Crise dos cinquenta anos???????

Meu Deus, na semana que vem faço cinqüenta anos!

Uma trajetória simples e co-mum, de lágrimas e sorrisos, sonhos e desenganos, alegrias e tristezas. Ainda que o neurótico e pouco confiável coração (se bobear, tem até asteromas) tenha receio de olhar para trás, talvez numa alusão ao que aconteceu com mulher de Ló, tantos anos passados a gente fica lembrando como o mundo era diferente! Nem existe mais esse mundo, acho que só na minha lembrança...

Quando a gente começava a ter espinhas no rosto, ouvia a Rádio Mayrink Veiga; usava camisas de banlon; declamava poesias de Castro Alves ou de Olavo Bilac no grêmio do ginásio; espiava, com cobiçosos e lúbricos pensamentos, grossas e quarentonas pernas ras-padas com gilete; tomava cuba-libre em horas-dançantes, se o dinheiro desse para tanto; lia reportagens de David Nasser (com fotos e tudo, provavelmente feitas com fenícia avidez pe-cuniária e otomana despreocupação com a verdade, desde que fosse para vender mais) sobre discos voadores na revista “O Cruzeiro”; comprava discos (78 rotações) de Paul Anka; fumava cigarro Continental ou Luiz XV; emocionava-se com a separação de Soraya - lindíssima e trintona, aparentemente estéril e informava-se sobre o novo casamento do Xá Rheza Pahlevi com Farah Diba, essa religiosamente prolífica como uma gata; ensaiava os primeiros passos de “Twist”, vestindo calça americana (hoje jeans) e japona de cotelê; ia a bailes de terno preto, camisa volta-ao-mundo e gravata borboleta; sonhava em votar em Lacerda para presidente; estudava com gosto latim e francês; ia, com inquisitorial medo do pecado, à missa aos domingos; lia Machado de Assis, Stephen Zweig, Camilo Castelo Branco, Julio Verne e Emile Zola; dava voltas na praça da cidadezinha nos fins de semana (homens numa direção e mulheres na outra, doce costume espanhol por nome “retreta” que, de forma latinamente sábia ou sabiamente latina, permitia que se mergulhasse, até o fundo do poço, em dois olhos castanhos, duas vezes na mesma volta); emocionava-se com os acordes do Repórter Esso, prestando saxônica atenção à voz grave de Heron Domingues que noticiava um furacão na Índia, um terremoto no Chile, um avião (de hélice, tipo Catalina) que caiu com Dag Hamashold (como faço com a grafia disso? O “a” era para ter tremas, ou era para ser um “o”?) no Congo Belga (politicamente correto hoje, Zaire, sem o enclave de Cabinda, inclusive); prestava religi-osa atenção no resultado do concurso de Miss Brasil - avantajado traseiro de Martha Rocha, molhadíssimos olhos de Terezinha Morango, finíssima cintura de Adalgisa Colombo; chamava Maputo de Lourenço Marques, Etiópia de Abissínia, Sudão de Sudão Anglo-Egípcio e Zimbabwe de Rodésia, falando em África; andava com uma camisinha no bolso para mostrar uma certa intimidade com uma coisa que só praticava em oníricas situações; não entendia muito bem o fuzilamento de Beria posto que para a gente Lubianka era nome de uma moça de eslavos olhos claros, nem a luta da OES contra De Gaule na Argélia, ou bigode de Stalin e o charuto de Churchil; usava Pastilhas Valda para dor de garganta, Pílulas de Lusen para prisão de ventre, Xarope de Cambará para tosse e achava engraçado as primas mais velhas tomarem Regulador Xavier (No 1, excesso e No 2, escassez), Vinho Reconstituinte Silva Araújo para fra-queza de um modo geral, comprimidos de Tetrex quando exercia-se, de modo meteórico, uma sexualidade mais que evidente, pagando um pesado tributo a Vênus sob forma de um mal que matou Herodes; tinha como paradigmas de beleza e de comportamento, artistas de cinema ( ia ao cinema todos os dias, eu e Aloísio Torres) tão desconhecidos hoje como Victor Mature (O Manto Sagrado), Marilyn Monroe (O pecado mora ao lado), Anthony Quenn (Zorba, o grego - e ponham otomanismo nisso), Bridgite Bardot (“E Deus criou a mulher”, bota mulher nisso, minha Nossa Senhora!) Sarita Montiel - a de lábios pintados de rubro, imitando um coração (La Violetera), Libertad Lamarque (argentina, expulsa do país por “La reina de los descamisados”, mais que sublime cantora de tangos como Noches de Ronda) e Arturo de Córdoba (Bodas de Ouro); via as chanchadas brasileiras (Eliana, Wilson Grey, Oscarito e Grande Otelo); ouvia os sucessos internacionais (mesmo) de música como “Maria Bonita” de Agustin Lara (vinte anos depois, emocionei-me, esposa recém-casada e não entendendo muito bem nem minha insis-tência de ver, com urbana calma, os murais de Rivera nem meus comentários meio contraditó-rios de quem admirava Maximiliano I mas ainda assim tecia loas a Juarez!) ao passar por la Zoña Rosa e lembrar que o mestre, por aquelas calçadas, desfilou seus desamores...) e de “Noches del Paraguay, com o Trio Los Panchos; via filmes de Cantinflas e aprendia, conco-mitante com as normalíssimas e epidérmicas conseqüências de uma acentuada síntese de progesterona, a gostar de “mariaches” e a ouvir, com quase franciscana e contrita deferência, melódicos discos de Miguel Aceves Mejia; usava um bonezinho parecendo uma galinha d’angola em homenagem a Nat King Cole, por causa de seu “long-play” de músicas latinas - Adelita, Besame Mucho, Noche de Ronda, estranho e rascante sotaque de negro americano tentando cantar em espanhol, o que dava mais encanto às melosas letras latinas; não enten-dia de forma muito clara porque havia duas Chinas, duas Coréias, duas Alemanhas e dois Vietnams; tomava vacina Salk quando Sabin, nessa época, devia ser um reles aprendiz de cientista; via, com naturalidade, fazerem artezanalmente, em nossa casa, creme Chantilly, maionese, suco de tomate e até manteiga; fazia-se em casa, pelo menos umas cinco vezes por ano, bifes de carne de baleia - afinal, ecologia era ainda um conceito tão vago quanto direitos humanos, aqui do lado de baixo do Equador; mulheres armavam os cabelos com bom-bril e muito laquê, o que as deixava com a aparência de colméias de salto alto; David Nasser, junto com Jean Mazon, fazia e aprontava nas páginas de “O Cruzeiro”; existiam ainda os ter-ritórios de Iguaçú e Ponta Porã; tomava-se bonde no Abrigo Santa Tereza, em Belo Hori-zonte; maçãs só eram vendidas na praça central, em eventuais caminhões, onde um homem calvo e gordo, de pronunciado sotaque da Galícia, apresentava à nossa provinciana caboclice a diversidade européia das rosáceas frutíferas - ameixas-do-japão, peras, uvas brancas (um luxo), nectarinas, tudo a peso de ouro, diga-se de passagem; missas eram rezadas em latim, o Cônego Modesto de costas para os fiéis - gabo-me, até hoje, de ser uma das poucas pessoas que ainda sabe a missa todinha em latim, imagino que seria eu “persona gratíssima” agora, entre os seguidores do bispo Lefrèvre; boquiabertos, ficávamos sabendo que, na Suécia e na Dinamarca, menos que 98% das mulheres eram virgens ao se casar - por aqui havia até médicos especialistas em himenoplastia, se eles ainda forem vivos devem ter transferido os con-sultórios e as clínicas para Kabul, Kartoun ou Riad; exames finais de ginásios e colégios, as-sim como vestibulares, tinham a parte oral, com uma banca de três examinadores, cada um fazendo uma pergunta, muitas vezes um dos três era um profissional liberal, escolhido na comunidade (lembro-me de seu João Maffia, gerente de banco, paternal e de terno marron, a me perguntar - eu tinha 13 anos! - num exame oral de ginásio, sobre as minas de carvão do Sarre e a respeito das implicações disso frente ao Tratado de Verasalhes); James Dean brilhava em “Assim caminha a humanidade” e Vinícius de Moraes, funcionário público, escrevia sua Antologia - reli-a muitas vezes, decorei pedaços inteiros, pensando em suaves e castanhos olhos que, agora, mais castanhos ainda, costumam se abrir e me achar no canto da cama ...

