Parâmetros Curriculares Nacionais, Tranversalidade e Educação em Direitos Humanos: um caminho (possível) para a transformação escolar.

Parâmetros Curriculares Nacionais, Tranversalidade e Educação em Direitos Humanos: um caminho (possível) para a transformação escolar.

Prof. MS João Beauclair

1 - Algumas idéias e antecedentes sobre os PCNs:

Comprometendo-se a desenvolver uma prática pedagógica voltada para a construção das cidadania, os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs, elaborados pelo Ministério da Educação e do Desporto se inserem num contexto histórico de alterações causadas, na própria sociedade brasileira, a partir da década de 80, onde o processo de abertura política possibilitou novas discussões sobre realidade educacional brasileira, o que permitiu que ocorressem reformulações nos sistemas de ensino estaduais e municipais .

No entanto, somente na década de 90 é que teremos um maior delineamento de caminhos mais definidos para a educação brasileira.

A participação brasileira na Conferência Mundial da Educação para todos , ocorrida na Tailândia e a assinatura do Brasil na Declaração de Nova Delhi. O compromisso então assumido pelo Brasil e por outros países foi, principalmente, o de garantir a todos - crianças, adolescentes, jovens e adultos - uma educação básica de qualidade.

Tais compromissos vinculados à análise dos variados problemas da educação brasileira, levaram ao governo federal a estabelecer o Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003), onde temos como principal objetivo, a recuperação da qualidade de ensino, num processo contínuo. Neste plano decenal , uma das tarefas principais foi a de elaboração dos PCNs, que, além de atender à atual LDB- Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei federal 9.394/96), atende, ainda, à própria Constituição Brasileira de 1988.

Elaborados a partir de dados estatísticos e pesquisas do ensino fundamental, e de diversos estudos de diferentes propostas curriculares de estados e municípios brasileiros, os PCNs, no decorrer de seu processo de elaboração, contou com a participação de diferentes profissionais da área educacional brasileira, de diversos níveis e localidades, que foram chamados para opinar e debater sobre o projeto piloto e, dessa forma, sugestões de uma mostra significativa foram debatidas, ouvidas e até mesmo incorporadas.

Constituindo-se assim, como um documento governamental, os PCNs contêm propostas para a renovação da base curricular do ensino fundamental no Brasil. Não se trata, entretanto, de uma simples enumeração de conteúdos, ao contrário, é um documento amplo e traz, em si, subsídios para uma discussão mais aprofundada uma sobre conteúdos, objetivos e critérios de avaliação escolar.

Longe de ser um documento definitivo, os PCNs procuram promover uma ampla discussão com a sociedade auxiliando nos caminhos que podem determinar o tipo de educação que se almeja para o nosso país para o próximo milênio. A iniciativa serve para influenciar nos padrões, valores e filosofia de ensino, além da concepção de educação.

A nosso ver, mesmo com todas as polêmicas que os PCNs ainda causam, tal documento é um marco definitivo quando buscamos refletir sobre tais questões com todas as partes envolvidas no processo educacional.

Especificamente no ensino fundamental, o que deve nortear a ação pedagógica é a busca incessante da inserção do educando como personagem, procurando sempre contextualizar tanto os dados quanto os atores sociais, buscando ainda, inserir o aluno em seu lugar no tempo e no espaço. Se consideramos que uma das funções da escola é a formação crítica para a cidadania, na pratica pedagógica devemos ter educadores capazes de identificar possibilidades de atuação que possam contribuir para que a educação esteja a serviço desta construção da cidadania, além de propiciar a compreensão do significado e da importância da utilização da capacidade do educando como principal objetivo norteador do ação pedagógica.

Nos PCNs estão estabelecidos os objetivos que devem ser alcançados ao longo do ensino fundamental. No entanto, o que podemos perceber é que sua principal função é fazer com que a escola seja formadora de opiniões, extremamente crítica, fornecendo ao educando a possibilidade gradativa de ler e compreender a realidade que o cerca, procurando se posicionar, fazendo suas escolhas, optando por posturas próprias, e, principalmente, agindo criteriosamente.

