Filosofia, docência e transposição didática

Wilson Correia*

O vocábulo transposição deriva do latim “transponere” e significa ato de “transpor”, deslocar algo para o lado oposto. A palavra “transpor” remete à idéia de “ultrapassar”, “galgar”, “exceder”, “pôr em lugar diferente”. Empregada no campo da matemática, por exemplo, “transposição” significa “trocar a ordem das razões numa proporção”. Em música, quer dizer “passar para outro tom”, como registram dos dicionários. Já o termo “didática” vem do grego “techné didaktiké”, que nomeia o ato de “ensinar” e de “fazer aprender”. Tem sido empregado para nomear o conjunto de preceitos e diretrizes que visam a tornar o ensino prático, produtivo e eficaz, auxiliando a docência a promover a mobilização de métodos adequados aos processos de ensinar e aprender.

Desse modo, a junção dos dois conceitos resultou em transposição didática, a qual nomeia a atividade de submeter os conhecimentos originariamente produzidos no campo da pesquisa científica ou da investigação filosófica a tratamentos apropriados para que se tornem ensináveis na escola. Isso significa que os vários saberes curriculares devem chegar recodificados à sala de aula, de maneira que os estudantes possam lidar com eles visando ao próprio aprendizado, potencializador do desenvolvimento biológico, psíquico, cognitivo, cultural e social no qual se encontram.

Vários elementos podem ser considerados no trabalho de transposição didática, entre eles os:

a) Contextuais: a história, a cultura e a sociedade em suas dimensões econômica, política e ideológica.

b) Epistêmicos: os saberes escolares curriculizados e considerados válidos e pertinentes à escolarização, bem como aqueles que não logram aceitação curricular.

c) Éticos: os princípios, os valores, as normas e as regras morais que os humanos legitimam e que atravessam o processo da educação escolar.

d) Humanos: o professor e o aluno em situações experienciais de ensino e aprendizagem, ao lado dos demais profissionais atuantes no campo da educação escolar, tanto quanto a comunidade de que a escola faz parte.

e) Metodológicos: os procedimentos específicos de ensino e aprendizagem, tomados como caminhos capazes de conduzir o professor ao êxito na docência e o aluno ao aprendizado significativo.

Nesse contexto surge relevante a figura do professor. Ele é o sujeito social que, ao exercer a profissão, constrói elos entre educação e mundo, vida e escola, saber vivido pelo aluno e conhecimentos a serem apreendidos nos tempos e espaços da instituição de ensino, considerando sempre a história que ajuda a fazer, a sociedade de que participa e os estilos existenciais assumidos pelos seres humanos que o cercam.

O sentido do quefazer docente enraíza-se no chão da cultura, essa que delineia o viver cotidiano, as práticas individuais e coletivas, as formas de vinculação humana e os modos de se conduzir na vida como estudante e professor. Ao largo desse entendimento, como buscar a compreensão sobre o trabalho em sala de aula? Aliás, é a busca de sentido para essa prática que justifica a elaboração de projetos de transposição didática, em relação aos quais a filosofia não se coloca à parte.

Se bem compreendida, e não considerada como algo de somenos em relação ao saber filosófico, a transposição didática pode contribuir para que o professor que ensina filosofia tenha em seu trabalho um quefazer que transcende métodos e técnicas. Ela pode, para além do ensinar e aprender, contribuir para a construção de uma identidade profissional em articulação com os processos de significação da vida e do mundo, o que pode possibilitar a gestão da sala de aula sob a ótica de uma ética relacional fundada no gosto pela conquista do saber.

Parece plausível o entendimento de que o sentido transformador do emprego da transposição didática no ensino de filosofia requer a (re)significação do currículo escolar, o qual não deve restringir-se à planificação do ensino, como defendeu Bobbitt, em 1918, em sua obra O currículo, em relação ao qual a didática não passava de um elemento justaposto. Ao contrário disso, um currículo escolar que acolhe a filosofia pode ver na transposição didática o núcleo da transversalidade inerente ao saber filosófico e que, de algum modo, dá legitimidade a todas as interfaces que os demais saberes humanos mantêm entre si.

Concluindo, entendo que parece ser em função disso que os componentes curriculares podem ser pensados, sobretudo os que dizem respeito ao tempo pedagógico, aos objetivos, conteúdos, métodos, técnicas, procedimentos, avaliação, mobilizados pelo professor e pelos alunos de maneira contextual. A filosofia, a meu ver, também se insere nesse movimento.

Referências bibliográficas:

ALMEIDA, G. P. da. “Transposição didática: por onde começar?”. São Paulo: Cortez, 2007.

GALLO, S.; DANELON, M. & CORNELLI, G. (Orgs.). “Filosofia do ensino de filosofia”. Petrópolis: Vozes, 2003.

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*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br.

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PS.: Aos amigos e amigas que me visitam, volto a pedir desculpas por estar ainda me reorganizando e não praticando a interação costumeira. Estou em fase de reorganização da vida pessoal e profissional, razão pela qual esse espaço aqui no RL e no blog em breve serão reorientados. A qualquer hora dessas, tudo se normaliza. Obrigado a todos pelo carinho. Um grande abraço a tod@s!!!