Homicidas sociais

Todos os dias quando saio da faculdade, no caminho para o ponto de ônibus, vejo duas figuras estranhas que até agora não consegui definir exatamente o que são ou que poderiam significar. Ficam sentadas debaixo duma árvore, aparentemente vendo o tempo passar. Acho que podem ser chamadas de pessoas, mas não sei se de humanos, pelo menos dentro de nosso modelo cultural do que é ser humano. De fato, não sei o que são nem o que sinto mais em relação àquelas criaturas. Não sei se medo, tristeza, repugnação, vergonha, ou nada. Nada, aliás, talvez seja uma possibilidade admissível, até porque para sentir eu precisaria primeiramente interpretar, e isso se torna difícil a partir do momento em que meus pensamentos rejeitam, em situações como essas, leituras estereotipadas. Fico então perdido no monturo e ao mesmo tempo vazio de significados que vão se desenhando em minha mente de maneira aleatória.

Olho novamente... novamente... O que são aqueles seres que não se comunicam com humanos? Por que ninguém os vê, ninguém os toca, ninguém lhes dirige a palavra? Porque não trabalham, quase não comem, quase não bebem, quase não falam, quase não pensam? Será que já são loucos? O que os tornou loucos? A loucura os levou para aquele lugar ou aquele lugar os enlouqueceu? Porque são fedorentos, não trocam de roupa, não tomam banho, não fazem a barba, não sabem falar, escrever, nem ler, não sabem olhar, quase não andam, ficam jogados? Por que foram abandonados, estão rejeitados e dali não saem? Isso tem cura? Onde está a deficiência? São seres humanos? Eles pensam, sentem, amam ou odeiam? Eles são gente, lixo, trevas ou porcos? Eles têm luz? O que lhes seria luz? Vivemos na era da informação, da comunicação instantânea, da facilidade de interação e eles estão perdidos no vazio do esquecimento. Porque esquecemos? Às vezes tenho a impressão de que cometemos crimes de omissão todos os dias e a prática já nos levou à perfeição. Não há investigação porque todos participam. Nessa perspectiva, seríamos muito mais do que simples individualistas, arrogantes, míopes, egoístas e excludentes. Seríamos inevitavelmente elevados ao degrau de “homicidas sociais”. Pensamos: “deixe que morram”.

É interessante lembrar que gostamos de comprar muitas idéias e as melhores são aquelas que nos dão respostas rápidas, que nos poupam de qualquer atividade mínima cerebral de reflexão, nos eximem de qualquer sentimento de ligação e enterram os outros na cova de suas próprias culpas e destinos.

Deixe que morram.

Josué Mendonça
Enviado por Josué Mendonça em 25/08/2006
Reeditado em 27/08/2006
Código do texto: T224708