O bolão lotérico é, sempre, um contrato assinado entre um trouxa e um esperto

Como nunca joguei em bolões lotéricos vendidos pelos agentes da Caixa Econômica Federal, eu não conhecia o seu mecanismo de funcionamento.

Imaginava simplesmente que a casa lotérica dividia o conjunto das apostas em cotas e as vendia aos interessados pelo valor corresponte.

Nesta situação, se os agentes lotéricos agissem corretamente, ficariam com prejuízo a cada cota não vendida.

Mas o caso de Novo Hamburgo atiçou a minha curiosidade: pelo menos 21 pessoas participaram de um bolão que acertou a Mega Sena do dia 20/02/2010, mas depois descobriram que o jogo não havia sido lançado no sistema (e portanto de nada valia).

Pesquisei e concluí que o bolão é uma atividade insensata, onde o agente lotérico cobra muito mais do que a lei permite e não entrega um comprovante válido do registro da aposta.

O apostador paga muito acima do que é devido e ainda corre o risco de não ter a aposta validada.

E, provavelmente, quase todos os lotéricos agem assim, de norte a sul, leste a oeste do Brasil.

Logo no início das pesquisas, via Google, fiquei confuso ao ler várias entrevistas de agentes e sindicatos lotéricos defendendo a manutenção dos bolões.

Argumentavam que a proibição poderia provocar elevado desemprego no setor.

Como assim — me perguntei —, se deveria ser apenas uma forma de agrupar as apostas, também sujeitas ao mesmo percentual de lucro para os vendedores?

Uma reportagem de 27/02/2010 da Folha de São Paulo me deu a primeira pista ao relatar um caso que leva à suspeita de estelionato: A Folha comprou ontem, em uma lotérica no centro da cidade, um jogo batizado como "surpresinha" em que 14 apostadores concorrem com 24 jogos automáticos de seis números. Cada um paga R$ 10. Se vender os 14, a lotérica tem um lucro de R$ 92 com o bolão. O único recibo emitido para o apostador é um xerox dos bilhetes oficiais.

Como cada aposta de seis números da tradicional “surpresinha” custa R$ 2,00, ao registrar os 24 jogos no sistema o lotérico paga R$ 48 à CEF e ainda recebe 9% (R$ 4,32) a título de serviço prestado.

Neste caso específico, ao vender a quinta das 14 cotas, a casa lotérica recebe R$ 50, o que já garante um lucro ilegal de R$ 6,32, pois fica R$ 2 acima do estipulado em contrato.

Os pagamentos das demais cotas são integralmente embolsados pelo proprietário, que ainda concorre ao prêmio com as cotas não vendidas.

Uma matéria do jornal Estado de Minas de 24/02/2010 relatou um quadro idêntico: Os proprietários das casas lotéricas garantem que não receberam qualquer comunicado da instituição proibindo a realização dos bolões. “Enquanto não oficializarem a decisão, não vamos parar de vender”, afirma Jones Dalton, dono de uma casa lotérica. Segundo ele, a receita diminuirá caso o serviço seja abolido. “Hoje, temos um bolão com quatro jogos de seis números vendido a R$ 4 com possibilidade de participação de até 12 pessoas. No total, nosso custo fica em R$ 24, mas arrecadamos R$ 48. Temos uma margem de lucro de 50%, o que é muito vantajoso”, avalia. Mensalmente, ele arrecada cerca de R$ 800 líquidos com a venda dos jogos para grupos. “Mas tem casa que ganha muito mais”, garante. Hoje, a Caixa repassa às casas lotéricas o equivalente a R$ 0,18 a aposta, o que justificaria a vantagem dos bolões.

A mesma matéria cita um representante dos agentes lotéricos que admite a irregularidade, mas se escuda no direito de escolha do cliente: Paulo César da Silva, diretor financeiro do Sindicato dos Empresários Lotéricos de Minas Gerais, reconhece que o bolão sempre foi proibido pela Caixa. “Temos um comunicado antigo da empresa de que é proibido. Na realidade, fazemos um bolão como se faz em qualquer empresa. O cliente não é obrigado a comprar”, explica.

Ora, se o agente lotérico assina um contrato que lhe dá direito a 9% do arrecadado, mas obtém quase 70% de lucro (no primeiro caso) ou mesmo 50% (no segundo), alguém está pagando a diferença; se é o apostador, está caracterizado o estelionato.

Uma prática corriqueira de quase todos os lotéricos nacionais, tão comum que eles certamente não aceitam a classificação técnica adequada: é uma ilegalidade em relação ao órgão contratador e estelionato em relação ao cliente.

Aproveitam-se da ingenuidade e da preguiça mental do povo, além do mito de que o bolão tem mais chance de ser sorteado do que uma aposta simples.

O lucro do bolão é tão grande que, aparentemente, não se justifica a fraude de deixar de registrar a aposta no sistema; por isso acredito que a maioria dos lotéricos opte por lançar o cartão no sistema da Caixa.

