A ARTE DA CONVIVÊNCIA

Ouvi contar.

Bem longe, numa pequena casinha isolada no meio de uma mata, certa manhã de um verão ensolarado, Dolores recebeu, pela primeira vez em muitos anos, a visita de sua prima Rita, que veio da cidade para ser madrinha do seu sexto filho. Timóteo, marido de Dolores, criado no campo, era um lavrador orgulhoso de ter conseguido sozinho com a esposa criar uma família tão numerosa, vivendo longe da civilização, onde raramente aparecia alguém com alguma novidade. Eram eles mesmos que resolviam a maioria dos seus problemas, não contavam com a ajuda de livros, pois nem sabiam ler ou escrever, nem havia médicos ou professores num raio de centenas de quilômetros.

A choupana onde Dolores vivia com a família era humilde, mas limpa e com tudo nos lugares. Apesar da mãe ter falecido quando ela ainda era pequenina, Dolores, que conheceu Timóteo aos 15 anos e logo engravidou, era uma mãe dedicada e procurava manter as coisas nos seus devidos lugares.

Enquanto todos comiam milho assado, pamonha e bebiam café após a festa do batizado, que contou com o comparecimento do padre da paróquia e uma dúzia de vizinhos, Rita puxou a comadre para um canto e lhe falou:

- Estou muito feliz em ter vindo lhe visitar comadre. Fazia muitos anos desde que a gente se separou e você veio morar aqui na roça com seu marido.

- Eu também, comadre Rita. Ninguém da minha família vem aqui me visitar. Mas eu entendo... aqui é longe, sem recursos, não tem estrada de carro... – disse Dolores com uma certa mágoa.

- Pois é comadre, mas tem uma coisa que quero lhe falar... é sobre seu marido, o Timóteo. – disse a outra cochichando.

- Sobre o Timóteo? O que tem ele? Ele tratou mal a comadre? Lhe faltou com o respeito?

- Não... comadre, ele não me tratou mal. Ele é um bom homem, mas ele tem um probleminha... quer dizer é um problemão...

- Problemão? Você está me assustando comadre Rita. Eu sei que meu marido é analfabeto como eu... você sabe, a gente veio para essas banda quando ainda éramos moços... nunca fomos a escola. Ele é meio bronco, mas eu sou igual. A comadre me desculpe se ele não sabe falar direito, não entende certas coisas...

- Tá bem, comadre. Não precisa ficar se desculpando. Seu marido não é bronco e é até muito educado. Não tem cultura, é bem verdade, mas o problema dele é outro...

- Pois fale logo comadre, já estou ficando agoniada.

- Como é que você consegue fazer amor com ele?

- Qual o problema comadre? Ele é um homem normal... a gente tem seis filhos.

- Eu vou explicar... eu fico até com vergonha de falar isso... é que seu marido não toma banho direito... acho até o padre notou e ninguém consegue ficar perto dele muito tempo. A inhaca dele é muito grande, comadre... você não sente?

- Do que você está falando comadre Rita? Desde que eu conheço Timóteo ele tem o mesmo cheiro. A comadre deve está brincando comigo, não é não?

- Não estou não minha amiga. Eu lhe quero muito bem, mas tenho que lhe dizer isso antes de ir embora. Acho que seu marido tem "CêCê"? Um cheiro ruim debaixo do sovaco. A comadre já ouviu falar nisso, não já?

- "Cêcê?!! Nunca ouvi falar não. É uma doença ruim, é?

- Não comadre, quer dizer, é e não é. Mas tem remédio. Ele tem que tomar banho todo dia e passar leite de magnésia ou bicarbonato... se não tiver, pode passar limão. Se fizer isso todo dia, acaba o mau cheiro. Quer dizer que a comadre nunca sentiu?

- Olhe comadre, eu conheci Timóteo quando tinha 15 anos.. foi meu primeiro homem, nunca tive contato com mais homem nenhum. Pensei que todo homem tivesse o mesmo cheiro. Aqui na roça de vez em quando aparece uns homens para ajudar meu marido e acho que todos são do mesmo jeito.

- Ahhh... entendi comadre. Me desculpe, mas se você falar com seu marido, ele vai entender. Assim a comadre vai fazer amor com seu marido bem limpinho e sem a inhaca do sovaco dele.

- Pois então comadre... se preciso for vou dar um banho de limão nele todo dia, limão por aqui é que não falta. O pé de limão mirim está carregadinho... E se der certo vamos fazer mais uns seis filhos.. tudo cheirozim...

As duas comadres caíram na gargalhada.

Depois que todos foram embora, a primeira coisa que Dolores fez foi chamar o marido e falar o que a comadre havia lhe dito. Depois de ouvir tudo o marido sorriu e falou:

- Mas mulher, porque você nunca me falou isso? Eu até que gosto do diacho do limão só não sabia que era bom pra saúde beber o bicho por debaixo do sovaco.

Os dois se abraçaram e desataram a rir.

A história pode nunca ter acontecido dessa mesma forma, mas nos deixa uma lição preciosa. Durante anos a fio, as pessoas convivem em ambiente de trabalho, na vida social e especialmente no relacionamento conjugal, sem trocarem informações valiosas sobre seus gostos e desgostos. Não é raro, somente depois de dezenas de anos de convivência, o homem ou a mulher dizer para o cônjuge:

- Eu nunca lhe disse, mas eu sempre detestei que você deixasse a pia cheia de cabelo.