Para que tudo isso seja isso seja alcançado é preciso fazer com que os alunos atinjam os objetivos de identificar o próprio grupo de convívio e as relações que estabelecem com os tempos e espaços; de organizar alguns repertórios histórico-culturais que lhes permitam localizar acontecimentos numa multiplicidade de tempo, de modo a formular explicação para algumas questões do presente e do passado; de conhecer e respeitar o modo de vida de diferentes grupos sociais, em diversos tempos e espaços, em suas manifestações culturais, econômicas, políticas e sociais, reconhecendo semelhanças e diferenças entre eles; reconhecer as mudanças e permanências nas vivências humanas, presentes na sua realidade e em outras comunidades, próximas ou distantes no tempo e no espaço.

A medida que não trazem soluções prontas e impostas, os PCNs acabam por colocar em discussão e debate as próprias práticas e a questão curricular. Ao nosso ver, é um material de referência extremamente significativo e atualizado sobre a função da escola, sobre a relevância dos conteúdo a serem trabalhados e, principalmente, sobre o tratamento que eles devem ser dado.

Acreditamos ser necessário, ainda, considerar que tais orientações são gerais e devem ser, em diversos níveis, adequadas a cada realidade. Desta forma , devem ser revistas por estados e municípios, ao estabelecer os conteúdos necessários não só em relação às suas necessidades sociais e culturais, como também, em relação à maneira mais efetiva para distribuí-los no decorrer do ensino fundamental.

As orientações dos PCNs devem ser revistas, também, por cada instituição escolar, principalmente ao definirem, em seus projetos político-pedagógicos, os conteúdos, os objetivos e os critérios de avaliação.

Entendidos como um ponto de partida, uma proposta para a reorganização do sistema educativo brasileiro, os PCNs devem ser revistos, analisados, compreendidos e estudados pelos educadores ao fazerem o planejamento de suas aulas, de acordo com o contexto onde se insere sua prática pedagógica e a realidade que a delineia. A seguir, é o que pretendemos demonstrar: a proposta dos PCNs.

2 - A proposta dos PCNs

A proposta de organização do conhecimento contida nos PCNs está de acordo com o disposto no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que nos diz

“os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.”

A LDB expressa, nos diferentes parágrafos do artigo acima citado, as diretrizes gerais que devem ser seguidas para a organização curricular, tanto do ensino fundamental como do ensino médio, que a partir desta lei, passou a integrar a educação básica.

Neste sentido, os PCNs indicam diferentes objetivos para o ensino fundamental, tendo como principal proposta construir, através da educação, a cidadania dos educandos. Para atingir tal objetivo, é necessário que a escola tenha seu funcionamento dentro dos modelos de cidadania. Com a ausência de uma projeto político-pedagógico que defina, principalmente, os valores coletivos a serem assumidos por ela, a escola não cumprirá com esse objetivo. Tais valores devem, cotidianamente, clarificados e vivenciados por toda a comunidade escolar, e a prática pedagógica deve motivar tal vivencia.

A proposta dos PCNs é fazer com que a escola trabalhe comprometida com seu objetivo maior, que é o de educar.

O projeto educativo da escola deve ser contínuo processo de discussão de objetivos, conteúdos, estratégias, critérios de avaliação.

Os próprios PCNs devem ser discutidos, analisados, dentro do processo de construção e implementação e avaliação projeto político pedagógico.

Sabemos que a incorporação real do projeto político-pedagógico à vida escolar cotidiana perpassa fundamentalmente pela troca de experiências, pela discussão e formação continuada, com já discutimos aqui anteriormente.

Sabemos, também , que a prática pedagógica que pretenda tornar realidade a qualidade do trabalho educativo com os princípios norteadores dos PCNs deve necessariamente ser trabalho coletivo, sistemático, onde se pode criar um trabalho de co-responsabilidade, um compromisso permanente. Assim, a escola encontrará o real sentido de seu papel, de formar e informar, criando condições para que os educandos possam desenvolver suas capacidades e competências, suas identidades pessoais e suas socializações, suas inteligências múltiplas.

