A PRAÇA E O PODER (UMA LEITURA SEMIOLÓGICA)

(Texto elaborado em 1976, para a disciplina Problemas Especiais de Comunicação do Curso de Mestrado em Comunicação da Universidade de Brasília)    




     Eis que se precisava conceber um novo espaço arquitetônico para abrigar o poder central. E não seria uma cidade moderna qualquer. Tinha de ser Brasília, uma capital para o Brasil. Em torno de sua função principal, a governamental, convergiriam os significantes de um monumental e arrojado referente arquitetural a lhe conferir imponência e grandeza. E assim se fez.

     Plano, estrutura e estruturação. Três níveis de realidade que orientam a pertinência da leitura. Leitura fragmentada. Fragmentos de poder. Poder fragmentado e harmonizado na metáfora arquitetônica de uma praça.

     O plano é o lugar da interdição. É a prescrição de um determinante sócio-político que pode conflitar a relação operador/operado, este, o artífice intelectual e aquele o agente do poder. Mas o operador prevalece nessa dialética. O urbanista que encontre a melhor combinação de signos arquitetônicos para denotar as funções primeiras... E conotar um aparato ideológico ao que simbolizam as funções secundárias. No entanto, aqui há também lugar para a transgressão, ainda que limitada. O artífice pode, sutilmente, subverter alguns traços da ideologia prevalecente, fazendo com que o signo comunique a dimensão diferente da informação encomendada.

     A estrutura reflete a concretização do plano. É o lugar da produção que posiciona, arranja, dispõe e acomoda as coisas no sentido mais funcional. É a sincronia de formas que revela a combinação de conceitos obtidos no mergulho diacrônico do eixo dos significados. Não sendo facilmente mutável, a estrutura é o lugar da interdição, da coibição, da repressão.

     Entretanto nunca estará livre de ameaças de transgressões que podem afetar a sua integridade. Alguns focos disfuncionais podem levar a isso. Nunca, porém, o poder da interdição permite que o fenômeno ganhe proporções maiores que possam destruir a estrutura. Existem mecanismos de regulação e adaptação para corrigir eventuais distorções e assim manter o estado de homeostase.

     Essa ligeira digressão é apenas para situar o quadro de referência em cujos contornos faremos a leitura da cidade. A cidade do poder. Poder fragmentado e harmonizado na metáfora arquitetônica de um a praça, como dissemos, a Praça dos Três Poderes.

     O Plano fala da necessidade de se destacar os poderes fundamentais, conferindo-lhes posição privilegiada no conjunto do arcabouço estrutural. Sendo os três poderes autônomos, mas interativos, buscou-se no triângulo eqüilátero a forma ideal da praça. Provavelmente inspirada na arquitetura da mais remota antiguidade, um marco de obras faraônicas. (Costa, Relatório do Plano Piloto, p5).

     A estrutura da Praça nos sugere, além da função denotada na leitura do Plano, a conotação ideológica simbolizada nas maneiras como podem ser concebidas as funções segundas. Quais seria o significado histórico e político-ideológico que presidiu a ação do urbanista ao localizar as casas dos poderes em determinados ângulos da Praça? O Congresso Nacional, por exemplo no ângulo superior do triângulo eqüilátero?

     Tomemos como instrumento de análise o triângulo de Ogden e Richard:


                                   Referência ou pensamento

                                             (significado)
                  
 

               
                          Símbolo      ---------------------   Referente      
                     (significante)                              (coisa ou objeto)
 
 
         O processo de significação é aqui compreendido a partir de um referente, ou seja, de um objeto que é nomeado por um símbolo. A relação entre símbolo e objeto é apenas convencional, não implicando nenhuma motivação conotativa. Entretanto, é preciso que essa relação seja midiatizada pela referência que seria o conceito, a imagem mental ou a condição de emprego do símbolo. Assim, é aceitável dizer-se que o símbolo relaciona-se diretamente com a referência e indiretamente com o referente. Também é valido dizer-se que existem símbolos que existem símbolos para uma ou mais referências, podendo não haver referentes correspondentes. Daí o referente não importar muito no estudo da semiologia.

     Kristeva (1974 p.45) fala de um triângulo do signo composto de referente-significante-significado que parece corresponder ao triângulo de Ogden e Richard sendo que os elementos do flanco esquerdo assumem outra denominação: o símbolo passa a ser o significante e a referência o significado.

