CONFRONTOS ENTRE "A REPÚBLICA" DE PLATÃO E A "SOCIEDADE ABERTA" DE KARL POPPER: subsídios para um autêntico debate político no contemporâneo

CONFRONTOS ENTRE “A REPÚBLICA” DE PLATÃO E A “SOCIEDADE ABERTA” DE KARL POPPER: por um autêntico debate político para o nosso tempo.

As polêmicas suscitadas pelo pensamento de Platão perduram até os dias de hoje. São polêmicas nas quais participam tanto estudiosos do passado quanto de épocas recentes. A título de exemplo, aquilo que se diz de Platão e de suas idéias - entre os pensadores modernos –, é de fundamental importância a crítica contida numa das obras do filósofo Sir Karl Popper. Referimo-nos à “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”

A crítica de Popper atinente à filosofia platônica é, indiscutivelmente, lúcida, aguda, além de bem formada e informada. Basta conferir a referida obra, bastante ampla, editada em 2 volumes (tomo 1: “O fascínio de Platão”; tomo 2: “A preamar da profecia: Hegel, Marx e a colheita) pelas Editora Itatiaia Limitada e Editora da Universidade de São Paulo, em 1987.

Trazendo a lume algumas passagens do exame crítico popperiano em torno do pensamento de Platão, podemos seguramente afirmar que Popper é um cético radical, pois é incapaz de fazer coro junto a estudioso tradicionais no que se refere à admiração pela filosofia platônica. Desse modo, a desconfiança de Popper, em relação aos escritos do filósofo antigo, chega a extremos. Popper classifica Platão de totalitário, além de praticante ou “inventor” de uma filosofia política anti-humanitária. Consoante Popper, n’ “A República”, Platão utilizou a palavra Justiça como “sinônimo de aquilo que é do interesse do Estado Melhor”; mote, do ponto de vista de Popper, favorável à detenção de toda mudança social, isto é, propenso à preservação da divisão das classes sociais e do governo de uma só classe. Se Platão define, “grosso modo”, a justiça como relação entre indivíduos sob a tutela do Estado ou como propriedade do Estado – tendo como base a rígida divisão das classes sociais; ao contrário, para Popper, a justiça traduz-se pela igualdade no tratamento dos indivíduos, isto é, com base na concepção moderna de justiça, Popper postula a igualdade dos indivíduos perante a lei. Popper entende o governo exercido pelo poder de uma só classe (em Platão, a dos filósofos) como injusto. Assim, propõe a substituição da proposição platônica: “Quem deve governar” pela seguinte: “Como poderemos organizar instituições políticas de modo tal que maus e incompetentes governantes sejam impedidos de causar demasiado dano?”. Por conseguinte, a amplitude desta nova forma de se colocar a antiga questão contrapõe-se à Teoria da Soberania Platônica – de se colocar o poder nas mãos dos melhores – por meio da proposição básica popperiana de “Evitar a tirania e resistir-lhe”. No que se refere a uma plena adoção desta proposição básica, Popper frisa, em seus escritos, a importância do sufrágio universal ou das eleições gerais - que não só promove o governo representativo, bem como as instituições políticas que se aperfeiçoam e passam a ter oportunidades, de ocasião a ocasião, por meio do sufrágio universal, de mudar o estado de coisas dirigido pela vontade do povo ou pelas revoluções vitoriosas, movidas por governados impedidos de se livrarem de seus opressores, a não ser mediante revoluções vitoriosas, as quais destroem as tiranias ou as ditaduras e instituem a Democracia. Nas palavras de Popper:

“Não só a construção de instituições envolve importantes decisões pessoais, mas o funcionamento até mesmo das melhores instituições (como o sistema democrático de controles e equilíbrios) dependerá sempre, em considerável grau, das pessoas envolvidas. As instituições são como fortalezas. Devem ser bem ideadas e guarnecidas de homens.”

[POPPER, A Sociedade aberta..., t.1, p.142]

Em contraponto à tal supervalorização conferida às instituições democráticas, sobremaneira enfatizada por Popper, acompanhemos, então, em resumo, a tese socrático-platônica no que se refere ao referido tema.

Ora, a posição de Sócrates, com respeito aos atenienses de seu tempo, não era, em absoluto, das mais lisonjeira e tão distante, caso lancemos “vistas grossas” ao que ocorre, politicamente, no mundo contemporâneo.

Com efeito, Sócrates combatia a alienação que havia tomado conta dos habitantes de Atenas, visto que os últimos se recusavam a pensar. A geração socrática estava perdendo de vista o real sentido das estruturas sociais e das instituições tradicionais. A vida estava sendo “mecanizada”. Ninguém parava para pensar por qual razão fazia as coisas. O sentimento de coesão comunitária, de solidariedade entre grupos e pessoas estava sendo substituído por uma espécie de egoísmo privado, sobretudo o elaborado pelo discurso político construído pelos sofistas.

[Interroguemo-nos neste preciso ponto: isto não se assemelha algo que ocorre atualmente na esfera política nacional ou internacional?]

