Os caminhos da espiritualidade (SERMO CVIII)

OS CAMINHOS DA ESPIRITUALIDADE

Deus quer ser adorado em Espírito e Verdade... (Jo 4,24).

Nos dias de hoje se observa uma ponderável dificuldade de as pessoas compreenderem o real sentido da palavra espiritualidade. E se muitos têm dificuldade para entender o verbete, fica então mais difícil de vivê-la. Inserida num secularismo cada vez mais devastador, a vida do homem moderno está cada vez mais comprometida com o materialismo, fato este capaz de obscurecer totalmente a vocação humana à dimensão sobrenatural, no relacionamento com Deus, que é um dos fatores da verdadeira espiritualidade. Se o espiritualizar-se, segundo Bento VXI é o caminho para fugir do egoísmo e do materialismo, legítimas pragas do nosso tempo, este trabalho tem por objetivo desenvolver a vivência espiritual, para através de uma reflexão teo-lógica e onto-lógica, estabelecer os caminhos que levam a Deus.

Em conseqüência do secularismo, cria-se uma dualidade de atitudes. Na primeira delas, o desejo de gozar a vida com as coisas materiais que a cada momento são oferecidas, pela mídia, pelo comércio e pelo modo como o consumo desenvolveu-se no meio da sociedade humana. A isto se soma o hedonismo, que é a atração pelo prazer fácil, sem limites e – via-de-regra – pouco ético.

De outro lado, ocorre o reconhecimento da necessidade de uma ligação com as coisas espirituais. Mas, como a verdadeira vida espiritual bate de frente contra certos prazeres do consumo e dos sentidos, as pessoas, não-raro derivam para uma atitude superficial de relação espiritual, sem compromisso, sem renúncias e totalmente isenta da dimensão sócio-fraterna. A visão teológica é capaz de proporcionar a iluminação de nossas buscas. Teologia, é salutar que se saliente, é a compreensão e a experiência de Deus, que se realiza dentro da história e da cultura de cada povo.

Para começo de conversa, é bom deixar claro que espiritualidade é algo bem diferente de “espiritualismo”, e vice-versa. Já ouvi elogiarem pessoas, como ricas em “espiritualismo”, quando na verdade queriam referir-se à pura capacidade de transformar a meditação espiritual em prática de vida. Para ser real ela precisa ter atividade. Se for passiva, estática, pode se transformar em alienação.

Embora haja, nos dicionários alguma confusão quanto ao sentido desses dois verbetes, o termo “espiritualismo” está mais para as doutrinas espíritas, reencarnacionistas, de new age, etc. Tanto que a mídia, quanto quer apontar um médium ou um pai-de-santo, refere-se a ele como o “espiritualista fulano de tal”. Às crenças animistas, em geral, aplica-se melhor a classificação de espiritualismo. Por esta razão, não se deve confundir um verbete com o outro. A rigor, por espiritualismo, entende-se qualquer doutrina ocultista ou religiosa que acredita na existência de espíritos imateriais.

De outro lado, a palavra espiritualidade é compreendida como a ação do Espírito Santo no cristão: age nele e age através dele. Esse mistério da ação do Paráclito no ser humano leva-o a orientar toda a sua vida para Deus, de acordo com os critérios que Deus lhe dá, por Cristo, através dos evangelhos. O espírito que age no cristão leva-o a uma ação em favor do mundo, do próximo, da Igreja como núcleo de comunidade e dele próprio, já que elabora o itinerário de sua salvação.

Surge a partir daí a essência da vida espiritual, capaz de estabelecer a diferença (nem sempre bem apreendida por todos) entre a dinâmica e a estática. Se o espiritualismo tem ligações com doutrinas espíritas e esotéricas, a espiritualidade refere-se aquela inspiração que é concedida ao cristão pelo Espírito de Deus.

O ato de orientar “toda a sua vida” refere-se ao homem todo, completo, devidamente estruturado, espiritualizado e inserido nas realidades do mundo em que ele vive. Espiritualidade, desta forma, é um estilo de vida, um modo de viver. Exprime a forma como nos relacionamos com Deus. E não só com Deus, mas com tua a sua criação.

