Como explicar o sofrimento do inocente? (SERMO IC)

COMO EXPLICAR O SOFRIMENTO DO INOCENTE?

Questões de teologia moral

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

Eu sei que o meu redentor está vivo, e que no fim se

levantará acima do pó. Mesmo com a pele em pedaços e em

carne viva, eu verei a Deus. (Jó 19,25s).

O sofrimento é uma das questões mais delicadas, para não dizer complicadas, um legítimo “calcanhar de Aquiles” da filosofia, da teologia e de todas as teodicéias. Por teodicéia se entende aquele conjunto de argumentos que, em face da presença do mal no mundo, procura defender e justificar a crença na onipotência e suprema bondade do Deus. Mesmo que não se queira, é imperioso retornar ao assunto e questões correlatas.

Se os Livros Sagrados de todas as religiões apregoam que o mal é um castigo, uma retribuição a um mal cometido, como explicar – especificamente às vítimas – os porquês do sofrimento do inocente. O grito dos novos Jó de nosso tempo, “por que sofro se tento ser bom?” nos remetem ao irremediável e inexplicável. Diante do mal, da tragédia, nossa primeira atitude é perguntar: quem é o culpado? É a primeira questão que levantamos.

Nesse particular, a teologia e filosofia ocidental adquiriram uma consciência própria do mal/desgraça e estabeleceram um método discursivo a partir dessa consciência. Esse discurso manteve-se secularmente centrado no binômio mal/castigo. O mal que nos afeta – na impossibilidade de um conceito melhor – é reputado como “castigo dos céus”. O mal/desgraça (físico) que vem “de fora” (doenças, guerras, acidentes, terremotos, etc.) acabou fornecendo à nossa civilização uma chave-de-leitura essencialmente fatalista dos fatos: “isto ocorreu porque ‘tinha que ser assim’, a gente mereceu!”.

As penas do mal são aceitas como algo devido e merecido. É aquela história do “o outro pode nem saber porque está batendo, mas ele sabe porque está apanhando”. É o chamado malum poenae (mal da pena) que vem “de cima”, e por isto torna “razoável” o castigo sofrido. Ainda mais se for visto como “a vontade de Deus” ou “um castigo dos céus”. Como ensina A. Gesché,

Contudo, a partir da consciência do “mal merecido”, as teodicéias ocidentais ocultaram o sofrimento do inocente. O mal não é mais “imerecido”. Muito ao contrário: ele é a sanção de uma culpa, visível ou invisível. Faltou assim um encontro com o mal incompreensível e inocente com a desgraça. No fundo, nesse tipo de visão, não há outro tipo de mal senão o culpável.

No livro de Jó o problema do sofrimento do justo e do inocente é tratado de maneira poética. Embora se trate de uma parábola, uma leitura alegórica escrita com um fim determinado, o autor mostra que Jó é uma pessoa justa, homem temente a Deus (1,1). Mesmo assim, Deus permite que Satanás cause terrível sofrimento a ele, por meio de desastres e doenças, para testar sua lealdade.

Satanás, no papel de “promotor” (acusador) quer provar a Deus que a fé de Jó é falsa (2,3-7). A histórica de Jó é temática no estudo do mal. Sob intenso sofrimento, Jó discute com seus amigos sobre o sofrimento dos inocentes. Quase no final, Deus entra no debate e responde:

Quem é esse que escurece o meu projeto com palavras sem sentido? Se você é homem esteja pronto; vou interrogá-lo e você me responderá. Onde você estava quando eu colocava os fundamentos da terra? Diga-me, se é que você tem tanta inteligência! (38,2-4). Quem critica a Deus irá responder? (40,2a).

Deus responde dizendo a Jó que a sua sabedoria e poder estão além da compreensão humana. É o adensamento do mistério divino. O homem também não mantém controle sobre o universo: suas virtudes não garantem a felicidade sobre a Terra. Jó humildemente encerra o debate:

Eu reconheço que tudo podes e que nenhum dos teus projetos

fica sem realização. Pois bem, eu falei sem entender, de

maravilhas que superam a minha compreensão. Por isso, eu me

retrato e me arrependo, sobre o pó e a cinza (42,2.3b.6).

