As faces da violência

Segundo uma pesquisa realizada em 2009 pela ONU (Organização das Nações Unidas), um dos maiores problemas apontados pelos brasileiros no país é a violência, ranqueado em segundo lugar, logo atrás da educação, em primeiro. A sensação de insegurança cresce a cada dia no país, as pessoas estão enclausuradas em suas próprias casas, com verdadeiro pavor da criminalidade. O cidadão se protege de diversas formas, de acordo com seu poder econômico; muros altos, cercas elétricas, grades nas janelas, portões reforçados, câmeras, cães-de-guarda, dentre outros recursos de proteção. Nas ruas o medo é ainda maior, as pessoas andam com pressa, amedrontadas e desconfiadas, temerosas por suas vidas, que podem findar de várias formas, das mais inusitadas possíveis; balas perdidas, assaltos, sequestros, surtos psicóticos, acidentes ocasionados por imprudência, etc.

A criminalidade cresce em ritmo acelerado e onipresente, nenhuma classe social está imune a esta chaga que teima em não sarar e a se alastrar. O nível de crueldade sobe em proporções cada vez mais desumanas; não basta apenas usurpar a vida alheia, é preciso humilhar, torturar, submeter as condições mais indignas possíveis, até reduzir o semelhante ao pó, ao nada. O ódio é tamanho que não se consegue mais ver seu fim, ele parece ser infinito.

Mas o que causa tanta ferocidade e animosidade de alguns homens pelos seus semelhantes? Muitos estudiosos tentam entender, mas no fim acabam se desentendendo, mediante a complexibilidade do comportamento humano. Suas teorias acabam se diluindo no vazio, por sua própria superficialidade e se transformando em especulações, mas não em verdades. Tudo se torna pequeno, diante da grandeza da mente humana. E o que sobra? Sobram muitas possibilidades, mas nenhuma delas é concreta, nenhuma delas ainda pode ser considerada determinante e desencadeante da violência, isso se explica pela singularidade de cada ser humano. Mas se não temos uma certeza, o que podemos fazer? É preciso estudar, buscar conhecer, montar este quebra-cabeças juntando as poucas peças que temos e tentando deduzir quais são as próximas. É um modo ainda primitivo, mesmo assim, é a única arma que temos para lutar, ainda que precariamente, contra o mal que assola nosso país e o mundo também.

A violência tem várias faces, ora se comporta de forma sutil, ora de forma despojada. Ela pode ser consumada por uma agressão física, mas também pode se manifestar como uma agressão moral, talvez esta segunda seja ainda pior que a primeira. A agressão moral pode provocar lesões profundas, difíceis de serem curadas. A humilhação de não se sentir humano, de não estar entre humanos, o sentimento de invasão, de impotência, de nulidade, talvez seja bem pior que a dor física, que dependendo do caso, pode ser tratada com cirurgias ou medicamentos.

Ao meu ver a violência é a pior das transgressões do homem, pois ela o coloca diante de seu lado mais sombrio, mais animal, reduzindo-o a uma pequenez desmedida. Aderir a violência, é como se autodestruir-se, atacando um alvo errado e permitindo que o inimigo avance, tomando cada vez mais o espaço que não deveria ser o dele. A violência é um sintoma grave de incapacidade em lidar com os problemas de forma sã, ela por sí só não existe, ela subexiste se comportando como uma parasita; seu alimento...nossa desgraça.

A violência é contrária a toda manifestação viva, ela é a antítese da existência, seja ela física ou moral. Impelida por um desejo desvairado e insaciável de ataque, de posse, de desprezo e total falta de empatia pelo próximo. A violência nada quer para sí, além da dor alheia, ela se delicia com isso. No entanto ela permanece vazia, sempre, não há essência, por isso o ataque desenfreado e descabido tentando anular o outro, tentando reprimir todo tipo de manifestação contrária, para que ela se sinta menos vazia comparada ao nada.