Não são poucas as pessoas que confundem espiritualidade com igreja. Embora fundada pelo Espírito Santo, a parte visível e sensível da Igreja é formada e mantida por pessoas humanas, suas idéias e – não raro – seus defeitos e vícios. Por retratar uma ligação com Deus, a espiritualidade é anterior à Igreja e às religiões. Em alguns casos a igreja tiraniza enquanto a espiritualidade liberta; a igreja intimida com suas leis, e a espiritualidade esclarece; a igreja fecha questões, ao passo que a verdadeira espiritualidade está sempre propondo o diálogo. Se de um lado a religião atemoriza com o pecado e suas culpas, a espiritualidade nos leva a adorar um Deus vivo, Pai, rico em misericórdia. A religião, ou religiões (pois são muitas) tem raízes humanas, enquanto a espiritualidade nasce no céu e para lá conduz.

Igualmente, tem gente, de dentro da própria Igreja, que desconhece o sentido real da “espiritualidade”. Há quem afirme, de forma equivocada, que proferir palavras espirituais é “fazer uma espiritualidade”. A espiritualidade no puro sentido da palavra surge com a qualidade do que é espiritual, ou seja, é a forma de viver-se, na prática e no cotidiano, a nossa fé. Nesse aspecto, constata-se que a espiritualidade autêntica consiste em estarmos atentos às exigências do evangelho, pois ele é o roteiro capaz de nortear adequadamente nossa espiritualidade.

Buscando ampliar ainda mais o raciocínio, podemos dizer que a espiritualidade é tudo o que tem por objeto a vida espiritual, com elevação, transcendência e sublimidade, sem descaracterizar a existência corpórea, onde o lado espiritual favorece as virtudes que devem infletir sobre o material. Somos seres humanos de carne e osso e, mesmo voltados para o transcendente, não é possível esquecer essa constituição.

A rigor, sendo a forma como nos relacionamos com Deus, a espiritualidade não é algo que sai para fora, como o discurso religioso, mas uma atitude que se introjeta para dentro, no coração e no pensamento da pessoa. Nessa perspectiva, vemos o itinerário da espiritualidade como Deus vindo ao encontro com o ser humano (a graça) quando o Pai oferece sua amizade, sua paternidade e o projeto de salvação (por Cristo). Ao constatar a Amazing Grace (o esplendor da graça) o homem responde com a fé.

Espiritualizamo-nos para chegar mais perto de Deus, e isto ocorre de diversos jeitos, inclusive pela fraternidade. Há diversos modos de se amar a Deus, mas todos eles passam pela solidariedade e amor ao próximo. Só tem o direito de chamar a Deus de Pai aqueles quem têm a coragem de chamar o outro de irmão.

Espiritualidade, deste modo, é deixar que o Espírito atue em mim, para que ele possa atuar através de mim. É permitir que o Espírito me transforme para que eu possa participar da transformação da Igreja e do mundo. A espiritualidade autêntica jamais me levaria a isolar-me do mundo, a escapar da vida e alienar-me de mim mesmo.

A verdadeira espiritualidade é a que produz engajamento, movimento e ação proativa. Os grandes mestres da espiritualidade de todos os tempos, como o apóstolo Paulo, Francisco de Assis, Antônio de Pádua, Tereza de Ávila e Mahatma Gandhi foram pessoas altamente comprometidas com as causas humanísticas do seu tempo e não adoradores contemplativos e alienados de um Deus sem substância e sem presença no mundo real. Não existe espiritualidade verdadeira sem uma resposta, que em geral se traduz pela solidariedade com o próximo.

Como disse Jesus aos seus discípulos: “Vós sois a luz do mundo... Não se acende uma lâmpada para colocá-la sob a mesa, mas no ponto mais alto da sala, para que ilumine a todos os que estão em casa. Assim brilha vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai, que está nos céus” (Mt 5,14a.15-16)

No dualismo soma/psique (corpo/alma) do ser humano, o espírito atua de forma a favorecer e aperfeiçoar a vida do corpo humano. Nesse terreno, corpo e alma não se excluem, mas se apóiam e se interpenetram, pois o homem assim como não é só corpo, igualmente não é só espírito, mas uma formidável realidade psicossomática. Tantos assim que viveremos a eternidade em corpo e alma. Céu e terra, carne e espírito, vida material e mundo espiritual, não se opõem, mas, pelo contrário, se apóiam e se complementam como limites da grande criação de Deus.