Aqui a Bíblia lembra que devemos aceitar os sofrimentos e confiar em Deus. Mais adiante, e os evangelhos no-lo revelam, Jesus Cristo responde desta forma na cruz. Ele aceita o sofrimento, mergulhando no mais profundo do mistério, sabedor que lá adiante está o projeto do Pai.

Só a causa do sofrimento do inocente, daquele que não concorreu em nada para o efeito danoso, que fica, muitas vezes, sem uma resposta que satisfaça. Que não se diga, em momento algum, que esse ou aquele evento foi “vontade de Deus”. Seria a associação de uma blasfêmia com uma heresia.

Deus quer o homem feliz. Para isto ele nos deu seu Filho (cf. Jo 3,16). O que, volta-e-meia, foge à compreensão é a questão em que, sendo Deus Todo-Poderoso e ciente de tudo, por que ele não impede certos males? Teria o mal sua origem na liberdade? Nem sempre... No episódio, por exemplo, do turista em férias que morreu, engolfado por uma onda, gigantesca e imprevisível, não ocorre o componente liberdade.

Deus criou/cria tudo por bondade e por absoluta liberdade em fazê-lo. Por seu poder ele pode criar coisas novas a qualquer instante. Referindo-se à Criação, Santo Tomás de Aquino, para refutar, talvez, os erros da predestinação de Scotus Erígena († 877) e da dialética do sic et non de Abelardo († 1142), insiste na liberdade de Deus ao criar, bem como na conseqüente contingência do que foi criado. Diante do mal, das desgraças inexplicáveis e às vezes injustas, até o crente duvida, desespera-se e questiona.

Mesmo que a gente seja uma pessoa de fé, nosso lado filósofo às vezes nos faz pensar. Não se trata de acusar Deus ou negar sua existência, mas como humanos, colecionamos, com coragem, questões, próprias ou escutadas da boca de terceiros, em geral pessoas inocentes, assoladas pelas tragédias do cotidiano. Tragédias estas que ficam, na maioria das vezes, sem explicação.

A grande verdade é que o ser humano nunca esteve convenientemente preparado para esse (re)conhecimento. As religiões, as filosofias ou os sistemas de pensamento tentam há séculos mostrar caminhos, colocar limites e impor padrões, nem sempre com a eficácia esperada. A progressiva escalada do mal, em todos os segmentos da sociedade humana atesta a assertiva.

Ora, se o homem não é absolutamente capaz de reconhecer a necessidade ética de suas ações, pode-se dizer que suas decisões não são integralmente livres. E, em alguns casos, pelo aspecto da contingência e da fragilidade, a liberdade torna-se para ele aquela armadilha definida por J. P. Sartre, na qual por não ser livre, o ser humano nasce “condenado “a liberdade”..

Nos acidentes, nos desastres ecológicos, muitos inocentes perdem a vida. A pessoa foi ali para se divertir, curtir umas férias e acaba morrendo inexplicavelmente, vítima de um capricho da natureza, como ocorreu com o Tsunami da Ásia, ou com o furacão Katrina, em New Orleans. As vítimas ou familiares delas têm várias visões sobre esses acidentes:

• foi “vontade de Deus” (fatalista);

• má sorte dos que estavam lá (racionalismo pessimista);

• técnica (placas tectônicas que se moveram);

• supersticiosa (foi um “aviso”);

• político-religiosa: “o Katrina foi a ‘mão de Alá! – disse um

mulá afegão – um castigo pelas crueldades que os

americanos têm infligido aos países do Islã”.

O ateu ou o descrente vai fundo: onde estava a “misericórdia” que permitiu? Ou, “se” Deus é onisciente, por que não previu, não evitou, ou poupou tantos inocentes? É a mesma lógica ilógica das tragédias gregas (Antígona, Édipo-rei, Medéia): por que as divindades do Olimpo, que tudo vêem, não impediram o mal?