É preciso ainda que a escola também possa criar condições para que os envolvidos no seu cotidiano possa ir, em suas trajetórias, construindo valores, tendo acesso a conhecimentos que os preparem para uma atuação ética, crítica e participativa, no âmbito da cultura, da sociedade, da política e que, por fim, valorize a cultura do seu lugar, da sua comunidade, do seu país e compreenda a herança cultural da humanidade como um todo. No intuito de entender a perspectiva da transversalidade expressa pelos PCNs, procuramos referências para uma maior aprofundamento da questão em pauta e, conseqüentemente, suas implicações e contribuições para a EDH. É o que trataremos a seguir.

3 - Reformas e propostas curriculares: perspectivas para a transversalidade e a Educação em Direitos Humanos

As diversas tendências presentes nas propostas curriculares brasileiras servem de intenso debate. As reformas curriculares em curso nas escolas de ensino fundamental refletem-se e derivam de uma nova visão interdisciplinar do conhecimento, dos diferentes progressos ocorridos nos campos científico e tecnológico e da discussão que tem dominado o cenário pós-moderno sobre a inclusão da ética, do respeito ao meio ambiente, da cidadania, do multiculturalismo, da estética, da saúde e da sexualidade, e, principalmente, dos direitos humanos.

Pretendemos aqui, antes de tentarmos, no próximo item, analisar algumas relações existentes entre a globalização econômica e a educação brasileira, examinar as reformas que estão ocorrendo nas escolas, assinalando que tais reformas são reflexos do mundo contemporâneo.

Por ser extremamente necessário, é preciso perceber que tais reformas só poderão ser efetivamente avaliadas quando pudermos, com o passar do tempo, observamos o fluxo existente, normalmente, entre escola e universidade, não somente via cursos de graduação e pós-graduação, como também os cursos de extensão universitária que acabam por estabelecerem vínculos diretos com os professores da rede pública, através de cursos de capacitação.

De acordo com isso, é preciso que os processos de avaliação pelos quais estão passando os sistemas de ensino, incluindo as universidades brasileiras , sejam orientados para que ocorra realmente as necessárias reformas curriculares.

Em um processo de avaliação interna, por exemplo, é necessário partir de alguns pontos e constatações. A maioria dos cursos atuais apresentam uma lógica de organização modelada pela concepção positivista da ciência, onde o fracionamento, a descontextualização, e a desproblematização aparecem claramente nos conteúdos.

Uma outra questão é o modelo dominante de qualidade, ainda associado sobremaneira à quantidade, visto que os currículos de muitos cursos não apresentam a flexibilidade necessária, com o desejável equilíbrio entre atividades obrigatórias e atividades optativas.

É necessário ainda frisar que as perspectivas de multidisciplinaridade, de modo geral, ainda não são devidamente contempladas com a profundidade necessária, visto que ainda permanece a preocupação com o mero desenvolvimento dos conteúdos e não o desenvolvimento de atitudes e habilidades.

Desta forma, percebemos que é extrema urgência buscarmos estabelecer diretrizes para a elaboração do projeto de criação de um novo currículo para a escola de ensino fundamental. É preciso, além de definir o cidadão que se quer ver formado, identificar as reais necessidades e problemas atuais e futuros da sociedade e, com isso, criar novas disciplinas e atualização de conteúdos.

Vale lembrarmos que o currículo requer a descrição dos grupos de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores éticos e estéticos, fundamentais à formação do ser humano, assim como a explicitação do tratamento metodológico a ser dado aos conhecimentos no sentido de garantir o equilíbrio entre a aquisição de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores. Uma possibilidade é compreendermos, com mais vigor, metodologias ativas que levem à inserção da problemática da construção da cidadania e dos Direitos Humanos no cotidiano escolar.

No decorrer dos anos 80 e 90, a preocupação de delinear currículos nacionais e de inserir no currículo da escola fundamental os temas transversais de respeito ao meio ambiente, cidadania, multiculturalismo, ética e direitos humanos demonstram que na escola as mudanças estão sendo encaminhadas.

Em países como Espanha, Estados Unidos, Chile, Inglaterra, África Ocidental (Gana, Serra Leoa, Libéria, Nigéria e Gambia) e Austrália, tais mudanças se fazem presentes.

