentos religiosos oriundos dos orixás, uma espécie de mistura da cultura africana com a indígena já existente entre nós. Os que conhecem os rituais do candomblé ou mesmo da umbanda se atentar para a possibilidade levantada vão se lembrar do casal ou mesmo da porta-bandeira com seu leve e majestoso balançar. Ainda no mesmo caminho, é provável que os negros nas senzalas reproduziam as danças que viam na casa grande. Jocosamente, eles reproduziam os passos dos senhores que trouxeram a dança da corte do século XVIII ou dos saraus de Luiz XV na França. O fenômeno é hilário: imaginem escravos e escravas em meio a fogueiras, batucadas e danças improvisando bandeiras com movimentos e novas formas de corte. Não é por força do acaso que a roupagem e a indumentária da dupla nos dias de hoje - quando as escolas não abandonam a tradição - nos lembram as danças da corte. É simplesmente maravilhoso tudo isso.

A segunda possibilidade que abre caminho para o desenvolvimento do casal se assenta na existência dos ranchos e dos cordões no Brasil nos anos de 1800, nos quais o mestre-sala tinha um importante papel. Ele funcionava como uma espécie de guardião dos participantes do cordão. A ele cabem os segredos e a manipulação da navalha a qual usava com maestria nas mãos e entre os dedos dos pés. Não era qualquer um que possuía esse privilégio. O mestre-sala navegava bem no caldo cultural da sociedade e tinha a noção dos protocolos e das etiquetas próprias das avenidas e desfiles, não por acaso ele também mantinha a festa dentro dos parâmetros morais e dos bons costumes.

A terceira abertura que nos oferece a história do casal e o desenvolvimento de sua dança está no início do século XX. Cordões e ranchos eram acompanhados de bandeiras. Em geral, uma mulher, com uma roupagem parecida com a das baianas era acompanhada pelo mestre-sala, o qual, por função devia proteger a bandeira e sua companheira. No desfile dos blocos e cordões eram comum agremiações rivais se encontrar e travar uma verdadeira guerra de talcos, farinhas, água e tudo o mais que fazia com que a polícia raramente não se envolvesse. O mestre-sala de uma agremiação rival, chamado naquele período de “baliza”, tentava surrupiar a bandeira alheia. Por vezes a ideia era cortá-la. Historicamente as bandeiras foram sendo confeccionadas de cetim ou seda numa clara tentativa de dificultar a empreitada do mestre-sala rival e favorecer o trabalho da porta-bandeira que, por tempos portou um grande estandarte e tinha como acompanhante os denominados “portas-machados”, verdadeiros arautos da bandeira da escola. O resgate de um pavilhão furtado era amigável indo a porta-bandeira dançando levemente com seu mestre-sala no intuito de retomar a bandeira querida. A humildade era a alma do ritual e a retomada da bandeira o espírito do carnaval.

Atualmente, a bela dupla às vezes ainda traz os seus guardiões. Na maioria das escolas já se percebe mais de uma dupla tendo por princípio a existência de um primeiro e mais importante casal que deverá ser julgado. Também foram criados casais mirins e massificaram as bandeiras retirando em parte o brilho do primeiro casal. Todavia, sua importância ainda é inquestionável. A dupla se tornou um quesito importante, fala-se de casais que treinam o ano todo e que são titulares em algumas escolas, além de respeitados no morro e no asfalto.

É forçoso frisar que cabe ao casal não perder o bailado, o teatro, o talento, a integração e sua evolução. Talvez mais que isso, poucos são capazes de repetir, criar e refazer as coreografias singulares. É bom lembrar que eles não sambam: estão em um mundo de corte revelando o enredo, mostrando a escola e defendendo a bandeira, um elemento central e certo que une em um maravilhoso jogo o homem, a mulher e a escola. É grande a responsabilidade jogada sobre os ombros do casal. A ostentação da roupa não deve atrapalhar a evolução. A porta-bandeira sempre deve ser bela, vibrante e formosa; o mestre-sala maravilhoso, vigoroso, alegre e forte. Não pensem que estão somente a bailar, chego a pensar que estão literalmente trabalhando: um erro e a perda dos pontos joga uma escola inteira pelo chão. Em alguns lugares eles são elementos de desempate; em outros é um quesito que não se aceita a perda de pontos. A bandeira de uma escola de samba é tão importante que várias pessoas chegam mesmo a beijá-la, passá-la no rosto ou esquecer de soltá-la depois de um ataque histérico. Em geral, o mestre-sala a oferece, mas não sem o fantástico cerimonial, um verdadeiro ritual de rodopios e coreografias singulares. A ideia é revelar a simpatia e a bandeira, o orgulho pela companheira e o respeito pela escola e pelo trabalho de todos. O casal é mais que um símbolo. É a peça fundamental desse grande edifício chamado carnaval e, finalizando, explico o porquê.

Hodiernamente, as escolas têm evoluído e se rendido ao canto da sereia da "moderna" sociedade de mercado. A responsabilidade do casal aos poucos tem sido adequada aos princípios dos manuais dos presidentes das escolas, carnavalescos e jurados. Para se ter uma ideia: nem tudo é permitido ao casal que ao iniciar a evolução não pode mais parar. Está ele preocupado com os pontos, os quais podem ser perdidos diante de um pequeno vacilo, um piscar de olhos, um escorregão ou perda de parte da fantasia. Também não podem perder a harmonia e a vivacidade tomando cuidado com a graça, a beleza, a leveza e a majestade conquistada ao longo de muitos anos. Os jurados cobram ainda uma sintonia, uma sequência de movimentos nos quais a dupla não pode perder o bailado, a integração e a troca de olhares. Não é permitido colocar o joelho ao chão, movimentos bruscos e a perda do ritmo do samba. Apesar de bailar e não sambar, o importante é concatenar o cortejo com o samba-enredo deixando clara a proteção do pavilhão por parte do mestre-sala e a alegria em carregá-la por parte da porta-bandeira. A lembrança do rancho e dos cordões é clara: cabendo ainda ao mestre-sala - a despeito das mudanças nos critérios de julgamento e variáveis culturais - proteger e evidenciar por meio de sua coreografia a bandeira e sua proprietária. Também é de sua inteira responsabilidade revelar as cores, o enredo e a importância do pavilhão, o símbolo maior da escola que, no caso em questão, e, confirmando minha homenagem, deve continuar a ser um símbolo eternamente feminino.

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Lúcio Alves de Barros - mestre em sociologia e doutor em ciências humanas pela UFMG. Professor da UEMG (Universidade Estadual de Minas Gerais), da Faculdade ASA de Brumadinho e organizador dos livros, “Polícia em Movimento”. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006 e “Mulher polícia e sociedade”. Brumadinho: Ed. ASA, 2009.