A espiritualidade torna-se, assim, a fonte de uma vida plena. Por subentender um encontro com Deus, ela ajuda a viver melhor a vida. Algumas pessoas imaginam possuir uma fé completa, autêntica, mas vivem tristes, acabrunhadas, debilitadas por dentro, questionando a falta de alguma coisa para que sua relação com Deus seja eficaz. Às vezes essa relação peca por ser muito intelectual , quem sabe gerada apenas após um mero conjunto de idéias e doutrinas, como atividade de quem deseja apenas “saber mais” ... isso não basta para uma vida em plenitude. Em outras oportunidades, essa espiritualidade incipiente fundamenta-se em normas morais, onde o que importa é cumprir aquilo que imaginam ser a vontade de Deus.

Para uma contextualização da espiritualidade cristã, o fundamental é colocar-se “na presença de Deus”. Entrar na presença de Deus é torná-lo a essência, adotando-o como a força mais importante da nossa vida. Assim alcançamos a alegria maior, obtendo uma satisfação diferente e superior a qualquer outro prazer da vida. Como afirma V. M. Fernandes, para que o encontro seja fonte de vitalidade e de alegria, ele precisa influenciar toda a existência completa: os afetos, a imaginação, o desejo e o próprio corpo precisam entrar na presença divina O que aprendeu a desenvolver adequadamente sua espiritualidade, é aquele que quer sempre estar perto de Deus... sob seu olhar paterno:

Para onde ir, Senhor, longe do teu sopro? Para onde fugir

longe da tua presença? Se subo aos céus, tu lá estás; se me

deito no abismo, aí te encontro. Se tomo as asas da Alvorada

para habitar nos limites do mar, mesmo lá é tua mão que me

conduz, e tua mão direita me sustenta (S1 139,7-10).

O desenvolvimento da espiritualidade desperta naquele que crê, um imenso desejo de Deus. As experiências mais profundas começam com o desejo... Com o despertar do desejo... “como a corsa anseia...”. A porta do coração se abre pelo lado de dentro. Tudo tem início a partir de nossa escolha em relação ao projeto de Deus para nossa vida. Essa decisão acontece no plano profundo da opção fundamental, que é aquela escolha radical do horizonte de vida, capaz de dar sentido à procura dos maiores bens/dons espirituais. É preciso desejá-los... espiritualidade é acalentar um desejo do eterno...

É muito bonita a decomposição etimológica da palavra desejo. Na etimologia latina, o verbete desejo (desiderium) aponta para um estar longe das estrelas e aspirá-las... tal qual faz o romântico ao contemplar extasiado a noite e o céu estrelado (de sideribus). Desejo, nessa conformidade poético-teológica, é aspirar à presença do Ausente. Há um texto de Santo Agostinho que aponta para essa idéia:

Fizeste-nos inquietos e nosso coração está inquieto enquanto

não repousa em ti...

Deste modo, motivada pelo desejo (de infinito) que cada um tem no mais íntimo do seu ser, a opção fundamental (a opção totalizante por Cristo) vai se realizando no concreto da vida cristã (que subentende uma espiritualidade definida). Para entrar na presença de Deus é preciso desejar ardentemente estar em comunhão com ele, sentir necessidade dele, de sua luz, de seu amor, de sua glória, de sua paz.

Ao chamar o Pai de Abbá (Paizinho), Jesus profere um integral ato de obediência e concordância ao projeto divino. Conforme nos diz Bruno Forte, pregador de retiros de espiritualidade do Vaticano, num evento em março de 2004, onde estavam presentes o Papa João Paulo II († 2005) e os mais altos escalões da Cúria Romana:

O “sim” de Jesus nasce, portanto, do amor sem reservas, e sua liberdade é a do amor, de quem encontra a própria vida, perdendo-a (cf. Mc 8,35). Trata-se da capacidade de arriscar tudo por Deus e pelos outros, audácia de quem vive o êxodo de si, sem nenhum retorno do amor.