Miséria, fome e exclusão também são faces do mal

Quando andamos pelas ruas, cansamos de ver opulência e sinais exteriores de riqueza de tanta gente que circula por aí, indiferente da miséria alheia. Vendo-os, seria de perguntar: por que existem tantos que têm fome, não têm um teto para se abrigar, sem saúde, infelizes, excluídos? Seguramente porque algum princípio ético mais elementar foi rompido, algum juízo de consciência foi alterado e – com isto – desenvolveu-se um processo equivocado de escolha, houve mais instinto e menos consciência, mais interesse e menos afetividade, mais acumulação e menos participação. A finalidade de vida foi desvirtuada, e o mal tomou o lugar do bem. Não é porque é escolha que alguma ação assume um valor em si. Precisa ser uma escolha com valor; ética.

A concepção que Th. Hobbes tem do Estado, distancia-o da maior parte dos filósofos políticos. Uma análise, mesmo superficial, nos revela que Th. Hobbes é partidário do poder absoluto. Embora reconheça nesse absolutismo um mal, o filósofo entende que só esta forma de governar é capaz de conter outros males maiores. Sob esse ângulo de visão, Hobbes não via solução para os conflitos sociais a não ser pela entrega de toda autoridade (civil, social, econômica e religiosa) ao soberano absoluto, a quem ele chama de Leviathã.

Caso contrário, os poderes sociais se converteriam em um mal capaz de ameaçar a paz civil. Mesmo assim, Hobbes reconhece que o poder absoluto é perverso, pois dimana de um “contrato social” equivocado, com a transferência do poder para as mãos do Estado. Nessa discordância, o filósofo vê na ambigüidade do poder, traços, ora do bem ora do mal.

Cada homem deve procurar com esforço a paz e bem, enquanto tiver esperança de adquiri-los. Quando não, deve procurar e usar todos os meios e vantagens da guerra.

No pensamento de Hobbes vemos referências ao Leviathã, que abarca vários campos do social, como uma instituição artificial, feita pelos homens que têm sede de poder e riqueza, onde homo hominis lupus (“o homem é o lobo do homem”), e por isto impera entre os homens o egoísmo, a guerra e as contendas.

A idolatria (do poder, prazer e riqueza) é o mal que devasta as sociedades humanas.

Quem pratica uma ação ilícita, imagina que comete uma falta simples, uma vez que busca apenas satisfazer seus interesses, como quem gosta de “levar vantagem em tudo”. No entanto, a bem da verdade, essa “falta simples” está eivada de outras conseqüências, que vão gerar atos de maldade, como os que são inspirados/praticados por quem segue o Maligno.

No campo social, o mal exclui o homem, a fim de fazê-lo perecer, física, moral, social e espiritualmente. Na evolução assimétrica da pobreza, por exemplo, encontramos aquela perversão já denunciada pela Igreja, onde ricos tornam-se cada vez mais ricos, às custas dos pobres, cada vez mais pobres. A mão-invisível, que personifica o mercado que tudo quer, na visão do economista escocês Adam Smith († 1790), opõe-se à mão-visível do faminto que mendiga o bem.

Há dez ou quinze anos, via-se o chamado neoliberalismo (a exacerbação do capitalismo) e a globalização como prefiguras do mal político-econômico que ameaçava as populações mais pobres. Aos poucos aquilo foi se tornando uma realidade massacrante, satânica e irreversível, a ponto de ninguém mais denunciá-la.

Até as Igrejas cristãs, tão engajadas nessa denúncia, lá pela década de 90, arrefeceram e decidiram calar, buscando um discurso mais litúrgico, espiritualizado e menos sociopolítico. Por causa disto, sem oposição, o mal cresceu ainda mais, sem perspectivas de retroceder.

A presença do mal se afigura, no mundo todo, mas especificamente na África, na América Latina e mais ainda no Brasil, não como aqueles pecados usuais (matar, roubar, cometer adultério), mas através de um mal social, em que não são as armas que matam, mas a fome, a miséria, as doenças, a ignorância. Esta forma de mal é mais sutil, seus argumentos mais sofistas afirmam que a exclusão é necessária para o progresso.

De outro lado há quem diga que a exploração é que exclui e mata É nesse terreno escorregadio que vamos instalar agora nossa pesquisa. Por que os pobres sofrem? Por que passam fome? Por que seus idosos e crianças morrem nas filas dos hospitais, sem assistência? Por que o acesso do filho do rico é facilitado nas escolas? Por que os barracos da periferia, volta-e-meia incendeiam?