Suas faces são variadas, existem diversos tipos de violência, as mais comuns e difundidas são as físicas; casos de pedofilia estão cada vez mais em pauta, homens vividos se relacionando com crianças, até mesmo bebês, o que se passa em suas mentes? Alguns acadêmicos defendem leis para proteger estes abusos, alegando amor incondicional, independente da idade, pura demagogia para liberalizar suas práticas doentias e perversivas. O que dizer então dos maridos que humilham suas mulheres, ameaçando-as de morte caso elas tentem romper o relacionamento ou acionar as autoridades, geralmente os filhos também apanham nestas familias, criando um ciclo vicioso de agressões. O que estes homens tem em suas mentes, isso parece feder. E o que dizer das brigas idiotas e infundadas entre torcidas de equipes de futebol, ou das agressões sofridas pelos idosos em abrigos, ou a disseminação de atos de vandalismo em bens públicos, ou espancamento e até mortes de homossexuais, negros, judeus...

E quanto as agressões morais? Reafirmo que são as piores, com um requinte de crueldade impar e com um poder impressionante de se camuflarem e incitarem o comportamento violento

na sociedade. Casos corriqueiros em nosso cotidiano tendem a nem serem percebidos: a frieza nos relacionamentos com as pessoas; o prévio e insensato julgamento pelas atitudes alheias; o preconceito contra as minorias, demonstrando total falta de respeito com a diversidade; as críticas incisivas, desmedidas e inebriantes que podem causar danos e complexos profundos a quem ouve; os apelidos maldosos que denigrem a imagem do ente alheio; o patrão que xinga o empregado na frente de todos os colegas;o palavrão habitual e ofensivo que envergonha e cuspi na linguagem culta; o castigo constrangedor que muitos pais impõem a seus filhos e que podem desencadear inúmeros traumas; o desdenho dos políticos diante da calamidade social; a recusa em ceder o lugar reservado nos trens e ônibus aos idosos, deficientes, mulheres grávidas, obesos; o lixo jogado na rua pelas janelas dos carros, pelos pedestres, e até mesmo pelos moradores; a imprudência dos motoristas no trânsito. Enfim, é possível elencar muito mais agressões morais do que físicas, que se entrelaçam, ocasionando reflexos em toda a sociedade e provocando o mal-estar social.

Tanto a violência física, quanto a moral acredito que são sintomas de uma sociedade ainda imatura, que não sabe interiorizar seus problemas e buscar resolvê-los, pelo contrário, tenta atacar ao outro, como se fora apenas ele o culpado, mas se esquecendo que cada um tem sua parcela de culpa, o que não isenta absolutamente ninguém. Toda essa violência não pode ser ocasional, existe algum fundo motivacional, desencadeante, em que o homem é a figura central, e como seres sociais que somos, um influência ao outro e portanto o problema é universal, comum a todos.

Creio que todo ser humano tenha uma tendência agressiva, um impulso agressivo, como algo inato dentro dele, necessário talvez para que sobreviva, se não o tivesse talvez fosse excessivamente dócil, o que poderia torná-lo apático, fraco e desprovido de forças para lutar pela vida e seus desafios. É ligeiramente comum constatarmos o que acontece com uma criança que na adolescência fora criada com demasiado afeto, sem limites, recebendo sempre, tudo que pedira. Em boa parte destes casos ela se torna um adulto narcisista, mas com comportamentos típicos de uma criança mimada, tem sérias dificuldades em lidar com as dificuldades do dia-a-dia e se apoia em tempestuosos apelos emocionais para conseguir o que lhe é negado. Por isso este impulso agressivo talvez seja necessário para que tenhamos maior firmeza, no entanto ele é extremamente perigoso e pode fugir ao nosso controle, se é que temos, ou podemos tê-lo. Quem é que nunca brigou em meio a um congestionamento, ou com o barulho do vizinho, quem sabe com seus próprios amigos ou parentes, quantos sentimentos agressivos emergiram nestas situações? Quem sabe se tivessemos uma arma qualquer poderíamos ter cometido uma loucura, um crime? Uma medida a mais, um passo adiante, ou uma palavra mais aspera poderia culminar com um desastre ainda maior. E se então tivessemos sido vítimas de abuso sexual, maus-tratos, falta de afeto, vivendo em um ambiente totalmente hostil a nossas expressões?

