A opressão dos oprimidos: um escrito indignado

Um homem, ao sair de um carro chamado popular, com dedos em riste grita com uma mulher negra e triste que empurrava uma carroça cheia de papelão. Um aluno xinga o seu colega e diz que vai acertar as contas no final da aula, outro, impertinente, ofende sua colega jogando-lhe cadernos e xingando nomes que não cabem aqui escrever. Dois garotos montados em uma moto aproveitam a saída de banco e roubam um professor que corria para casa, uma mulher berra no mesmo dia com o trocador por causa de 10 centavos que ela não havia (ou havia) entregue a ele e, por último, policiais aproveitam o dia para dar uma geral em jovens brancos e negros em um bairro de Belo Horizonte. Muitos acontecimentos e um tronco em comum: a opressão oriunda de oprimidos.

O quadro não poderia ser mais atual, triste e estarrecedor: uma violência silenciosa, simbólica, visível e invisível perpassa as relações entre os oprimidos que mencionei. São relações que o leitor pode dizer que são normais e que sempre existiram em todas as sociedades e em todas as épocas. Não duvido, somos seres humanos que não deram certo. Todavia, não pode ser por acaso que elas têm se tornado mais freqüentes e ostensivas. Também não é por força do acaso que elas carregam uma nova roupagem e, não poucas vezes, passam despercebidas pelas pessoas. Podemos culpar muitas coisas: o apego ao individualismo, a cultura do dinheiro, a sensação de insegurança, a “sociedade líquida”, a “pós-moderna”, o fim das utopias, da história, a queda da autoridade e por aí vai.

Mas a questão é clara: estou me referindo às relações nas quais pessoas já frágeis no campo econômico, social, cultural e político tendem a fortalecer os grilhões e os mesmos mecanismos de opressão dos quais são vítimas. É como se não bastasse a opressão proveniente daqueles que, por sorte, corrupção, fortuna, família e sobrenome conseguiram navegar e permanecer nas escalas mais altas de dominação e poder.

O problema pode não ser hodierno. Percebo aqui e acolá um desejo enorme na maioria das pessoas de fazer o mal. Dito de outra forma: “de levar vantagem em tudo”, “dar manta no outro”, “sair por cima”, “dar prejuízo ao outro”, “envergonhar o adversário”, “humilhar o oponente”, “desmascarar a coitada”, “demitir o doente” e “matar - de diversas maneiras - o inimigo”. O novo neste cenário diz respeito ao perfil dos algozes. Nos tempos atuais eles não mais escondem a cara. Andam como deuses e se sentem melhor do que os outros. Se são patrões e autoridades humilham os funcionários e acham que tem o direito de assediar a menina bonita e jantar a empregada. Se são trabalhadores e fazem parte dos que vegetam na base da pirâmide social, logo tratam de puxar o tapete do colega, fofocar sobre a mulher bonita no local de trabalho, lamber o saco do mais forte, empurrar a velhinha no ônibus, buzinar com o sinal fechado, não devolver o dinheiro encontrado, ameaçar os inimigos, roubar no jogo e colar na prova do professor que diz respeitar. Algozes e vítimas por vezes são confundidos. Não me estranha que muitos estão em postos de poder e são reconhecidos como empreendedores, capazes e qualificados. Mesmo com tantas credenciais tais pessoas não deixam de mostrar os dentes e, se for necessário, levam a cabo a destruição do diferente, principalmente dos mais fracos e frágeis. Em geral, não passam de covardes, navegam na falsidade e, como já disse, fazem questão de se sentirem melhor do que os outros. Para isso não poupam forças para acumular dinheiro, veículos, imóveis, móveis e agregados, muitos agregados pelos quais diz ter muitas amizades. É o fim das relações racionais e puras.

Dificilmente saberemos onde tudo começou. Uma frase que se tornou lapidar é a de que “o mundo está acabando”: às vezes penso que está mesmo. Está caminhando para o fim devido a nossa falta de compaixão para com os que possuem menos. Acabando por causa de nossa má vontade em ajudar; acabando devido à necessidade de reconhecimento desmerecido. Estamos indo para o brejo porque abrimos mão da fraternidade e batemos palma para a hipocrisia falando para as crianças que não é mais importante o mérito e tampouco a capacidade de trabalho. Seguimos jogando indiretas para aqueles que não sabem ler o não dito e nos lixando da condição humana porque cultivamos o dinheiro e abraçamos o aparecer, beijamos o ter e fingimos o ser.

A discussão pode parecer pessimista, mas creio ser difícil pensar de outra maneira. Vejamos: na atual conjuntura de nossa política corrupta com autoridades guardando "comissões" em meias, cuecas e bolsas encontro pontos a meu favor. Na realidade da rua, na qual tornou-se comum pancadas, conflitos e brigas por causa do trânsito lento e tempo sempre em falta ganho mais um ponto. Nos roubos de cada dia, nos quais o ladrão ainda ri ao roubar o pobre e esse se levanta sem esperanças que a polícia o alcance marco mais um ponto. No patrão que rouba a mulher, a filha ou namorada do empregado ganho muitos pontos. Nos professores que enrolam suas aulas e nos alunos violentos ou que colam sem parar bato de goleada o juiz corrupto, o jogador violento, o atacante que faz o gol com as mãos e por aí vai.

O fato é que o mar não está para peixe e a triste realidade é vivenciar a opressão do próprio oprimido. Lembro-me dos capitães do mato ou dos capos na segunda guerra mundial. Mas não me sai da memória o homem gritando com a mulher que empurrava o lixo. Pensei o que realmente era lixo por ali e compreendi que vivemos no autoengano. Não somos humanos. Maltratamos o próximo por nada. Perdemos a capacidade de cuidar. Utilizamos o outro como máquina e matamos sua subjetividade. Fingimos nas épocas santas que tudo está bem. Somos hipócritas na igreja e medimos as pessoas pelo que elas possuem. Alguém sempre tem que levar vantagem em tudo. Bateram nossa carteira e não vimos. Não pensamos no mundo que deixaremos para nossos filhos e netos: “estamos nem aí”. Como pensar no cuidado dos oprimidos pelos próprios oprimidos parece utopia; o negócio parece estar sendo a “curtição” da podridão da condição humana, bem como o gozo das coisas efêmeras, vazias e supérfluas, pois talvez seja essa a única alternativa que produzimos antes da chegada da morte e do momento crucial de lambermos nossas próprias feridas.