O processo de adoção, na escola fundamental, de um currículo nacional, traz em si mesmo, o germe do conflito: de um lado surge a possibilidade perigosa da imposição autoritária de um conhecimento oficial que reflete o “arbitrário cultural” de um grupo ou grupos no exercício do poder; do outro lado, torna-se essencial reformular a escola não apenas para buscar a sintonia com as modalidades de aprender e com novas tecnologias, como também, por meio de discussão do multiculturalismo, definir as fundamentais características que diferenciem os países, com a finalidade de irmos contra a uniformização cultural, ameaça maior do processo atual de globalização.

Em nosso país, com a proposta dos PCNs, se reconhece que a tensão entre o global e o local

“ ou seja, entre tornar-se pouco a pouco cidadão do mundo sem perder suas raízes, participando ativamente da vida de sua nação e de sua comunidade. Num mundo marcado por um processo de mundialização cultural e globalização econômica, os fóruns políticos internacionais assumem crescente importância. No entanto, as transformações em curso não parecem apontar para o esvaziamento dos Estados/Nação. Pelo contrário, a busca de uma sociedade integrada no ambiente em que se encontra o “outro” mais imediato, na comunidade mais próxima e na própria nação, surge como necessidade para chegar à integração da humanidade como um todo. É cada vez mais forte o reconhecimento de que a diversidade étnica, regional e cultural continuam a exercer um papel crucial e de que é no âmbito do Estado/Nação que a cidadania pode ser exercida.”

De acordo ainda com os PCNs, atualmente só visar a capacitação dos estudantes para as futuras habilitações em termos das especializações tradicionais não basta: trata-se de se buscar formar os estudantes no que se refere a sua capacitação para aquisição e desenvolvimento de novas competências, de acordo com os novos saberes que se produzem e que, por isso mesmo, demandam novo tipo de profissional preparado para poder lidar com novas linguagens e tecnologias, capaz de responder a novos processos, desafios e ritmos.

As novas relações entre conhecimento e trabalho decorrentes deste processo exigem capacidade de inovação e iniciativa e a máxima “aprender a aprender” parece se impor à máxima “aprender determinados conteúdos”.

Temas locais, meio ambiente, orientação sexual, ética, pluralidade cultural, saúde, são sugestões apresentadas nos volumes dos PCNs para serem tratadas transversalmente pela escola brasileira.

A ética aliada a pluralidade cultural diz respeito à construção de um novo código de convivência e a discussão sobre valores éticos atualmente é, de acordo com os PCNs, uma questão de sobrevivência. Temas como violência, corrupção, discriminação por fatores relacionados à procedência geográfica, credo, gênero e cor da pele, desrespeito aos mais fracos e pobres, excessiva valorização do dinheiro são visto como de essencial presença no cotidiano escolar, principalmente se a isto procurarmos associar uma proposta de Educação em Direitos Humanos.

A necessidade de discutirmos questões ligadas à nossa identidade cultural e ao desenvolvimento da tolerância e do respeito às diferenças nos foi trazida, também, pela proximidade com outras culturas, proporcionada com a diminuição das distâncias geográficas e culturais entre os países e pela facilidade nos processos comunicacionais.

Diante do exposto, acreditamos ser possível abordar, no cotidiano escolar, os temas aqui destacados, valorizando, por exemplo, questões vinculadas à Ética e a Pluralidade Cultural, que gradativamente estão sendo inseridas nas propostas curriculares para a escola fundamental no Brasil. Ao nosso compreender, isto pode levar a criação de um processo de expansão dos pressupostos da Educação em Direitos Humanos no Brasil.

Tal iniciativas, assim, são tentativas da escola de, por intermédio do seu currículo, buscar se adaptar à nova visão interdisciplinar do conhecimento, delimitando as possíveis fronteiras culturais, visto que as geográficas e políticas estão sendo eliminadas, não só pelo progresso nas comunicações e transportes mas também pela informação tecnológica.

Também acreditamos que todo este processo pode resgatar as discussões sobre moral e ética que, durante a modernidade, foram afastadas do âmbito da ciência e, principalmente, do âmbito das práticas pedagógicas.

No entanto, torna-se necessário estar consciente que reformas educativas não estão isentas de questionamentos. Pelo contrário, precisamos tentar compreender como está se dando, na contemporaneidade, as relações entre globalização da economia e educação brasileira. Esta é a nossa próxima reflexão e análise, Antes de analisarmos a temática transversalidade, levantaremos algumas questões vinculadas à esta questão.