Este é um dos elementos que devem ser estudados e considerados, o impulso agressivo, outro que irei abordar agora é a desigualdade social, bem comum em nosso país. Além deste impulso agressivo, a desigualdade social creio que seja outro elemento fundamental, afinal é bem difícil ver pessoas agindo de forma desonesta e conquistando bens materiais. Infelizmente isto é comum no Brasil, a corrupção é divulgada em todos os meios de comunicação e parece ditar certa normalidade em nossos dias. Muitos jovens que poderiam ter um futuro brilhante, acabam sendo desviados para o mundo do crime, eles querem ter o que nunca tiveram, o que o mundo consumista oferece apenas para quem tem dinheiro. Mas como conseguir a inclusão social se estão na favela? Trabalhar e ser honesto é um desafio, e nem sempre bem recompensado financeiramente, e para um mundo onde o dinheiro dita as regras, não parece ser um caminho muito vantajoso para ninguém. O crime proporciona facilidades e muito dinheiro, embora o preço seja alto demais; morte ou prisão. Mas o que estes jovens querem é imediatismo, não podem esperar, desejam comprar tênis e roupas de marcas, jóias, carros, viajar, enfim, tudo que o dinheiro pode lhes dar. Mas o que eles mais querem, não é exatamente o que precisam, eles se querem se sentir incluídos se alguma forma, mesmo que seja através da força, ou formando sua própria sociedade paralela. Mesmo assim, a violência que pregam em suas incursões no mundo do crime, acaba por se desgastar, consomem a sí mesmos, se tornam cada vez mais violentos, para mostrar ao mundo que são seres poderosos, mas na verdade são seres frágeis e infelizes.

O impulso agressivo, a falta de estrutura familiar adequada, a mídia consumista, a desigualdade social e agora a impunidade, sim, a impunidade também tem seu papel. A morosidade e a falta de efetividade da justiça brasileira, são elementos que incentivam a criminalidade, isto porque a certeza da pena e a consequente perda da liberdade é um fator intimidatório, que pode coibir a ocorrência de muitos delitos. Nem todos estão dispostos a arriscar a liberdade, mas á medida que a justiça se mostra ineficiente, a violência tende a crescer cada vez mais.

A legislação brasileira precisa de uma reformulação em todos os sentidos, entre eles é claro, no âmbito da segurança. Nossa lei está caducando, totalmente atrasada, é preciso reformular as penas, tornando-as ao mesmo tempo, intimidatórias e justas, para que a sociedade se sinta segura. É preciso maior rigor com as reincidências, com os menores de idade, com os crimes hediondos, buscando a reabilitação sempre que possível, mas permitindo que a sociedade não fique a mercê da violência. É claro que a justiça é apenas um dos elementos, ela serve de amparo para tentar conter o caos social, mas ela por sí só não resolve todos os problemas, é preciso mais do que isso.

Como se pôde observar com tudo que foi demonstrado, é visível que a violência que vivemos atualmente é apenas um reflexo de nossas atitudes ou da soma das atitudes de toda uma sociedade. Todos nós de alguma forma já cometemos algum ato de violência, seja ele em menor ou maior grau, mas independente disso, este ato contribuiu para o crescimento da violência. Obviamente somos seres imperfeitos, passíveis de erros, alguns são mais violentos, outros menos, até mesmo os santos as vezes pecam. Claro que não podemos comparar um assassino em série, com um jovem que joga papel na rua, mas acredito que certas atitudes e palavras usadas de forma agressiva no cotidiano possam incentivar uma conduta hostil. Da mesma forma a desigualdade social, existente pela falta de políticas públicas é um elemento importante e pode dar mais um empurrão. E mais adiante e não menos importante, a impunidade, afinal a liberdade requer responsabilidade, ou seja, tudo tem seu limite e é este limite que pode intimidar uma conduta mais ou menos criminosa. Não podemos esquecer também da oportunidade, afinal todos tem direito de errar e tentar se redimir do erro.

A violência é multifacetada, e o combate a ela começa quando enfrentamos nossos problemas de frente, de peito aberto, mas sem medo e com força, uma força que temos dentro de nós, mas que muitas vezes ignoramos, pensamos não existir. Definir exatamente o que divide um homem criminoso, de um homem "menos criminoso", ou dito, normal, é uma tarefa ingrata e que a ciência ainda peca em tentar explicar com precisão. O que sabemos é que existem várias forças, todas agindo simultaneamente, de forma singular em cada ser humano, e cada um desses respondendo de uma forma ou outra. Uma pessoa pode viver sobre fortes influências negativas, ter predisposição ao crime e no entanto nunca cometer um delito mais grave, enquanto existem outras que ao menor obstáculo, se rendem a violência e se tornam muito agressivas. Tudo é um mistério, o que nos resta é tentar olhar para dentro de nós e encontrar aquilo que nos falta...