A (re)descoberta da defesa dos mais fracos é um assunto que, de uns tempos para cá, silenciou no seio das Igrejas cristãs. Parece que nos esquecemos dos pobres, de suas dores, seus males e suas misérias. A “teologia da libertação” por defender a causa dos pobres e injustiçados foi tachada de marxista e perseguida até a exaustão, pelas autoridades da Igreja Católica. Ou, cansados de um pretenso apostolado, nos deixamos seduzir por uma espiritualidade menos discernida e pouco encarnada. Quem sabe?

Numa atividade eclesial, em um desses movimentos que agregam cristão da classe-média, escutei: “Ah, eu gosto mesmo é de orar e ler a Bíblia; aos pobres Deus proverá o necessário!”. Isto é mais ou menos o que se escuta por aí... Os teólogos libertários, pelo menos os jungidos às hierarquias foram calados, mas nem por isso cessa a exploração, a pobreza e a injustiça.

O mal da fome, do desemprego, das doenças, da falta de escolas e hospitais é um mal físico (oriundo de um mal moral: o pecado) que conduz a quem dele padece, a um tipo de mal moral, que é a decepção, a amargura, a falta de fé e – não-raro – à violência social. Cansados de sofrerem, com as portas que lhes batemos no rosto (às vezes pela pressa de ir à igreja), os excluídos vão perdendo raízes e referenciais, e hoje – por culpa de nossa omissão (que é um mal!) – incharam as seitas. E nós, “caridosos” e piedosos, dizemos que nas outras Igrejas só há oportunistas. Esquecemos de mencionar que lá eles estenderam a mão que nós negamos.

Já se viu que não se pode professar fé no Deus revelado por

Jesus e se manter insensível ao sofrimento dos irmãos

(J. M. Sung).

O grande desafio que os tempos modernos impõem aos cristãos é formular uma crítica ao mal social, defendendo a vida, utilizando como modelo uma matriz pedagógica de inspiração cristã. A linguagem religiosa é nitidamente marcada pelo simbolismo e pela esperança, e entroniza o Sumo Bem (Deus) como centro do discurso e da práxis. Conscientes da extensão do que o mal provoca entre os pobres, fracos e oprimidos, como miséria, fome, exclusão e humilhação, muitos cristãos têm-se dedicado a obras assistenciais, levantando a voz, denunciando os descaminhos dos sistemas e das estruturas.

Isso evidencia que estas pessoas têm consciência dos sofrimentos dor irmãos, e querem minimizar seus males. O fato é que o problema, em geral é mais profundo do que imaginamos. É preciso comprometer, contaminar, ligar esforços, entrar de cabeça no problema. Afinal – como dizia Dom Helder,

Da praia não se salva ninguém...

De fato, quem quiser salvar vai ter que entrar na água e arriscar-se, pois é justamente essa ação conjunta e discernida que falta aos que querem enfrentar o mal da sociedade. Os sistemas socioeconômicos, com a unção da política viciada, criaram um cada-um-por-si, onde o deus é o mercado, e a celebração é o consumo. Quem é pobre quem não pode comprar num shopping, não matricula filhos em escolas particulares, não tem dinheiro para se associar em “plano de saúde”. Pois quem pode consumir, é dispensável, dentro da visão contextual da sociedade de consumo.

Sob essa premissa, em que só quem tem dinheiro é o que vale, pessoas são desrespeitadas, excluídas, deixadas à margem. Como uma verdadeira “sinagoga de Satanás”, certos segmentos de nossa sociedade desvalorizam a vida daqueles que não servem para azeitar a máquina da economia e das grandes finanças.

Diante deste outro tipo de mal (moral), é necessária uma visão ético-crítico-teológica sobre a miséria em que alguns são jogados, por seus semelhantes. Descartável, o pobre é minimizado, passa a ser considerado “gentinha”, “pé-de-chinelo”, “bagaceira”, “vagabundo”, que só sabe pedir, fazer filhos e querer a terra dos outros. Esta forma de pensamento, oriunda de uma ideologia elitista, tem origem econômica, a partir do capitalismo (selvagem), do latifúndio, dos bancos e das empresas transnacionais.