4 - Globalizar ideais humanísticos e mundializar culturas para superar a ‘descidadania’.

Sabemos que o processo de globalização da economia não é fenômeno recente na história da humanidade, mas no pós segunda guerra mundial (1937-1945) tornou-se assustadoramente maior.

Em termos técnicos, globalização é uma expressão que significa a maneira como economias e empresas buscam se organizar em proporções planetárias. Se buscarmos fazer um histórico rápido de sua evolução, podemos compreender que nas décadas de 50 e 60 os maiores destaques podem ser dados as empresas multinacionais. Já nos anos 70 e 80 foram instituições financeiras e bancos que ampliaram seus poderes, devido as crises de dívidas externas de países em desenvolvimento.

Na década de 90, os processo de liberalização comercial e outras práticas típicas do novo contexto integrador de mercados na aldeia global preconizada por McLUHAN , claramente explorada pelas imensas corporações internacionais e onde os Estados estão, gradativamente, abrindo portais ao capital e ao comércio internacional.

Toda essa nova economia está acompanhada de uma revolução cotidiana nas tecnologias de informação, criadoras de desdobramentos da globalização além do campo da economia e geradoras de uma cultura global. Essa realidade é evidenciada nos aspectos de amplitude da velocidade e rapidez que tornam-se cada vez mais comuns no campo econômico e também nas relações existentes entre os mais diferentes atores sociais.

Essa velocidade, no entanto, acaba por gerar um processo de esquizofrenia que BARRETO (1995) , ao citar Paul Kennedy, inglês e historiador da Universidade Yale, diz estar presente em uma realidade que procurarmos esconder - usando as mais variadas justificativas para a impossibilidade de soluções para nossos problemas. Ou seja, a dimensão da globalização alcança enormidade e se manifesta, via diferentes mídias, em múltiplos aspectos do conhecimento humano e na construção de uma nova polaridade.

De um lado temos os pessimistas, que encaram todas estas revolucionárias transformações como sendo “ uma verdadeira desgraça histórica a ser combatida custe o que custar ” , visto que neste contexto histórico, a globalização é somente financeira, com seus efeitos refletidos no espelho das modernas e sofisticadas formas de desigualdades de domínios das tecnologias de ponta, geradoras de efeitos de exclusão social e da “descidadania” e também de índices jamais vistos de desemprego - inclusive nos países do norte.

Na outra ponta desta nova polaridade, encontramos àqueles que acreditam que a globalização atual é, na verdade, um resultado histórico do avanço descomunal das economias de mercado para uma única economia planetária, criadora de uma ruptura nos entraves econômicos, institucionais, culturais e educacionais que caracterizavam o liberalismo anterior.

Os que se enquadram neste grupo acreditam que a globalização está permitindo se efetivar positivamente a consciência de que determinadas questões só podem encontrar saídas e perspectivas de soluções num debate internacional.

É notório o surgimento de ações institucionais de nível global, com destaque para as iniciativas das ONGs (organizações não-governamentais), que através dos mais variados trabalhos procuram mostrar que todos nós somos cidadãos do mundo, extremamente capazes de raciocinar em nível planetário e cuidar da nossa terra. Cuidado este essencial à manutenção da vida e dos variados sistemas ecológicos que compõem nossa casa-mãe.

A ONU, através de variados programas, elaborou um o documento “Caring for the Earth” , onde fica claro que somente como um ética de cuidados, sustentada em princípio de uma estratégia global de sustentabilidade, poderemos avançar nas políticas coletivas de reconstrução ambiental do planeta.

Na realidade, todo esse processo é, na realidade , um novo desafio ético institucional, onde novas formas de concretizações de vida humana estejam amparadas em um rede de relações que ampliem a luta em prol de melhorias locais em relação aos processo mundiais de solidariedade, de direitos humanos e formação da cidadania gerenciada a partir de uma correta ecologia humana.

