Gênero: Uma janela para a diversidade humana

Por: Aline Cristina Calçada de Oliveira

Esta reflexão pretende abordar a história do Ecofeminismo e como o gênero aparece nesse referencial teórico. Para tanto pensaremos a relação da mulher com a natureza e o cuidado como tarefa feminina ao longo do tempo. Pelos estudos ocorridos entendemos que gênero compreende olhar a realidade da vida (das mulheres e dos homens) nas suas relações sociais e nas diferentes maneiras que os mesmos assumem seus papéis em dada sociedade. Assim as características de gênero são construções socioculturais que variam através dos tempos e se referem a papéis psicológicos e culturais que a sociedade atribui a cada um do que considera “masculino” e/ ou “feminino”.

O Ecofeminismo pode ser definido como uma escola de pensamento que tem orientado movimentos ambientalistas e feministas, desde a década de 1970, em várias partes do mundo, procurando fazer uma interconexão entre a dominação da Natureza e a dominação das mulheres. É um termo originalmente "criado" por Françoise d´Eaubonne (mulher, francesa e feminista) em 1974 e simboliza a síntese de ambientalismo (ou mesmo ecologia) e feminismo, que mais tarde foi aplicado à raiz do Movimento Chipko na Índia e no Women´s Pentagon Action nos Estados Unidos da América. É a teoria que busca o fim de todas as formas de opressão. Relaciona as conexões entre as dominações por raça, gênero, classe social, dominação da natureza, do outro - a mulher, a criança, o idoso, o índio. Identificam-se vários Ecofeminismos que acordam quanto fim dos "ismos" de dominação, sejam eles históricos, simbólicos, casuais, literários, políticos, religiosos, étnicos e buscam igualmente o resgate do Ser. Um convívio sem dominante e dominado, onde há complementação e nunca exploração. Siliprandi(2000:p.61).

Capra (2006:p.27) refere-se ao Ecofeminismo como uma escola especial de ecologia social, pois suas premissas aborda a dinâmica básica de dominação social dentro do contexto do patriarcado. Contudo, sua análise cultural das muitas facetas do patriarcado e das ligações entre feminismo e ecologia vai muito além do arcabouço da ecologia social.

A corrente Ecofeminista vê a dominação patriarcal de mulheres por homens como o protótipo de todas as formas de dominação e exploração: hierárquica, militarista, capitalista e industrialista. Ela mostra que a dominação da natureza, em particular, tem marchado de mãos dadas com as mulheres, que têm sido identificadas com a natureza através dos séculos. Essa antiga associação entre mulher e natureza liga a história das mulheres com a história do meio ambiente, e é a fonte de um parentesco natural entre feminismo e ecologia. Consequentemente, os ecofeministas vêem o conhecimento vivencial feminino como uma das fontes principais de uma visão ecológica da realidade.

É importante considerar que o ecofeminismo pode ser dividido em três tendências: Clássica, Espiritualista do Terceiro Mundo e Construtivista. A primeira tendência denuncia a naturalização da mulher como um dos mecanismos de legitimação do patriarcado. Segundo o Ecofeminismo Clássico, a obsessão dos homens pelo poder tem levado o mundo a guerras suicidas, ao envenenamento e à destruição do planeta. Nesse contexto, a ética feminina de proteção dos seres vivos se opõe à essência agressiva masculina, e é fundamentada através das características femininas igualitárias e por atitudes maternais que acabam pré-dispondo as mulheres ao pacifismo e à conservação da natureza, enquanto os homens seriam naturalmente predispostos à competição e à destruição.

Dessa forma, a segunda tendência teve origem nos países do sul, tendo a influência dos princípios religiosos de Ghandi, na Ásia, e da Teologia da Libertação, na América Latina. Esta tendência afirma que o desenvolvimento da sociedade gera um processo de violência contra a mulher e o meio ambiente, tendo suas raízes nas concepções patriarcais de dominação e centralização do poder. Caracteriza-se também pela postura crítica contra a dominação, pela luta antisexista, antiracista, antielitista e anti-antropocêntrica. Além disso, atribui ao princípio da cosmologia a tendência protetora das mulheres para com a natureza. Por fim a terceira tendência não se identifica nem com o essencialismo, nem com as fontes religiosas espirituais das correntes anteriores, embora compartilhe idéias como antiracismo, anti-antropocentrismo e anti-imperialismo. Ela defende que a relação profunda da maioria das mulheres com a natureza não está associada a características próprias do sexo feminino, mas é originária de suas responsabilidades de gênero na economia familiar, criadas através da divisão social do trabalho, da distribuição do poder e da propriedade. Para tanto, defendem que é necessário assumir novas práticas de relação de gênero e com a natureza. PULEO alerta para a debilidade teórica existente nas duas primeiras tendências, como também para um possível risco de se afirmar a utilização de estereótipos femininos na sociedade. O ecofeminismo construtivista, por sua vez, desconsidera a importância da mística, o que acaba dificultando a mobilização das mulheres em torno do tema, elemento este que para o ecofeminismo espiritualista tem representado uma força prática efetivamente mobilizadora.

