Princípio metafísico da arte abstrata

A arte é talvez o tema mais amplo a ser discorrido, já que além de abranger ramificações divergentes, não se manifesta de igual modo no tempo (época) nem no espaço (país, cultura), pois o processo de criação e a intenção que motivou um indivíduo não são os mesmos para outro. É natural o dom que se inclina para o âmbito artístico independente de raça, período, idade; a seu jeito, cada um é capaz de produzir um objeto que possa ser motivo de apreciação. Não é preciso fazer uma menção ao desenvolvimento e “aperfeiçoamento” da arte ao longo dos séculos, também não me debruçarei sobre a questão econômica que envolve a arte, pois vejo que essa é isenta de valor comercial, mas o estrago já foi feito. O que intento nesse texto é dar uma explicação para a arte abstrata.

Aquilo que o olho não vê na exterioridade, o vê nas profundezas abruptas da mente e, de certa forma, consegue transpor para a realidade tal eidos na forma de um quadro. Isso é possível, pois o virtual permite tal possibilidade de efetivação. Mas o que é essa “representação” do abstrato na realidade? Mesmo não tendo um significado aparente, a imagem (imagem aqui se trata de imagem abstrata) mostra elementos características da arte tais como: linhas, volume, cor, luz, superfície aspectos esses percebíveis na realidade fenomênica. No entanto, a imagem – tomada como um todo e não em suas particularidades – torna-se ininteligível ao contato primeiro e mesmo assim suscita no expectador um momento irracional de deleite. Poderíamos supor que essa ate manifesta em si alguma Forma Primeira intuída e vislumbrada pelo artista que a materializou nas formas dadas, pois só seria possível fazê-lo dessa maneira e sempre sobra algo além da própria imagem visualizada.

Talvez a mente ao ver tal Imagem Ideal, não sente prazer em delimitá-la em formas precisas fáceis de serem entendidas pelo intelecto. É certo que ao nos deparamos com uma imagem desordenada – em aparência – descuidamos de nós mesmos como indivíduos sociais determinados e nos perdemos por completo na contemplação metafísica e há a ilusão, ou talvez, a convicção que aquela imagem nos faz lembrar algo familiar que desconhecemos. Esse algo poderia ser o mundo inteligível de Platão, ou seria a Coisa-em-si segundo Kant, ou as duas coisas quase que simultâneas de acordo com as palavras de Schopenhauer?

De fato há um atrativo estranho nas imagens desprovidas de formas, isso ocorre porque essas imagens permitem a nós uma ruptura com as regras lógicas analíticas e cansativas do intelecto, nos deixando à vontade para vagar no delírio momentâneo da contemplação irracional; esse é o momento em que nos desapegamos do fardo de sermos humanos condenados à finitude da racionalidade egóica, possibilitando a nós a oportunidade de fundirmos à própria imagem – que é a representação da verdadeira Essência, porém nesse estado intuído, livre de julgamentos, não vemos apenas o fenômeno, ou seja a representação, e sim a própria origem do fenômeno.

No vislumbre da imagem abstrata, o tempo, o espaço, a causalidade e todos os elementos que motivam a razão suficiente (devir, ser, agir) se anulam, pois estes afetam apenas o pensamento vinculado à realidade empírica, e a contemplação estética é justamente a fuga de todo esse processo epistemológico.

Se considerarmos as coisas físicas como causadoras de impressões a posteriori (imagens na mente), logo poderíamos concluir que tudo é resultado de uma matéria específica que fora percebida na realidade externa e que se transformou em imagem, sendo que essa nem se compara com aquela. Por exemplo: pensar no gosto do chocolate é melhor que comê-lo? Não! Depende... Mas o certo é que podemos pensar certas coisas somando as formas de objetos distintos, mas não poderíamos ver na exterioridade tais construções puramente abstratas. Por isso há prazer na visualização duma criação absurda – no sentido de impossibilidade crítica – pois pelo fato dessa imagem não ter sido elaborada pela razão, ela nos reconduz aos recantos apolíneos do sonho, ou seja, ao inconsciente metafísico além da existência determinada. Aqui inconsciente nada tem a ver com vivências traumáticas da infância ou de comportamentos negados e reprimidos socialmente e sim com o que é o mais ignoto e profundo constituinte de nosso ego: o sujeito puro do conhecimento transcendente.

A grande cisma é o seguinte: se todas as coisas são meras cópias imperfeitas de uma Idéia Una e Eterna, como sabemos se de fato a imagem abstrata corresponde àquela Idéia se não podemos percebê-la além da intuição? Ou, ao retornamos nossa consciência ao mundo fenomênico após o vislumbre, como sabermos se essa Idéia não fora influenciada por um pré-julgamento inconsciente ou mesmo se fora alterada ao ser pensada, lembrada e retratada na linguagem possível (escrita, pintura e música)?

O que se pode concluir metafisicamente a esse respeito é que o Ideal dá voz ao real, mas a partir do momento de efetivação, deixa atributos transcendentes no plano etéreo, astral, sublime e se dispersa no objeto mundano. O indivíduo que atingi o conhecimento puro consegue captar a Essência Una que existe fora de si e sente sua imanência em todas as coisas existentes, mas a Essência Absoluta não está presente em sua totalidade nas coisas; o gênio artístico que intuiu a Origem das formas sabe que há algo além daquela representação que ele mesmo reduziu em sua tela ou em sua música.

O mundo fenomênico é o responsável por muitas de nossas abstrações, porém nele não se encontram respostas para explicar a natureza de certas imagens abstratas. Podem os cientistas desvendar todos os mistérios do cérebro, que hormônios x produzem reações y, que as experiências são armazenadas no lóbulo central do cérebro, porém duvido muito se podem explicar a origem das formas abstratas nem o motivo de nós nos misturamos à imagem no curto período de contemplação. Nenhuma racionalidade investigativa consegue ligar-se à outra esfera, a do conhecimento puro.

Sim, há mais coisas no Universo do que imaginamos, devemos tirar o véu de Maia colocado pela ciência, pois nem tudo vem da experiência, já que é necessário que “estruturas a priori” existam anteriores à todos os fatos que atingem a consciência para que eles possam ser entendidos e organizados; esse é o primeiro passo para se elevar ao nível do conhecimento puro, isento de categorias ou resquícios imaginários dos objetos que afetam nossos sentidos para intuir a Realidade Cósmica que origina toda realidade finita em que estamos presos. É essa Realidade em uma de suas imanências possíveis que percebemos na arte abstrata. A arte abstrata é um voltar-se a origem de si mesmo, isento do ego, é mais um atalho na descoberta da origem de Tudo.

Marcell Diniz
Enviado por Marcell Diniz em 27/04/2010
Reeditado em 27/04/2010
Código do texto: T2223254
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.