A rede de relações acima citada é muito bem discutida na recente trilogia de CASTELLS (1999), onde o autor aprofunda as discussões sobre as múltiplas transformações advindas do processo de mundialização da economia, principalmente o aumento crescente da revolução tecnológica de informação, cujos efeitos estão presentes nas mais diversificadas vertentes da vida social desde o surgir de novas categorias de tempo e espaço, de organização de interesses e construção de novas identidades, até a reformulação do papel do Estado-nação e o fortalecimento atual dos processos de etnicismos e localismos, no enfrentamento das questões vinculadas a metropolização da cultura, do controle à distância e, ainda, dos processos de digitalização da realidade.

Dentro desse complexo e novo contexto, um novo conceito do termo cidadania é exigido visto que, no rastro do processo de globalização atual, com nos diz Nassif, “ o conceito de cidadania passa ser universal. E não apenas nas relações das empresas e profissionais com seus consumidores, mas com todo seu ambiente social e ecológico” .

Entretanto, só é possível acreditarmos acredito que essa nova conceituação, num efeito ideológico mais amplo, poderá criar novas alianças e parcerias e, com isso, diminuir as diferenças existentes entre populações dos países do norte e do sul se presenciarmos, em nosso cotidiano como educadores um confronto entre Humanidade e Neoliberalismo.

No II Encontro Americano pela Humanidade e contra o Liberalismo , alguns posicionamentos e idéias concretas foram aprovados e propostos como bandeira para todos os educadores, principalmente o engajamento no “Brasil, 500 anos de Resistência Indígena, Negra e Popular”.

É dentro desta perspectiva que, em nossas ações práticas como educadores, que procuramos construir a possibilidade concreta de vermos a escola como

“uma mediadora privilegiada na questão dos Direitos Humanos e da Cidadania, (...) que se pode fazer do espaço escolar um local onde a formação de crianças, adolescentes e adultos resulte em uma construção prática e teórica (...) que leve a superação de atitudes passivas diante da realidade, transformando-as em ativas no exercício de cidadania, baseadas no coletivo, na indignação ética, no comprometimento conjunto de se fazer surgir um viver democrático, uma sociedade plural, onde o respeito aos diferentes grupos que a constituem sejam valor maior a ser efetivamente vivenciado.(...)

É importante ressaltar que a reinvenção ética na educação perpassa por questões filosóficas mais amplas (como moral, lógica, dialética), e ao educador cabe assumir uma postura de reintrodução da singularidade da experiência e existência humanas, transitando pelas dimensões do imaginário, do lúdico , do homo ludens, do homem ôntico (histórico).

Com tal posicionamento, devemos continuar caminhando para a projeção e edificação de um novo mundo, onde o educador seja também filósofo, no sentido proposto inicialmente por Niestzche e ampliado posteriomente por Merleau-Ponty, Heidegger e, principalmente, por Jean Paul Sartre , que nos induz a pensar que é

“preciso ir mais longe e considerar em cada caso o papel do indivíduo no acontecimento histórico. Pois este papel não é definido de uma vez por todas: é a estrutura dos grupos considerados que o determina em cada circunstância (...) O grupo confere seu poder e eficácia aos indivíduos que fez, que por sua vez, o fizeram e cuja particularidade irredutível é uma maneira de viver a universalidade. Através do indivíduo, o grupo volta-se sobre si mesmo e reencontra na opacidade particular da vida tanto quanta na universalidade da sua luta.

É com esse precisar que devemos buscar um projeto possível de resgate do humano sentir do amor, sem o qual nada há, pois sem paixão o homem não faz história.

5 - Mapeando caminhos e contatos com os temas transversais

Desde o surgimento da proposta dos PCNs no cenário educacional brasileiro, temos procurado estudá-los criticamente, estabelecendo diferentes momentos de pesquisas e sistematizações com a intenção de encontrar aproximações com os pressupostos da Educação em Direitos Humanos.

Iniciamos tal estudo ainda em 1995, com a versão preliminar, pouco divulgada, do documento introdutório dos PCNs para o ensino fundamental. Trata-se de uma produção inicial do próprio MEC e que tivemos acesso por estarmos envolvidos, na época, com atividades de capacitação de professores.

Não nos resta dúvida de que, com muita intensidade, o contato com essas idéias iniciais nos provocou o impulso para buscarmos outras possibilidades de estudos.

Tivemos contato com a expressão temas transversais da mesma forma que muitos outros educadores brasileiros, ou seja, através dos PCNs, publicados nos anos seguintes.