As mulheres pobres do Terceiro Mundo, que vivem em uma economia de subsistência, são as maiores vítimas da crise ambiental em seus países, pois são as primeiras a sentirem o reflexo da diminuição da qualidade de vida causadas pela poluição ou escassez dos recursos naturais, os quais são explorados indiscriminadamente para satisfazer as “necessidades” do Primeiro Mundo. A lógica do capitalismo tem se demonstrado incompatível com as exigências ecológicas para a sustentabilidade da vida no planeta. Portanto, ao contrário do que muitos ecologistas pensam, não é possível ecologizar o capitalismo, assim como também não é possível acabar com a dominação e exploração do gênero feminino sem superar as estruturas capitalistas patriarcais que as mantém. Desse modo, tanto a solução da crise ambiental quanto a da opressão das mulheres não devem ser tratados como problemas isolados. A salvação da vida no planeta, assim como a emancipação não só das mulheres como de todos os seres humanos, depende de uma mudança estrutural e organizacional da sociedade. E para isso, é imprescindível a ação conjunta dos movimentos sociais contra seu opressor comum: o capitalismo patriarcal.

A luz da palavra gênero implica um olhar profundo no que constitui um ser humano, independente de seu sexo. O dicionário define gênero “como um conjunto de seres ou coisas que apresentam qualidades semelhantes.” Bueno(1996:p.322)

Nesse sentido podemos vislumbrar o gênero enquanto construção individual e coletiva. Na verdade é um processo que começa antes mesmo de uma criança nascer, com a história dos pais, a fase intra- uterina e a posterior constituição em família e na sociedade. Não podemos pensar em “gênero” de maneira isolada, pois ele é o mover vivo e ativo da mente humana em todas as eras. Cada sociedade, cada povo constrói suas normas, valores, realidades dentro do contexto de vida possível.

Se formos fazer um breve histórico da relação das mulheres com a natureza e o cuidado como tarefa feminina teremos como uma das primeiras representações divinas criadas pelos seres humanos a figura da “Deusa”, que representava a “mãe terra”. Conforme a mitologia grega, a Grande Mãe criou o universo sozinha, sendo Gaia a criadora primária, a “Mãe Terra”. Também as religiões pagãs antigas, como dos Vikings e Celtas, mantinham uma relação próxima com a natureza e cultuavam deusas, concedendo um destaque especial para as mulheres, pois estas tinham uma proximidade muito grande com a “Mãe Terra”, possuindo ambas o poder da fertilidade. Na mitologia celta, as mulheres eram invulneráveis, inteligentes, poderosas, guerreiras e líderes de nações. As mulheres também foram os primeiros seres humanos a descobrir os ciclos da natureza, pois era possível compará-los com o ciclo do próprio corpo. Com o cristianismo, a sociedade ocidental afastou-se destas origens pagãs de contato com a natureza e a mulher perdeu seu destaque, já que o Deus cultuado passou a ser masculino. A única figura feminina sagrada preservada foi a de Maria, mas não como uma divindade, e sim como uma intermediária de Deus, uma coadjuvante.

Diante da crise ambiental mundial e da consciência de que a Terra precisa ser preservada para garantir a sobrevivência das espécies, inclusive a humana, houve um despertar de valores ecológicos, ou seja, valores ligados à “Deusa” cultuada pelos povos pagãos, como o respeito a todas as formas de vida no planeta, a convivência na diversidade, etc.

Por outro lado a opressão e submissão das mulheres surgiu muito antes do capitalismo, sendo verificado historicamente desde que os povos deixaram de ser nômades e utilizaram a divisão social do trabalho como forma de organização. Assim, as mulheres permaneceram mais ligadas ao lar e aos filhos, enquanto os homens se ocupavam prioritariamente com as caçadas, por serem, na maioria das vezes, dotados de maior força física. Assim, as mulheres descobriram a agricultura e passaram a ter uma relação mais próxima com a natureza. Com a descoberta do papel masculino na reprodução, entretanto, era necessário saber quais os filhos que pertenciam a determinado homem para garantir a sucessão da herança. Inicia-se, desta forma, o controle sobre o corpo da mulher e o fato de mantê-la no âmbito do lar e cuidando da prole de um relacionamento monogâmico, facilitava tal intuito.