Ao que o outro revida dizendo:

- Ah, é.. pois também estou a 30 anos agüentando seu ronco todas as noites e nunca lhe disse nada a respeito.

Afinal, o que é isso? Porque as pessoas inteligentes e que dizem amarem-se não são capazes de expressar clara e objetivamente seus desgostos relacionados a coisas que as incomodam. Ou o contrário, porque nunca dizem como gostariam que fossem as coisas?

Existem coisas que podem ser constrangedoras como é o caso do exemplo do Timóteo e da Dolores. Hiperhidrose (excesso de suor), chulé, mau hálito, ronco, arrotos ou flatulências em público, falar muito alto, falar muito baixo, apressar um ao outro, discutir em público, esquecer datas importantes, dormir tarde, dormir cedo, deixar roupas espalhadas, falar demais, falar de menos, falar muito ao telefone, não ouvir o outro, não arrumar a cama ao se levantar, usar certos perfumes, usar certas roupas em casa, demorar no banho, falar com a boca cheia, dizer palavrões, cacoetes estranhos, são apenas algumas das centenas de coisas que preenchem o universo dos relacionamentos entre seres humanos.

Como conviver com elas sem nos sentirmos desconfortáveis? Ou ainda, como expressar isso de modo inteligente e adequado ao outro para permitir a devida correção?

No caso da Dolores, ela não tinha um parâmetro diferente sobre o cheiro do corpo dos homens. Todos que ela conhecia eram iguais. Assim, era muito lógico que ela sequer soubesse a diferença. No caso do Timóteo, ele também não se dava conta. De tanto conviver com um hábito, as pessoas o têm como parte integrante de si mesmos. É necessário que as outras pessoas que nos rodeiam nos alertem para algo anormal.

A solução foi encontrada porque houve por parte dos envolvidos disposição para melhorar. A comadre Rita, já conhecedora do assunto, achou que poderia ajudar ao casal de amigos a se apresentarem melhor perante os amigos e perante eles mesmos. Teve suficiente empatia para ajudar. Poderia ter dado de ombros e deixado tudo como estava. Poderia voltar para a cidade falando mal dos compadres, mas não foi isso o que ela fez. Ofereceu ajuda. Se fosse mal interpretada, pior para eles. Mas como a recomendação foi aceita, ela conseguiu o objetivo desejado. A mulher também quis ajudar ao marido e ofereceu ajuda. Ele querendo se melhorar, aceitou ajuda e todos viveram felizes para sempre. Seria bom se sempre fosse assim. Mas não é.

Em geral, os casais se ressentem quando um chama a atenção do outro para um aspecto da personalidade ou comportamento que desagrada ao outro. Conseqüentemente, se afastam. Isso não resolve nada, ao contrário, piora a situação e concorre para relacionamentos instáveis, rancorosos e infelizes. O maior atributo do ser humano é a capacidade continua de se automelhorar. Todos querem melhorar a si mesmos. Poderemos alcançar isso por meio da escuta atenta aos nossos familiares, cônjuges e amigos. São eles quem nos vêem melhor do que nós a nós mesmos. É um exercício difícil pois o ser humano quer ser aceito tal qual é, sem necessidade de mudanças. Todos gostam se serem aceitos sem ressalvas. Será que isso é possível? Existe um tipo de ser humano com tais características? Não, definitivamente não. Cada ser humano tem suas idiossincrasias e como tal, pode ser ou não aceitos ou rejeitados por elas. Mas qual o melhor modo de conviver? Aceitando as sugestões sem critério de qualquer pessoa para que nos modifiquemos? Ou sendo razoáveis e ouvindo as pessoas com quem convivemos no dia a dia e são importantes na promoção e manutenção de nossa felicidade e bem estar?

Creio que essa última recomendação é mais inteligente e adequada. Pode gerar melhores relacionamentos em qualquer nível. O que temos a ganhar? Provavelmente muito. Teremos menos aborrecimentos, descontentamentos e pessoas predispostas a se modificarem no que lhe é perfeitamente possível para tornar a convivência mais harmoniosa.

Todos os seres humanos querem ser agradáveis por natureza. O sorriso é uma prova disso. Quantas vezes sorrimos durante um dia? Observe as pessoas à sua volta. Elas estão a maior parte do tempo sizudas, fechadas ou sorridentes? Você provavelmente vai encontrar excessos em ambos os casos. Mas, com toda certeza, a maioria das pessoas preferirão conviver com alguém que sorri mais do que as que sorriem menos. É quase uma lei natural. Por isso gostamos tanto de crianças. Elas sorriem por qualquer coisa.

Converse com seu parceiro, pai, filho, irmão, colega, amigo sobre as coisas que mais lhes aborrecem. Seja positivo e faça também uma lista das coisas que você mais gosta que eles façam. Não se trata de uma lista de "manipulações" como pode parecer. Trata-se apenas de uma clarificação das coisas do mundo real. Somos assim. Gostamos disso e não daquilo. Cabe a cada um dentro das próprias limitações, necessidades e desejos, incorporarem ou ignorarem comportamentos facilitadores da boa convivência. Este é o exemplo deixado pela história de Rita, Dolores e Timóteo.

(*) Mathias Gonzalez é psicólogo e escritor e mora atualmente no Canadá.

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