Hoje as coisas são tão diferentes! Luto como um náufrago agarrado à fragílima e ínfima tábua de minha flexibilidade para tentar adaptar-me e, se possível, entender esse mundo estranho que me rodeia. Preciso fazer isso, porque aqui em casa tem uns meninos - um sardento rapazinho, uma colombina bonita e um toquinho de gente que ainda não sabe amarrar sapato nem fritar ovo - filhos da dama que, há mais de 20 anos, se deita e acorda do lado esquerdo da minha cama, todos os três parecidíssimos comigo, nem precisa de teste de DNA para mostrar, dentre outras coisas, que herdaram, mendelianamente falando, minhas qualidades e os defeitos da referida cidadã. E para amá-los mais ainda, preciso entender o mundo deles, o universo de suas potencialidades e experiências, afinal, para eles e por eles vivo e luto, sofro e sonho, até desfio - feminista e metaforicamente - fibra por fibra um coração, há muito loteado, com formal de partilha e tudo, em quatro glebas de carinho e de esperança.

Caríssimo Reginaldo!

Com sua devida vênia, gostei e me identifiquei tanto com este seu texto que 'ousei reproduzí-lo aqui, em minha escrivaninha deste competente portal ....

Reginaldo da Silva Romeiro

Viçosa, dezembro de 1946-1996

HICS
Enviado por HICS em 26/07/2010
Código do texto: T2400370
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