Através do desenvolvimento do capitalismo, as diferenças de gênero foram intensificadas. As mulheres foram, estrategicamente, encarregadas do trabalho doméstico, cuidando da casa, das crianças, dos velhos e doentes, além de “servirem” o marido, sendo caracterizadas como “rainhas do lar”. O trabalho doméstico foi considerado gratuito e denominado como trabalho não produtivo. Ao capitalismo a submissão social da mulher serviu inicialmente para diminuir os custos de reprodução do trabalho, uma vez que o salário do homem não precisava ser tão alto, pois ele não necessitava pagar pelos serviços domésticos (MIES, 1989: 47).

Simone de Beauvoir (BEAUVOIR, 1968) denuncia em seu livro O Segundo Sexo a exclusão das mulheres do espaço público em função da naturalização do papel feminino na reprodução. Desta forma, a mulher passa a ter uma vida cíclica, quase inconsciente, enquanto aos homens são reservados todos os benefícios da “civilização”. Esta “naturalização” da tarefa feminina na reprodução e na vida doméstica, bem como a responsabilidade pela alimentação e saúde da família, acabou aproximando a mulher da natureza. Em muitas culturas as mulheres são as responsáveis pela manutenção da biodiversidade. Elas produzem, reproduzem, consomem e conservam a biodiversidade na agricultura (MIES/SHIVA, 1995: 234). Portanto, a tendência é que, para as mulheres, o equilíbrio do meio ambiente venha a se apresentar como um fator fundamental para a qualidade de vida da família, concebendo, assim, a natureza como fonte de vida que precisa ser preservada. Enquanto isto, na visão capitalista patriarcal, a natureza não passa de um mero objeto de exploração, dominação e poder.

Os filósofos adeptos à ecologia profunda afirmam que, se os homens estivessem mais próximos às tarefas domésticas e de reprodução, haveria um ganho na qualidade de vida e, conseqüentemente, na proteção ambiental, uma vez que eles teriam uma percepção real da unidade e interdependência dos seres humanos com o meio ambiente. As mulheres já fazem isto, porque a elas foi deixada a tarefa do cuidado e da manutenção da vida (CAPRA, 1996).

Então, ao analisarmos a questão de gênero enquanto processo no mover da história humana podemos entendê-lo como a dificuldade em apreender o “novo”, o “diferente” do que se construiu como modelo para determinado grupo e ou sociedade. Também por outro lado percebemos que na relação gênero está impregnado um “pré- conceito”, um “pré- julgamento” da vida que nos rodeia. Não nos “escapamos” disso a todo momento, pois somos constituídos socialmente para agir assim. É involuntário, nem percebemos. Dessa forma o desafio para esse mundo do diverso é saber conviver em equilíbrio com as diferenças dos “ismos”- patriarcalismo, feminismo, racismo, comunismo, capitalismo e etc. Na verdade precisamos superar o paradigma dos “ismos”. Ao nosso ver o Ecofeminismo traduz e denuncia esse processo de opressão em que a mulher vem sofrendo ao longo da história, mas também não pode ser tomado como único paradigma. Muitos de seus representantes, de uma certa forma, são também opressores a medida em que para reivindicar os direitos femininos tomam atitudes extremas de exclusão, o que de acordo com que pensamos reproduz a violência tão inaceitável para uma convivência em harmonia.

Então, depois de muito ler sobre gênero, podemos dizer que ele é complexo e sem fronteiras, por que traduz justamente as necessidades e ajustes entre diferentes formas de ver o mundo. Se observarmos o contexto atual de nossa civilização percebemos que há um choque cultural muito grande, pois a visão de mundo sob o prisma masculino e seu entendimento no escopo do gênero precisa ser reformulado. O mundo do século XXI requer uma visão harmônica de liberdade na constituição do sujeito independente de seu sexo.

Bibliografia:

Agroecol. e Desenv.Rur. Sustent., Porto Alegre, v.1,n.1, jan./mar.2000

AGUIAR, Neuma. Perspectivas Feministas e o Conceito de Patriarcado na sociologia Clássica e no pensamento sócio-político brasileiro In: AGUIAR, Neuma (org). Gênero e Ciências Humanas- Desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres. Rio de Janeiro- Rosa dos tempos,1997.

BUENO, Silveira. Minidicionário da Língua Portuguesa São Paulo: FTD- Lisa, 1996.

BEAUVOIR, Simone de. Das andere Geschlecht: Sitte und Sexus der Frau. Hamburg: Rowohlt, 1968.

CAPRA, F. O A Teia da Vida: Uma Nova Compreensão Científica dos Sistemas Vivos. São Paulo: Cultrix: 1996

CONNEL, R.W. Como Teorizar o patriarcado? In: LOPES, Eliane Marta Teixeira e LOURO, Guacira Lopes. Educação e Realidade. Número especial Mulher e Educação. Porto Alegre, vol.16, n2, jul/dez 1990.

PULEO, Alicia H. Feminismo y Ecologia. Disponível no site: http://www.nodo50.org/mujeresred/ecologia

Foca
Enviado por Foca em 05/04/2010
Código do texto: T2178690