A inocência das crianças

Passada aquela hora, que o Céu fica raiado de cores de fogo, com as luzes fuscas da cidade a acenderem-se uma a uma, a noite fica mais amena porque o dia acabou para se unir à noite. Então o Vento paira suave sobre o negro claro iluminado por uma nova nuvem cintilante

Aqui e ali, tudo é propício aos encontros. Descendo e subindo, o jardim vai aparando no seu seio, a criançada acompanhada dos seus pais, que após mais um dia de labuta, entregam-se ao prazer – e obrigação – de acompanhar com quem de dia não podem brincar, porque as crianças precisam da presença dos pais nos momentos importantes e inesquecíveis das suas vidas.

Jantados que estão, de mãos dadas caminham até ao jardim para se espreguiçarem pela verdura e saltarem nos baloiços que do espaço faz parte.

Ainda três horas faltam para que os ponteiros do relógio digam que o calendário mudou e a gritaria infantil torna-se numa barulheira que incomoda a passarada, que nos ainda, tenros ramos das árvores que cercam o jardim, fazem o seu poiso.

Nas bordas do rodeio rectangular, jovens pais sentam-se vendo, quem seu é, o que fazem e as arrelias que dão a outros. Os de mais idade avançada acompanham os que fizeram mais uma geração. Cavaqueiam sobre tudo e mais alguma coisa nunca deixando que os olhos habituados à claridade deixem de ver aquilo que o fusco ilumina.

Lá longe, mas perto, vêem clarões, vindo de algures, que a continuar, a semana de além, ameaça dias cinzentos, tal é o fumo que paira no ar, levando a que a pequenada pergunte que «cheiro é este?»

Difícil explicar aos de palmo e meio que o descuido de alguns e a maldade de outros ou a falta de responsabilidade de quem deve zelar pelo cumprimento do que está escrito, nem sempre é o melhor.

O que foi fagulha, trazida pelo vento ameno junta-se num roldão de qualquer coisa para depois aterrar no espaço da criançada. Sem saber como a coisa ali caiu, respondem-lhes que «veio de além», apontando para onde julgam ter vindo.

Não têm medo dos restos das cinzas, mas agoiram que é coisa esquisita, porque no ar paira um cheiro que até não deixa respirar.

Vindas não se sabe donde, as sirenes uivam e os clarões das suas luzes assustam quem está a iniciar a passagem do testemunho que medeia uma nova casta. Até os mais graúdos se arrepiam com aqueles apitos que se mete no corpo das pessoas.

«Não deve ser coisa boa» conclui o velho Tobias, habitual frequentador. Todos o ouvem, excepto os adultos. Afinal se vai para lá não é para agradar a quem já julga saber tudo, mas sim, fazer um rodeio de crianças para que ouçam as suas velhas histórias.

Tão comoventes, que alguns petizes nem lhes apetece andar de baloiço. Querem o velhinho de barbas brancas que se assenta todas as noites junto do chafariz. Talvez para quando lhe seque a boca, depois de tanto narrar, esteja mais próximo de a molhar.

Ao lado, mas um pouco acima, umas redes colocadas em direcção ao Céu, protegem as bolas como quem no meio delas está, uns débeis adultos mal comportados. Escorrem as crianças para que possam dar passadas largadas enquanto rematam a bola para o pequeno rectângulo a que chamam de baliza.

As crianças não gostam deles, porque são malcriados e dizem palavrões quando não conseguem apontar para onde queriam que a bola fosse. Chamam-lhes a atenção, não pela sua falta de destreza mas pela falta de educação. As palavras feias utilizadas, por quem devia saber se comportar, ofendem as jovens mães que por perto estão.

Às vezes há zaragatas pelo calão usado. Depois a vizinhança apoia quem reclama. O espaço é de todos, mas o jardim foi feito para a pequenada. É neles que está o futuro e a eles devemos ensinar as boas maneiras, coisa que alguns têm dificuldade de compreender.

Julgam-se donos de tudo e com todos os direitos. Vindos dos confins da cidade, onde não incomodam quem lhes faz extrema, engenham e dizem coisas no jardim que deixa mal visto quem as gera.

O Miguel, miúdo, aí, com meia dúzia de anos, fino como um alho, quando for grande, quer ser como um homem que viu num filme. Ter tanta força que consiga arrancar os ferros espetados na relva sintética para que os rapazes grandes não digam malcriadices, pois a sua mãe, sempre lhe ensinou, como aos seus amigos, que as palavras feias não se devem dizer, mesmo que as saibamos. Também lhe disse que devemos respeitar os outros, mesmo que não possamos gostar deles. Todos temos direitos e deveres.

Detesta ver as mães dos outros meninos a dizer «que malcriados são aqueles rapazes que jogam acolá à bola! Só dizem asneiras e palavrões. Até parece que já não há respeito nenhum».

Ouve palavras que o deixam triste. Talvez não a ele, porque se julga um homem, mas às crianças que o cercaram enquanto as mães falavam do fumo que pairava no ar e dos pirilampos que faziam o largo azul.

As crianças apenas sabem o que lhes ensinam para depois ficarem baralhadas como «aqueles homens que só dizem coisas feias» e que não os deixam jogar ou brincar dentro das redes para que «os carros não nos façam mal». Se assim fosse, as mãezinhas descansavam mais e não se preocupavam tanto.

«Quando for grande quero mandar no mundo para castigar aqueles homens maus» disse Miguelito.

O sono que incomodava quem debaixo estava das estrelas, fez com que Tobias se despedisse dos discípulos, porque na madrugada que se aproximava tinha que se levantar cedo para ver os passarinhos – quem sabe se alguns dos que estavam aconchegados nas árvores próximas – voando na direcção às poças de água, molhando o bico.

Desceu de cabeça baixa, envergonhado pelo que ouviu e viu. Sussurrava no silêncio sobre o acontecido e pela falta de educação, quando alguns homens se esquecem de comportar para que fossem iguais a ele. Pouco se importa do que ouve, mas fica triste quando seus iguais já não respeitam quem ainda não sabe o que é respeito

Tempo teve, para ouvir quem queria mandar no mundo. Riu-se como um desalmado porque as suas histórias eram assimiladas por quem não sabe as maldades do mundo, ou das pessoas.

António Centeio
Enviado por António Centeio em 17/09/2006
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