Encontramos traços desse modelo nas bem-aventuranças (cf. Mt 5,1-12). Neste sentido, as bem-aventuranças nada mais são do que a autobiografia de Jesus... “bem-aventurados os pobres, bem-aventurados vocês que agora têm fome...bem-aventurados vocês que agora choram...” (Lc 6,20s). A pobreza e o despojamento de Jesus, fruto de sua radical e livre escolha dos desígnios do Pai, o transformam em homem de alegria, de paz, de oração e, sobretudo, de ação em favor da humanidade.

Pobre em relação ao passado, ele se abre ao futuro; pobre com relação ao presente, com fantasia e coragem, sente-se capaz de transformá-lo; pobre diante do pesaroso e obscuro futuro, que se lhe apresenta, Jesus vence a tentação do medo e se abandona completamente nas mãos do Pai.

Os manuais de espiritualidade, bem como as pregações dos santos e dos grandes místicos, apontam, como inspiração e paradigma para a espiritualidade autentica, as bem-aventuranças. É justamente nos critérios do Sermão da Montanha (cf. Mt 5-7) que está desenhado o “espírito do Reino”. É ali que Jesus mostra-se “de corpo inteiro”, e deixa delineado o caminho para seus amigos viverem a verdadeira relação com Deus.

Quem quiser pistas para a vivência de sua espiritualidade cristã, busque-as nas bem-aventuranças. Uma espiritualidade mal conduzida, incoerente, distanciada da verdade e da justiça, é capaz de criar barreiras à instauração do Reino, bem como predispor algumas pessoas contra a vivência cristã.

As más atitudes, as falsas posturas são capazes de criar rótulos e erguer obstáculos à adesão a Cristo e ao anúncio da Boa notícia. Se alguém se afasta de Deus, da verdade e da Justiça, por causa de nossa espiritualidade falsa, superficial ou alegórica, estamos contribuindo de forma negativa e afetiva para a perdição de alguém. E nossa.

Nesse aspecto, é lamentável dizer que nosso mundo em todos os seus ambientes está repleto dessas falsas posturas, capazes de fazer tanto mal a expansão da fé e da solidariedade. Se há coisa condenável é a incoerência, a incompatibilidade entre o que se diz e o que se faz. Entre o discurso e a ação. Na incoerência (especialmente religiosa) é que aparecem as falsas atitudes, distantes da verdadeira relação com Deus, vai aos poucos solapando a fé, a ponto de extingui-la ou imobilizá-la.

O núcleo da espiritualidade cristã está radicado nos “dez mandamentos”, a partir do primeiro, que nos recomenda amar um Deus amor, pai, amigo, irmão, peregrino, rico em misericórdia. Igualmente o “mandamento novo” (cf. Jô 13,34) que manda amar o próximo (atitude cristã) com o mesmo amor que Deus nos amou (fé) enfeixa todas as dimensões do relacionamento com o Absoluto.

Sendo um modo de viver a fé, a espiritualidade exprime uma adesão incondicional a Cristo, adesão esta manifestada nos mais variados modos e critérios de vida, como modo de pensar, de orar, de decidir, freqüentar os sacramentos e de tomar atitudes. Percebe-se, deste modo, mais claramente que, havendo vidas e situações diferentes, haverá sempre maneiras e estilos diferentes de cada um viver a sua espiritualidade.

Neste terreno não deve haver uniformidade, pois as circunstâncias são distintas. Embora o elemento comum da nossa espiritualidade cristã seja o ser-Igreja, há formas diversas de vivê-la, de acordo com o estado de vida de cada um.

Existem muitas pessoas que não sabem definir o que seja “estado de vida”, fazendo alguma confusão conceitual, o que acaba dificultando o entendimento. A compreensão desta palavra vai auxiliar sobremodo do domínio mais profundo da espiritualidade. Cada um vive o espiritual conforme seu estado de vida. Cada pessoa vive de uma forma, conforme sua opção e vocação.

Assim, cada uma possui uma forma, um estado, um jeito de levar sua vida. Cabe, portanto, para estabelecermos os pontos-chave da nossa espiritualidade, uma definição desse estado. Tem gente que pertence a um determinado grupo e insiste em viver a espiritualidade do outro.

Entende-se por estado de vida aquela forma que cada um possui, em viver conforme determinam as circunstâncias de sua atividade. O leigo, pai/mãe de família, tem sua forma característica de viver e relacionar-se com Deus. O estado de vida deles é laico, familiar, procriativo, profissional, social e testemunhal. Sua consagração é a Deus (pelo batismo), à família (pelo matrimônio e paternidade) e ao mundo (pela profissão, pelo estudo e pela vida social).

