Fatos e Controvérsias: entre discurso, provas e farsas

Fatos e Controvérsias: entre discurso, provas e farsas

Resumo: Na região do Cariri cearense não foi diferente o teor escravista em relação a outras regiões do Brasil, embora sendo diferente quanto ao número de escravos. E essa diferença em números não difere das mazelas que assolaram a vida de muitos escravos inclusive na cidade de Crato região sul do Ceará.

Palavras – chaves: abolição, cativos, Cariri

Em meio a todo alvoroço do cenário político do estado do Ceará nos anos de 1840 a 1889, a construção de seu cotidiano se dava sobre os pilares da escravatura, onde relações de sujeitos ambíguos entrelaçavam-se desde o discurso as práticas de opressão e desigualdade. É o que podemos certificar na cidade de Crato nos anos de 1874 e 1876.

Investigando processos criminais destes anos que podemos perceber como de forma maquiavélica, se deu o processo criminal do escravo Antonio Raimundo de Lima conhecido como Danhõ, em relação ao suposto roubo de um cavalo do coronel Antonio Cosme de Albuquerque Melo. E de outro processo no ano de 1876 que relata o roubo de dinheiro da casa do coronel Antonio Luis pelo escravo Amâncio Ferreira Lima.

A construção desses cotidianos desses escravos é também o cotidiano de Segundo Reinado, onde práticas de domínios políticos se davam pela Aristocracia escravista segundo Abelardo (1980) o Ceará, no segundo Reinado, permaneceu sob o controle de poderosos grupos oligárquicos rurais, os quais aglutinavam nos tradicionais partidos do período.

E dessas práticas políticas que se engendrava a relação senhor e escravo e escravo e senhor, onde a construção histórica do cotidiano se dá pelos fatos encontrados nos processos criminais investigados. De acordo com Certeau (1994), existe mil maneiras de jogar / desfazerem o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros, caracterizam a atividade resistente de grupos, por não ter um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de forças. Podendo assim ser verificada as múltiplas formas de relações que existiram segundo Silvia Lara. (1988) vascular prática, costumes, lutas, resistências, acomodações e solidariedades presentes no cotidiano daqueles homens.

Danhõ fora acusado de roubar um cavalo do coronel, sendo preso e julgado com falso testemunho por testemunhas de convivência apadrinhada pelo coronel. Pessoas que nem estavam na cidade no dia do roubo foi testemunha de acusação, até o coronel Nelson Albuquerque fora chamado para dar seu testemunho. O processo criminal mostra que fora uma audiência baseada em dar uma satisfação ao coronel de forma que mesmo não mais se achando o cavalo tinha o culpado.

Muito embora no processo de Amâncio de fato este teria roubado o coronel, não somente roubou como disse a todos quantos queriam ouvir que de fato era isso que iria fazer. Na audiência Amâncio disse aos presentes que não era ladrão, tudo que fizera foi para se vingar de seu senhor, por tudo que este o fez.

Os registros oficiais referenciam a prática desenvolvida entre sujeitos em lados opostos. Neste sentido, a principal indagação do artigo se refere à forma como essas relações se deram e o (re)significado dos fatos das relações no cotidiano e quais elementos aglutinavam essa atmosfera. Conforme Certeau (1994) noutras palavras deve haver uma lógica dessas práticas.

No livro de Eurípedes (2000) consta que Rodolfo Teófilo ao voltar de suas viagens de caixeiro viajante fazia suas considerações sobre a qual se assentava a sociedade brasileira, era a divisão entre escravos e livres; e isso se dava por uma distinção jurídica herdada dos romanos, que dividia a sociedade em indivíduos com direito de pessoas e propriedades. E essa divisão deixava os escravos em piores situações, mas nem por isso eles renunciaram o direito de fazer sua história.

Este momento emblemático de nossa história nos pede uma reflexão sobre sujeitos tão desprestigiados, ignorados enquanto “cidadãos”, rotulados de “coisa”, arrancados de sua terra, assaltado de seus sonhos, família, amigos, com o único direito, ser escravo. Emilia Viotti (1988) nos mostra que o mais opulento mulato é inferior ao branco, ele o sabe, e lhe será lembrado, essa é a vida que coube a muitos escravos.