Na busca constante de outras leituras e de outros referenciais, encontramos um trabalho que nos iniciou com mais profundidade no assunto. Trata-se de uma coletânea de artigos que se referem à experiência da Espanha com a questão.

A partir daí, outras publicações surgiram e ampliamos nossas leituras e percepções sobre a questão.

No que concerne ao próprio conceito de transversalidade, sabemos que sua evolução foi rápida e que , mesmo que suas bases iniciais tenham se ligado aos procedimentos, ainda representa novidade no sistema educacional brasileiro. No entanto, seu conceito ainda não foi generalizado e, sua prática, ainda é complexa.

Por temas transversais podemos compreender um conjunto de conteúdos educativos que, de um modo geral , na história da prática pedagógica brasileira, já tinham sido desenvolvidos paralelamente ao currículo oficial, partindo de grupos de educadores ligados à movimentos sindicais, movimentos eclesiais de base e de educação popular. Ou , ainda, de educadores vinculados a programas educativos desenvolvidos por outros ministérios, tais como da Justiça, Saúde, do Meio Ambiente, etc.

Historicamente, então, a escola sempre atuou, de maneira abrangente, com temas transversais de modo marginal, ou seja, tais temas eram desenvolvidos em momentos específicos, tais como campanhas ou datas comemorativas.

Procurando encontrar um caminho para partir para a construção de um processo de tentativa de renovação pedagógica, a questão da transversalidade passou a ser o centro de debates nos movimentos de renovação pedagógica e curricular, como uma forma de, ao buscar chamar atenção para antigas propostas educacionais, atualizando-as e inserindo-as no contexto da educação atual e das necessidades do homem contemporâneo.

Isto posto, é necessário frisarmos que a transversalidade é um importante componente para que uma nova cultura acadêmica seja efetivamente construída, o que nos conduziria, inexoravelmente, a novas estruturas educacionais, remetendo-nos aos processos de complexização e globalização dos currículos.

Tais processos, podem nos conduzir para discussões importantes, como por exemplo, as relações existentes entre a perspectiva da interdisciplinaridade e sua relação com a transversalidade. Ambos os conceitos nos remetem para a crítica da concepção do conhecimento que considera a realidade como um conjunto de dados estáveis e, por isso, sujeitos a processo de conhecimento distanciados, isentos, neutros.

É importante, assim destacarmos que mesmo que tanto um conceito como o outro procuram apontar para a complexidade do real e buscam considerar a rede de relações existentes entre os seus contraditórios e distintos aspectos, diferem um do outro porque a transversalidade liga-se a própria dimensão didática, enquanto que a interdisciplinaridade faz referência aos aspectos epistemológicos do conhecimento.

Os questionamentos sobre a segmentação entre os diferentes campos do conhecimento fazem com que a interdisciplinaridade questione as abordagens que não considerem a influência e a interelação existentes entre eles. Em termos da prática pedagógica, o paradigma interdisciplinar questiona a constituição histórica da escola que atua com a visão disciplinar e compartimentada do conhecimento sobre a realidade. A transversalidade, por sua vez preocupa-se com o estabelecimento possível, na pratica pedagógica, de uma nova forma de se aprender sobre a realidade, vinculando os saberes teoricamente sistematizados, e , ainda, de aprender na realidade e da realidade, sobre os desafios da vida real e os seus respectivos processos de mudança e transformação. Por fim, a transversalidade

“ promove uma compreensão abrangente dos diferentes objetos de conhecimento, bem como a percepção da implicação do sujeito do conhecimento na sua produção, superando a dicotomia entre ambos. Por essa mesma via, a transversalidade abre espaço para a inclusão de saberes extra-escolares, possibilitando a referência a sistemas de significado construído na realidade do aluno.”

Assim, a inserção dos temas tranversais na prática pedagógica de acordo com a proposta dos PCNs, procura dar sentido social aos procedimentos e conceitos presentes nos diferentes campos do conhecimento. Neste ponto, acreditamos poder encontrar, neste proposta, elos de ligação com as perspectivas de Educação em Direitos Humanos, principalmente no que se refere aos eixos articuladores de sua prática que buscam interpenetrar as dimensões do ver, do saber, do celebrar e do comprometer-se .