Cada grupo de pessoas tem sua forma de adorar e relacionar-se com Deus. Mesmo assim, uma pessoa adulta tem seu estado de vida diferente de uma criança ou de um idoso. A espiritualidade da mulher, que vive no lar, é diferente de uma criança ou de um idoso. A espiritualidade de quem vive no lar, é diferente daquela que trabalha fora. E assim por diante.

Já o estado de vida do presbítero, por exemplo, é sacerdotal, celibatário, missionário, obediente à hierarquia episcopal, ou à sua Congregação, voltado à missão de levar Cristo aos homens e vice-versa. Sua vida é de consagração plena a Deus e entrega aos irmãos. Do mesmo modo, os religiosos, irmãos, freiras, etc. têm formas diferentes de exercitar a espiritualidade, pois cada um deles tem suas características de atuação, que nada mais é que o estado de vida de cada um.

Esse estado, como liberdade de escolha do ser humano, reflete a consciência da dignidade humana, superior a todas as coisas. O estado de vida, perfilado ao projeto da vocação de cada um, é fonte inesgotável de alegria e realização.

Sabemos que o nosso ser-Igreja é composto de cristãos, ordenados (os bispos, os presbíteros e os diáconos), os leigos (pais e mães de família, os profissionais, jovens, adultos, crianças e idosos) e os consagrados (religiosos, freiras, monges). Cada um desses tem, conforme a graça de seu estado, sua forma característica e diferenciada de viver sua espiritualidade, isto é, seu modo de se relacionar com Deus.

Cada pessoa, seja leigo, ordenado ou consagrado, deve viver conforme seu estado de vida, de acordo com aquilo que prescreve sua vocação e seu carisma específico. É uma distorção o que muitas vezes se enxerga por aí, pessoas querendo atuar dentro do estado de vida do outro, o padre querendo viver nas realidades do mundo (política, docência, etc.), ou o leigo querendo ser um “mini-padre”, um “sacristão adulto”, enfurnado nas sacristias, quando seu campo de atuação é o mundo, a família, as profissões, os ambientes laicos. Igualmente o religioso que se dedica a outras atividades (ativismo político, sindicalismo, exercício do múnus laico, etc.). Essas ações não são específicas, pois fogem do que é preconizado para seu estado de vida.

Todo aquele que se desvia das características da sua vocação, tem maiores dificuldades em desenvolver uma espiritualidade autêntica. Estão sujeitos a danos à vocação específica, causados pela falta de identificação com o estado de vida adequada a cada realidade.

Para o leigo, a verdadeira vocação – como dissemos – aponta para o mundo, a família, o trabalho, a educação, a política, o lazer, etc. Este é o campo da sua vocação. Em paralelo, e assessoriamente, sem prejuízo do múnus original, ele pode atuar, por con-vocação na Igreja. Para o leigo e a leiga, o ser-Igreja não é ser um sacristão de luxo, nem viver enfiado na igreja-templo. É fundamental que todos, consagrados e leigos, descubram a forma mais adequada e racional de se relacionarem com Deus, e assim estarão vivendo uma forma consciente e crescente de espiritualidade.

Esse modo de viver a fé ajuda na descoberta do sentido da vida. Nesse particular, a fé precisa ser vivida nas dimensões individual, comunitária e social. Dessas três dimensões dimana a justiça social.

Para o desenvolvimento de uma espiritualidade discernida é preciso que cada um descubra a maneira mais adequada de viver a relação com Deus e com o mundo. A aludida “maldade do mundo”, da qual tanto se ouve falar por aí, pode ser atenuada e até transformada se tivermos cristãos que lutem pela justiça, pela partilha dos bens e dos dons e pelo perdão. O campo de atuação dos leigos, onde devem exerceu sua espiritualidade, nunca é demais repetir, é prioritariamente o mundo.