A crueldade do mal social é tão grande que os arautos dessa avalancha maléfica chegam a dizer que “quem não produz não tem direitos, quem não tem direitos não pode exigir, quem não pode exigir deve morrer, pois não contribui em nada para a sociedade”. Neste aspecto, esse discurso acaba convertendo-se em atitudes práticas, não para acabar com a pobreza (como seria lícito), mas para “acabar com os pobres”. Se alguém duvida da conjunção maléfica do sistema, observe esse projeto mundial para eliminar os pobres:

• falta de saúde (morrem nas filas do SUS, dos transplantes,

dos remédios, etc.);

• falta de educação (a pessoa sem escolaridade é candidata à

violência das periferias);

• a falta de emprego e oportunidades encaminha à

marginalidade;

• falta de segurança (as “chacinas” só vitimam negros e filhos

de pobres) e violência e corrupção policial;

• até o lixo, no qual muitos buscam alimentos, passou a ser

reciclado para dar mais lucro: fecharam até a lanchonete do

miserável.

Há no poder econômico, na ordem social excludente, no acúmulo desmedido da riqueza, um ponderável instrumento do mal. O absurdo de confiar no poder que vem da riqueza, é a fonte de muitos aportes do mal na pós-modernidade. Esses fetiches são como um lixo, fruto e causa do mal, que brota do coração do egoísta e do usurário.

Hoje, tornou-se inquestionável o papel de maléfica exclusão que desempenha o mercado na vida da população. Os mecanismos de proteção, monopólio, subvenção, congelamento de preços, barreiras alfandegárias, são geralmente nocivos à saúde do povo, que acaba pagando um preço muito alto para subsidiar a minoria. Isto sem falar nos privilégios e na corrupção (P. N. Thai Hop).

O modelo social nos países pobres (inclui-se aí o Brasil, que não é pobre, mas é onde se pratica a mais perversa distribuição assimétrica, de renda e propriedade) é excludente e multiplicador do mal. Cerca de 65% de nossa população está fora do mercado de consumo.

Há, em certas campanhas filantrópicas, uma visão bitolada, quando não hipócrita e discriminatória: vou ajudar a criança, pois “ela não tem culpa!”. E quem tem culpa? os pais, por terem filhos? ou a família, por ser pobre? É a questão da análise moralista (e moralizante) da vida dos outros. Na Bíblia, o profeta denuncia os que praticam o mal:

São vocês os inimigos do meu povo: de quem está sem o manto, vocês exigem a veste; a quem vive tranqüilo vocês tratam como se estivesse em guerra; vocês expulsam da felicidade de seus lares as mulheres do meu povo, e tiram dos seus filhos a liberdade que eu lhes tinha dado para sempre. Vamos! Andem! Porque este não é mais um lugar de repouso. Por um nada vocês exigem uma hipoteca insuportável (Mq 2,8ss).

Esta denúncia é uma súmula acusatória contra todos os que praticam o mal, violam o direito e defraudam a esperança. Na Bíblia, desde o Antigo Testamento, há críticas e acusações àqueles que oprimem o mais fraco, o órfão, a viúva, o doente e o sem-terra. Tais crimes constituem pecados que clamam aos céus (cf. Eclo 34, 18-22).

Quando praticamos (ou nos omitimos) a corrupção social, desvios de verbas públicas, tráficos de influências, esquemas de propinas, por exemplo, estamos assassinando crianças, idosos, doentes, pois a verba criminosamente desviada, deixa de atender o hospital, a maternidade, a UTI neonatal, a creche, o asilo, a merenda escolar, etc.

A grande distorção desses regimes, orientados por critérios economicistas (como o Brasil, por exemplo) é que se privatiza o lucro e se socializa o prejuízo. Sobre essa maldade, há um texto, pequeno porém incisivo, do jesuíta peruano G. Gutiérrez:

O mal é contrário ao projeto de Deus; ele é um atentado ao

desígnio de vida de Deus (in “O Deus da Vida”).