Consoante Sócrates, cada um pensava em si, em sua prosperidade pessoal, abrindo mão da busca do essencial na política, daquilo que realmente importa na vida da pólis grega; que é, em última instância, a busca pela sabedoria, pela realização do homem que, na qualidade de ser pensante, é único animal da natureza dotado de razão. Convém ressaltar que, assim como Sócrates, Platão abominava o sistema democrático, pois ambos não viam condições de que pessoas que não fizessem do ato de pensar uma profissão terem a capacidade de administrar o que quer que fosse na esfera pública - quando muito, somente o próprio lar, instituição circunscrita à esfera privada. Para Sócrates, o único governante capaz de dirigir a pólis é o racional, ou, noutras palavras, o lógico seria o governo regido pelo “homem que sabe”. Daí Platão ter desenvolvido, mais tarde, a idéia do Rei-Filósofo. O acentuado objetivo platônico foi o de demonstrar que um sistema que toma suas decisões por intermédio de muitas cabeças – o que equivaleria a nenhuma, pois, movidas pela mera “doxa” = opinião, e não pela Verdade – não consegue sequer ser coerente com os postulados que diz defender.

Utopia e República

Dificilmente podemos chamar um grande mestre de reacionário, a menos que ele radicalize em suas posições, como aconteceu com Popper em relação a Platão, sem que esse rótulo, em nossa opinião, possa denegrir ou ferir a obra do último.

Nesse sentido, parece-nos que a crítica popperiana procura os chavões da terminologia política de nossa época, como por exemplo: totalitarismo, autoritarismo, reacionarismo etc., para oferecer as sustentações básicas dos seus contra-argumentos platônicos, oferecendo, com isso, uma frágil sustentação à tese principal da sua defesa da Democracia no contemporâneo; em contraposição, as teses platônicas sobre o Poder e o Saber, desenvolvidas, sobretudo, nas utópicas páginas de “A República” – título metafórico, pois, na verdade, “A República” é um tratado, da primeira à última página, sobre a Educação! -, que, em resumo, afirma que o melhor dos governos ocorre quando quem detém o poder detém, simultaneamente, o saber, e vice-versa. O Filósofo-Rei tem o saber, bem como o poder, fazendo valer um e outro e colocando, desse modo, “ordem na casa”.

Tratar-se-ia, enfim, de um governo conservador, reacionário, tirano ou algo do gênero?

Assim, a saída para a sociedade, afirma Platão n’”A República”, está em depositar o poder político nas mãos dos filósofos, sem grandes considerações democráticas. Com efeito, ou isso ou fazer do homem no poder, um filósofo. Platão não nos oferece alternativas. Isto em razão do mestre da Antigüidade não se ver obrigado a explicar aquilo que sente; em suma, isto é ou deveria ser uma evidente verdade. Por conseguinte, é válida a máxima de que “não é qualquer um que pode, num momento qualquer e em qualquer lugar, exercer o governo” na Politéia platônica. Desse modo, a Democracia, em “A República”, é pensada como um dos tipos de sociedade imperfeita.

Apesar da longa distância histórica, não há como negar o caráter instrutivo de “A República”, levando-se em consideração até mesmo as suas passagens hilariantes. Numa delas, há os personagens que tentam se explicar mutuamente quanto à natureza da Democracia. De um lado, um diz que, no governo democrático, é permitida uma ampla gama de liberdades, de modo que os que se interessam por fundar um Estado deveriam ir visitar uma democracia, e escolher o que quisessem de uma variedade de modelos que tal regime político permite, tal qual numa loja de variedades.

Sobre o caráter do “homem democrático” ou do governante democrático que, por não ser um filósofo, é, por natureza, um ser instável, interessando-se alternadamente por política, por economia, por assuntos militares etc. Tal retrato não nos parece fiel quando pensamos a política no contemporâneo? Sim, sobretudo na atual conjectura, em que a maioria do povo brasileiro, por meio de eleições gerais, possui um quadro de representantes elegíveis a deputados, governadores, senadores e Presidente da República que acompanha, em grande medida, a orquestração a pouco descrita nas páginas de “A República”.

Na verdade, trata-se da constatação de um dado empírico, colhida de um texto da Antigüidade - atualíssima!, pois antecipa o que presenciamos no quadro político contemporâneo, ou seja, a vulgaridade, o artificialismo e a idiotia da sociedade de massas, dados não considerados decisivamente por Karl Popper em sua crítica ao pensamento platônico. Semelhante dinâmica de pensamento atinge, também, um dos mais belos textos do contemporâneo, isto é, “A Dialética do Esclarecimento...”, de Theodor Adorno e Max Horkheimer, os quais – Repetimos: apesar de se tratar de um notável texto!” -, transportaram os males do presente para o passado, ou melhor, detectaram o surgimento da consciência totalitária inscrita nas páginas da “Odisséia” (um texto mitológico!), de Homero, mais precisamente na personagem central do enredo, isto é, o herói Odisseu (regido pelo mentalidade mitológica!) – argumento central do referido texto.

Finalizando, pensamos que a lógica do não-poder somada a do não-saber, que se traduz na mais pura barbárie, permeia, o contemporâneo – ou o mundo globalizado - e dela não sairemos tão cedo. Daí a importância deste embate entre Popper e Platão, pois, sejam quais forem os pontos de vista sobre tal confronto, o importante é que ele permaneça, que ele se eternize, na qualidade de debate, nos discursos políticos do contemporâneo que fomentem a prática democrática.

PROF.DR. SÍLVIO MEDEIROS

Campinas, é setembro de 2006.

PS. Leio, no exato momento em que finalizo a escritura do presente texto, em manchete, num dos provedores da Internet, o seguinte:

“Cristovam Buarque: ‘conversa com Lula foi fria; com Alckmin, afetiva’”.

_ Céus! Até quando devo esperar que tais políticos venham a ler HANNAH ARENDT, para que aprendam, de uma vez por todas, que o conceito de Compaixão não faz parte do vocabulário da autêntica Política?