Mas como é improvável que um apostador vá exigir o comprovante da CEF referente a um jogo que não foi sorteado, certamente alguns lotéricos ambiciosos nem mesmo lançam o jogo e ficam com o dinheiro todo, mas neste caso torcendo contra.

Analisando o caso de Novo Hamburgo, reitero que apostar em bolão lotérico é um ato de ingenuidade e de grande risco.

Pelo menos 21 pessoas acreditaram ter recebido a melhor notícia da vida ao conferir, no dia 20/02/2010, os números do concurso número 1155 da Mega Sena.

Elas tinham um documento da casa lotérica "Esquina da Sorte" (de Novo Hamburgo, região metropolitana de Porto Alegre) como garantia da propriedade de uma cota num bolão coletivo.

O bolão teria sido o único ganhador do prêmio de 53 milhões de reais, o que representaria 1,3 milhão para cada cotista.

Teria sido, representaria...

Os verbos estão no condicional porque a Caixa Econômica Federal, gestora dos jogos eletrônicos oficiais, anunciou que o prêmio acumulou, por falta de ganhadores.

E os cotistas do bolão descobriram que a lotérica "Esquina da Sorte" recebeu 11 reais de cada um, mas não fez o jogo.

Como seria de esperar, o dono da loja alegou que foi esquecimento de uma funcionária: apresentou até uma obscura e esmaecida imagem da câmera de segurança e jurou que ela representava a prova do esquecimento.

As vítimas já contrataram advogado, que vai alegar nos tribunais que a CEF é responsável pelo erro, pois deveria ter fiscalizado melhor seus agentes credenciados (espertamente ele não vai pedir os 53 milhões ao Sr. José Paulo Abend, dono da casa lotérica, porque obviamente não vai conseguir).

E a Caixa vai se defender com a alegação de que foi vítima de um golpe, ou no mínimo de um acidente.

Por um lado, a CEF certamente não é um órgão fiscalizador eficiente, até pelas limitações de ser uma variação de serviço público brasileiro; por outro lado, como seria possível evitar todos os golpes num país com tamanha abundância de crimes como é o Brasil?

E não é caso inédito; segundo a TV Globo, “Em junho de 1999, cinco apostadores de Campo Grande viveram a mesma situação. Ganharam na Mega-Sena mas a lotérica não registrou a aposta. Até hoje o grupo reinvindica na Justiça o prêmio de R$ 1,6 milhão. Os apostadores de Campo Grande obtiveram ganho de causa em primeira instância, mas a CEF recorreu da decisão. A lotérica foi fechada no mesmo ano.”

Os apostadores hamburguenses nem parecem brasileiros: pagar 11 reais em troca de uma garantia escrita de que o bolão seria lançado no sistema quando todas as cotas estivessem vendidas (ou quando o prazo estivesse próximo de se esgotar) é um ato insensato.

O cotista de bolão está jogando duas vezes: primeiro, aposta que o lotérico vai ser honesto e registrar os números no sistema, e a seguir torce para que os números sejam sorteados.

Bolões também são comuns em Belo Horizonte, como devem ser comuns por todo o país.

Sempre que passo em frente a uma loja lotérica situada no Minas Shopping, de Belo Horizonte, uma funcionária chama os passantes para oferecer participação num bolão.

Se ela oferece sempre, é porque tem muitos clientes; portanto, tem muita gente que, ingenuamente, é capaz de adquirir um produto mas aceita levar apenas a garantia pessoal de um desconhecido.

A atitude da moça é a prova concreta da fiscalização ineficiente da CEF e do desrespeito do brasileiro às leis e contratos, pois três dias depois da confusão a mídia informou que o órgão governamental proíbe a venda de bolões pelos credenciados.

Fui pesquisar e descobri que a tal proibição era controversa, e mais implícita do que explícita: o site da CEF ignorou a questão embora as matérias citassem, unanimemente, a assessoria de imprensa do órgão público como fonte.

Texto do site UOL Notícias: A Caixa Econômica Federal (CEF) reiterou na tarde desta terça-feira (23) que é proibida a realização de bolões por casas lotéricas de todo o país. Segundo informações da assessoria de imprensa da Caixa, essa determinação sempre existiu e cabe aos apostadores se reunirem para fazer as apostas conjuntas. A Caixa reforça que o bilhete impresso pelo terminal é o único comprovante da realização do jogo.

Ao pesquisar estes detalhes, observei também que os lotéricos dão muita importância aos bolões e uma grande parte da categoria vai continuar vendendo, preferindo correr riscos e enfrentar suas consequências do que cumprir a lei.

Como sugeriu uma reportagem de 27/02/2010 da Folha de São Paulo, informando que em Ribeirão Preto (SP) “a reportagem constatou que seis de dez casas lotéricas consultadas mantêm a venda de bolões”.

Descontando os que não tiveram coragem de dizer que mantêm a venda e os que pretendem retornar assim que passar a tormenta, constata-se que a intenção é continuar à margem da lei.

E ao encontro do lucro a qualquer custo.