6- Temas transversais e projeto educativo na proposta dos PCNs:

Pelo até aqui esboçado, podemos afirmar que os PCNs constam de uma proposta de conteúdos que devem servir com referencial e orientação para que a estrutura curricular das escolas brasileiras possa fazer a inserção transversal aos denominados conteúdos curriculares tradicionais, tais como a Matemática, Ciências, História, etc. através de conteúdos como Ética, Pluralidade Cultural, Saúde, Orientação Sexual, Meio Ambiente e Trabalho e Consumo.

Cabe relembrar, no entanto, que nesta proposta, tais conteúdos não são concebidos como novas disciplinas que devem ser acrescentadas ao currículo escolar, mas que devem ser inseridas, de forma interdisciplinar, integrada e transversal aos conteúdos já trabalhados.

A nosso compreender, o interessante nesta proposta é exatamente a inserção dos temas transversais no que se refere aos conteúdos relacionados à ética e aos valores universalmente desejáveis, como os que se fazem presentes nos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Desta forma, o Estado brasileiro volta a reconhece-los como valores essenciais na formação para a cidadania numa sociedade democrática e plural.

De acordo com o artigo 22, da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a educação deve assegurar a todos “ a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornece-lhes meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” e neste sentido, os PCNs, e principalmente os temas transversais contidos em sua proposta, podem levar ao espaço escolar e as práticas pedagógicas nele presentes, o exercício cotidiano da cidadania, permitindo o surgimento de discussões e debates sobre a igualdade de direitos, a dignidade humana, a recusa à formas de opressão e discriminação, a importância do respeito e da solidariedade

Buscando um sentido prático para a observações acima, podemos afirmar que isso é possível a partir do momento que se possa rever o próprio papel da escola e que novas metodologias possam ganhar espaço no processo de ensino e aprendizagem, de modo a garantir que, na prática pedagógica, os envolvidos no fazer educativo possam desenvolver suas capacidades cognitivas, afetivas, físicas, de relação interpessoal, de inserção social, ética e estética, além de poderem ter acesso a diferentes conteúdos que possam ser instrumento de aquisição e desenvolvimentos destas capacidades, principalmente no que se refere aos processo de educação permanente, exigido pela inserção dos paradigmas das competências num mundo do trabalho em contínua transformação.

Tais capacidades - cognitiva, afetiva, ética, inserção social, estética, física, relação interpessoal, etc. - nos remete para os quatro pilares da educação propostos pela UNESCO: aprender a conhecer, aprender a viver com os outros , aprender a fazer , aprender a ser.

Acreditamos que estas são as sinalizações possíveis de se trabalhar com os temas transversais.

Na publicação dos PCNs, conforme anteriormente demonstramos, os temas transversais se apresentam da seguinte forma: Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual e Trabalho e Consumo. Aqui não podemos abordá-los em suas totalidades, mas acreditamos ser necessário tecer alguns comentários sobre um deles, especificamente: a Ética.

No que diz respeito a Ética, podemos observar que, em todos os PCNs, com suas áreas e outros temas transversais, existem questões que envolvem conduta humana, normas e valores. É possível também afirmar que tais questões perpassam por todos os tipos de relacionamentos humanos, tanta na família, como na escola e no trabalho. Por sabermos que todas as instâncias do viver em sociedade articulam um dimensão moral, podemos afirmar que, através da prática pedagógica, poderemos possuir critérios e valores, estabelecendo hierarquias e relações entre eles para que possamos viver e conviver em sociedade. É através dos questões complexas e dos conflitos e que podemos perceber

“ os limites das respostas oferecidas pela moral e a necessidade de problematizar essas respostas, verificar a consistência de seus fundamentos. É aí que entra a ética. A ética é reflexão crítica sobre a moralidade. Ela não tem um caráter normativo, pois, ao fazer uma reflexão ética pergunta-se sobre a consistência e a coerência dos valores que norteiam as ações, busca-se esclarecer e questionar os princípios que orientam essas ações, para que elas tenham significado autêntico nas relações.”

Assim, o que efetivamente se configura é um novo tempo, repleto de desafios para o profissional de educação comprometido com a mudança social e com a percepção do desafio reconstrutivo do conhecimento.