Devido a toda essa problemática vivida por esses cativos, é que nos propomos a pesquisar o cotidiano desses homens comuns, que clamavam por socorro. Emilia Viotti (1988) faz algumas considerações a esse pedido de socorro, o protesto dos oprimidos se extingue sem eco em meio do terror de seus companheiros de infortúnio e do silêncio da solidão.

É com intuito de atender ao pedido de socorro desses homens, que nos propomos a investigar esses protestos, na incumbência de contribuir com a historiografia. As perspectivas historiográficas dos últimos anos abriram as portas das possibilidades, contribuindo para uma análise investigativa das distintas realidades históricas. Na historiografia brasileira, o estudo sobre escravatura em seu contexto e regiões diferentes, possibilita uma compreensão muito maior do escravismo no Brasil.

Uns dos autores que contribuiu com essa temática foi Eduardo Campos, com Revolução da vida dos cativos do Ceará (1988), que investigou o cotidiano desses cativos. Analisando como tem se escrito sobre esse tema, apresentando uma abordagem historiográfica que influenciou outros trabalhos com uma nova perspectiva sobre tal contexto, indicando que no Ceará ainda não se escreveu como se deveria a respeito da condição de vida de seus escravos.

No que se refere à Abolição no Ceará temos Raimundo Girão com Abolição no Ceará (1988), num estudo as agruras do escravo e sua libertação, dando maior ênfase ao ato idealizado por cearenses em ser o primeiro Estado brasileiro a abolir a escravatura.

Muitos estudos tem contribuído de forma mais especificas a essa temática em seus diversos aspectos como Marcos Cezar de Feitas que organizou em seu livro Historigafia brasileira em perspectiva (2005), trabalhos como de Suely Robles, que analisa uma nova concepção na escrita da escravatura a partir dos anos 50, dando origem a uma nova corrente historiográfica em relação a oposição as ideias de Gilberto Freyre, imputando-lhe a intenção de justificar o passado escravista.

Todos esses estudos procura vislumbrar a escravatura nas suas práticas, costumes, lutas, resistências no cotidiano do cativo, analisando a pluralidade de formas de representações do escravismo, que se apresentam como terra fértil para reflexões teorico-metolologico das investigações historiográfica; a esses sujeitos históricos anônimos que cotidianamente, passavam pelo subterrâneo de uma sociedade escravista.

Diante desta constatação, torna-se imprescindível o entendimento sobre como o escravo organizava e interpretava suas experiências sociais historicamente situadas.

De acordo com Michel de Certeau (1994), narrar práticas comuns, introduzindo-as com as experiências de solidariedade, lutas, tradições, que organizam o espaço aonde essas narrações vão abrindo um caminho, significará delimitar um campo, ou seja, o cotidiano; que se inventa e reinventa em mil maneiras, abrindo um leque de possibilidades de investigação.

Sendo assim nos é possível dialoga com Michel de Certeau, para pesquisar vivências e relações de inúmeros tipos e formas que se dão no cotidiano do homem no contexto da escravatura, onde uns são brancos e senhores e outros negros e escravos.

Concordo também com Bloch, quando este afirma que são os homens o objeto de estudo da história, e esses homens têm cor, cheiro, cultura, dor, ódio, desejo, religião, medo e coragem.

Por trás dos grandes verstigeos sensíveis da paisagem (os artefatos ou as máquinas), por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas que a criaram, são os homens que a história quer capturar (BLOCH, Marc, 2001 p. 54).

É nesse sentido que queremos estudar o cotidiano dos cativos, investigar fragmentos da vida desses homens, para melhor compreensão das entrelinhas dos processos criminais.

E a necessidade de trabalhar com documentos nos dá a segurança, que é a fonte com maior respaldo do contexto investigado. Por isso dialogo com Eduardo Carr sobre os documentos, pois ele dispõe que os fatos estão presentes, a questão é a interpretação. Isso nos parece que os documentos não são os problemas e sim a interpretação, essa interpretação se dará embasada com a teoria.