     Voltando à questão inicial, que nos dizem os signos arquitetônicos no triângulo da Praça dos Três Poderes? Como ler os significantes na procura dos significados?

     No triângulo da Praça o poder executivo ocupa o ângulo direito da base, o que corresponde ao referente, ao objeto, portanto. O poder judiciário ocupa o ângulo esquerdo da base, no que se assemelha o símbolo ou o significante. O poder legislativo privilegiou-se do local do significado: ocupa o ângulo superior, o local da referência.

     A análise semiológica nos sugere que o lado esquerdo do triângulo de Ogden e Richard é onde se processam os grandes fenômenos da significação e, nessa perspectiva, não importa muito o referente. Isso teria a ver com a decisão do urbanista?

     Parece que sim. A trilogia de poder decorrente de uma Constituição liberal que emergiu no pós-guerra, com a derrubada da ditadura Vargas restringiu tanto quanto pôde  o poder executivo. O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal foram consagrados como forças de grande peso para regime democrático. Possivelmente essa teria sido a base ideológica subjacente às funções primeiras dos monumentos dispostos na estrutura da praça.

     Analisando por essa ótica, o Congresso seria a força máxima da representação popular. A sua referência maior que pode assumir mais de um significado. E  deve assumir, porquanto representa uma pluralidade de tendências contidas na maioria e nas minorias.

     O Supremo Tribunal seria o símbolo, ou seja o significante que não pode ser inferido pelo referente, independendo de sua ausência ou presença, enquanto usado para determinados códigos.

     O Executivo seria o lugar do referente, o lugar da ação, representando a unidade do sistema no comando de um mandato conferido pelo povo. A sua ação executora consentânea com os preceitos da lei e da justiça harmoniza o equilíbrio dos poderes.

     Na perspectiva do estudo prossêmico, a equidistância dos monumentos denota a harmonia e o equilíbrio entre os poderes. Não me recordo de outra capital onde as distâncias entre as casas representativas dos poderes sejam tão curtas e iguais.

     Esa é a leitura que se faz da praça, considerando o arranjo dos monumentos dentro da estrutura, em comparação com triângulo richardiano que, como se viu, privilegia o símbolo e a referência, lugares ocupados na praça pelo supremo Tribunal Federal e pelo congresso, respectivamente.

     Umberto Eco chama as atenção para o fato de a comunicação arquitetônica adquirir significados diferentes ao longo do curso da história. “Daí porque, no curso da história, funções primeiras e segundas são passivei de perdas, recuperações e substituições de vários tipos (...) numa série de defasagens contínuas entre funções primeiras e funções segundas (Eco 1971, p.208).

     Aqui parece ter ocorrido algo diferente. As funções primárias dos monumentos da praça continuaram as mesmas e a sua leitura não parecia dizer das profundas modificações institucionais advindas do Golpe Militar de 1964. As instituições mudaram. A Carta Magna também. E vieram os atos institucionais e complementares. O monumento do Congresso continuava majestoso e imponente, não dizendo da sua decadência e aviltamento como poder consentido.

     O  plano foi então transgredido. O poder da interdição modificou a estrutura da Praça. Era preciso mostrar que algo de novo havia acontecido e que havia um super poder sobrepondo-se aos outros.  Poder  camuflado de verde oliva.

Os militares erigiram um gigantesco mastro para a bandeira nacional na Praça dos Três Poderes. Um monumento símbolo da sua ascendência e dominação. Desapareceu o triângulo eqüilátero e seus significados. A praça agora é um quadrilátero... Como tantas outras praças.   
 
                                      REFERÊNCIAS
 
COSTA, LÚCIO (1956). Plano Piloto de Brasília. Departamento de Turismo do Distrito Federal. 12p.
 
ECO, UMBERTO (1971). A estrutura ausente. São Paulo, Edusp e Perspectiva, 426p.
 
KRISTEVA, JULIA (1974) História da linguagem. Lisboa, Edições 70, 454p.
 
OGDEN c. k. & Richards, I. A. (1966) Il significato del significato. (Citado por Eco, 1971 p.21)
 
VIANA, M. CABRAL (1976) Fragmentos da cidade e Brasília: da cidade ao processo. Anotações de aulas.