O mal aparece, no aspecto socioeconômico ou político, no fato de muitas pessoas sacrificarem-se, viverem mal, apenas para ter mais, para juntar. Trata-se de um escandaloso “sacrifício” que se converte em sacrilégio, na proporção em que o avarento é mau para si próprio e para os outros. A distorção proveniente do mau uso dos recursos, gera miséria e marginalização.

Esta é uma forma sociopolítica entronizada há mais de um século na América Latina, e que apesar de campanhas, denúncias e congressos, não se logrou um milímetro de avanço no sentido de uma depuração ética. Sobre isto, questiona-nos J. M. VIGIL, um teólogo latino-americano:

Sobra-nos ainda alguma utopia? Ou resta-nos apenas o

gosto amargo de mais uma decepção?

Quando se fala na virulência do mal, a auditórios culturais, religiosos ou universitários, o que mais vem à cabeça é a morte, assaltos, estupros, tragédias da natureza ou mesmo o Diabo. Será só esta a faceta do mal que devasta a sociedade humana? O mal social é visto em duas versões: a ação negativa e a omissão. Como arautos desse mal, súditos da mentira, encontramos:

• boa parte da mídia nacional (interesses de audiência);

• uma significativa parcela dos congressistas (interesses

políticos e econômicos escusos);

• os “institutos liberais” (instrumentos ideológicos da elite, que

preconizam a “competência”, a “qualidade total”,

a “escolaridade acima do terceiro-grau” além da “depuração

etária: profissionais entre 25 e 35 anos) ;

• o modelo universitário nacional (reproduz a cartilha das elites

e do poder econômico).

Insistem os ideólogos neoliberais, através de premissas sofistas, em querer demonstrar que o mercado – mesmo que nocivo à saúde socioeconômica da população, que sempre acaba “pagando a conta” – é o caminho para a prosperidade. Só deixa de dizer que essa prosperidade é de uma minoria, e mesmo assim, quando da ineficiência do empresário, seja do ramo bancário, industrial ou rural, o povo é chamado a assumir, de uma forma ou de outra, o prejuízo, incentivando, desta forma, a incompetência, a impunidade, o conservadorismo, o laxismo e a corrupção (A. M. Galvão “A crise da ética”, Ed. Vozes, 4ª. edição, 2002).

Afogado pelo mal, que pode ter vários nomes, o empobrecido entra em uma atmosfera negativa, que interfere não só em sua vida biológica (qualidade de vida) quanto na espiritual (perda da fé e da esperança). Ele fica pobre para o outro enriquecer, como afirma Gutiérrez:

A riqueza também é resultado de uma ação humana. Cai-se no

mal da idolatria quando se põe o ouro e a prata acima de quem ]

os fez, deixando-se seduzir pelo logro e pela malícia de sua

própria produção. O dinheiro torna-se assim um deus que

escraviza quem o fabricou. O fetichismo do dinheiro é idolatria e

veneração do anti-deus.

Santo Agostinho, falando sobre o mal afirmou que “Deus permite a ocorrência do mal para dele tirar um bem maior”. Na política se constata práticas de opressão, o mal social em má administração do dinheiro público, na manipulação da opinião pública e na corrupção. Há nisso uma grotesca manifestação do mal moral e social, que se revela em um desrespeito ao cidadão e uma perversão ao mandato outorgado pelo povo.

Quando um desonesto, governante, legislador, julgador ou funcionário, se deixa corromper, apropriando-se ou desviando o dinheiro público, ele é o paradigma do mal, pois em algum lugar alguém pode morrer por causa de um julgamento criminoso, ou de uma verba ou recurso que não chegou onde devia. Igualmente, um magistrado que julga contra a justiça (já não se fala na lei, que fruto de legislativos sob suspeita, pode ser injusta), é capaz de praticar um mal irreparável.

Trecho da pregação de um retiro realizado pelo autor em São Paulo, abril de 2009. O autor publicou mais de 100 livros, entre eles “Temas polêmicos em Teologia Moral”, Ed. Recado, 2005, editados no Brasil e no Exterior. Doutor em Teologia Moral. Este texto é um excerto de sua tese que versou sobre o mal: “Deus é bom. Então por que existe o mal?” (2005). Foi publicado de forma reduzida nos E-livros do Recanto das Letras.