OU TERRA OU HISTÓRIA

OU TERRA OU HISTÓRIA

Rangel Alves da Costa*

Uma das primeiras incursões na região sertaneja dos movimentos organizados em defesa da reforma agrária ocorreu na fazenda Barra da Onça, município de Poço Redondo, lá pelos idos de 1986, quando o braço campesino da Diocese de Propriá se uniu ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, para lutar pela desapropriação do latifúndio improdutivo.

Conseguiram e, a partir dessa empreitada de sucesso, foram atrás de mais latifúndios na região e começaram a empreender novas e cada vez maiores e organizadas invasões, resultando no que se verifica hoje, ou seja, um sertão quase desapossado de imensas propriedades improdutivas, mas também com enormes problemas. Os assentamentos de Poço Redondo e Canindé do São Francisco são exemplos fecundos disso.

Desapareceram os latifúndios e surgiram centenas de assentamentos improdutivos e glebas que só valem como moeda de troca ou para dar ciência ao governo que ali moram assentados e que, por isso mesmo, terá de sustentá-los pelo resto da vida ou mandar que os olhos de sua justiça se fechem quando invadem, roubam, furtam, saqueiam.

Contudo, o problema maior não é a terra dividida sem ter quem cuide do seu quinhão, mas sim as marcas que deixam na terra e que jamais poderão ser reparadas. Não significa que o sertão teria que continuar caracterizado pelo latifúndio de poucos e os quintais de muitos, mas o que não se pode admitir é que a terra invadida por forasteiros, por gente que muitas vezes nunca andou no sertão, tenha que se tornar abandonada, totalmente descaracterizada nas suas raízes e sem o suor do seu povo molhando cada semente plantada.

O que os forasteiros, os sem-terra fizeram e fazem não significa outra coisa senão tomar o sertão do sertanejo, não deixar espaço para que o conterrâneo se situe mais e, o que parece pior, ir aos poucos apagando uma história construída ao calor da luta, no sangue de tantos embates e nas conquistas quase sem vitórias. O que eles estão fazendo é isso: descaracterizar totalmente o sertão e apagar de vez sua história.

Para se ter uma ideia, mesmo com todo sofrimento tão característico do sertanejo, não há um só matuto, um cabra verdadeiramente de lá, que não tenha saudades daquele seu mundão caipira, de seca e desolação, de trinta anos atrás, de antes da chegada dos exterminadores.

Ora, a pobreza se estendia pelos quatro cantos, os quatro sóis se estendiam em oito ou mais, as esperanças de dias melhoras eram poucas, mas ainda assim todos tinham orgulho de ser conhecer, de chamar o outro de compadre, de sair ao entardecer pelas ruas e dar boa tarde a todo mundo, de conversar com todos, de viver num mundo onde todos compartilhavam alegrias e sofrimentos. Mas hoje não. Depois que os sem-terra começaram a invadir tudo, os campos e as cidades, tudo se misturou numa química ruim, tudo ficou muito pior, muitas vezes insuportável.

Outro dia escrevi um artigo nesse mesmo sentido que merece ser transcrito em parte. No texto intitulado "Eu, sertanejo, com orgulho da gente e não do povo", assim me expressava:

"Aos poucos, o joio sorrateiramente começou a chegar e fez moradia por entre o trigal, e como não se pode, no início da gestação, arrancar o joio sem danificar o trigo, o sertanejo teve que forçadamente acolher o estranho, mesmo sabendo que a partir dali nada mais seria como antes.

Atualmente, joio e trigo estão espalhados no sertão indistintamente, como se fossem uma coisa só. Conseqüência disso é que a gente da terra, o trigo que não pode mais ser dono do seu próprio destino, paga o preço de todos os tipos de aberrações praticadas pelo joio forasteiro. Para quem não vive o contexto, não conhece as novas situações criadas, o sertanejo se tornou, antes de tudo, também um malfeitor.

Como ter orgulho do estranho que chega, vai engolindo as cidades, espalhando-se desordenadamente pelos arredores, formando grupos de escusos interesses comuns, andando impunemente armado, semeando violência e confusões, tirando a paz do pacato interiorano, tornando o sertão tão negativamente maculado como jamais se viu na história?

Não significa afirmar que há santidade, infinita bondade na gente do lugar, pois tem muito caipira que não é flor que se cheire, mas não se pode negar o óbvio: hoje, é preciso refazer, continuar vivendo o ontem para continuar admirando o sertão".

Portanto, dói dizer, mas não hei de pecar pelo silêncio que precisa de voz: os sem-terra construíram um mundo no sertão, mas estão acabando com a história desse mesmo sertão. E o pior: nada será com antes, o amigo, a família, o boa tarde, a vida humilde enfim; mas a violência, o medo, o assombro pelo desconhecido que está ao seu lado e quer tomar o seu lugar.

Poeta e cronista

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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