É no mundo, no vasto e complicado campo das realidades

temporais que o leigo encontra seu campo específico de

atuação, onde ele tem a responsabilidade de ordenar as

realidades temporais para colocá-las a serviço do Reino (Puebla

789/90)

Para levar a efeito uma espiritualidade autêntica e operosa, do tipo “pés na terra e olhos no céu” cabe aos cristãos, especialmente os leigos, não fugirem das realidades temporais, uma vez que perseverando ali, presentes, ativos e fiéis, podem deste modo encontrar o Senhor.

Apesar de tão ricas conceituações, observa-se uma significativa dificuldade para o desenvolvimento de uma espiritualidade efetiva e eficaz: a formação religiosa e doutrinária (família, escola, catequese), muitas vezes é deficiente, clericalizada, com excessos de pieguismo e ausência de solidariedade e de discernimento quanto à missão do leigo. É como dizia um velho bispo, hoje aposentado (emérito): “muita reza e pouca ação”.

A liberdade, sabemos, é um dom de Deus, que nos seres humanos tem o compromisso de instaurar o bem e a verdade em suas sociedades. Onde há liberdade, ali está o Espírito de Deus, ensina-nos São Paulo (cf. 2Cor 3,17). É preciso que todos gozem de liberdade social, política e religiosa para desenvolverem o modo mais adequado de viver sua espiritualidade.

Resguardando a unidade nas coisas necessárias, todos na Igreja, segundo o múnus de cada um, conservem a devida liberdade, tanto nas várias instâncias da vida espiritual e de disciplina, quanto nas diversidades dos ritos litúrgicos, e até mesmo na elaboração teológica da verdade revelada. Mas em tudo cultivem a caridade. Agindo assim, manifestarão, sempre mais plenamente, a verdadeira catolicidade e apostolicidade da Igreja (UR 771).

Tem gente que fala em espiritualidade, mas parece não compreender do que se trata realmente, confundindo várias idéias, que no fim criam mais confusão do que esclarecimento. Preciso orar pedindo unção para o discernimento.

Somos livres para viver e para morrer, para aprender e ensinar. Assim se manifestaram os antigos sábios de Grécia, ao inculcar em seus discípulos o valor da liberdade, como o mais autêntico bem. No terreno da fé, que estabelece a âncora essencial da nossa espiritualidade, a liberdade aparece como um bem indispensável à prossecução de nossa amizade com o Pai. Deus nos torna livres para aderirmos a Cristo, para atendermos ao seu chamado, para desenvolvermos nossa vocação, para assim sermos fiéis ao nosso estado de vida.

No terreno da espiritualidade, o título “teólogo” não aponta tão-somente para alguém que se formou em teologia, ou que é capaz de prover uma análise especializada e informativa, enquanto fica a uma distância ponderável do objeto de reflexão. Ser teólogo implica e envolve uma capacidade de presença junto às realidades refletidas.

Mais além do “bacharel em teologia”, o teólogo faz a teologia acontecer, ensina, promove o debate, cria novas idéias e produz teses. Cabe a esse especialista encarar questões desafiadoras a respeito de teoria e prática; entre dizer e fazer; fé e mística; contemplação e solidariedade. Teólogo é aquele que tem voz profética no meio da Igreja.

A necessidade de uma espiritualidade autêntica e encarnada nas realidades cotidianas desafia o teólogo que há em todos os batizados. Esse tipo de espiritualidade – às vezes definida imperfeitamente – requer de todos visão e prática, mística e crítica em mesmas proporções. Assim, definindo vemos que

Espiritualidade é uma atitude! É a forma como nos comportamos

em nossa vida, perante Deus e os desafios do mundo. Vivemos

na carne com olhos no Infinito; movimentamo-nos na matéria,

com o desejo das realidades sobrenaturais; caminhamos na

esperança expectando a certeza. Espiritualidade é, portanto,

uma atitude humana, prática com conseqüências sobrenaturais.

De uma forma acadêmica, para a melhor compreensão, quem sabe, se poderia dividir a espiritualidade em dois segmentos: místico e prático. No místico há a comunhão: “Eu te louvo, ó Pai...”. No prático vemos o social: “Eu tive fome e vocês me deram de comer...”. Dentro dessas duas idéias, vemos que viver a espiritualidade é, segundo São Bernardo de Claraval († 1153), cada um beber em seu próprio poço. Esse rico ensinamento resultou, no século XX, a produção de um belíssimo livro, autoria do jesuíta peruano Gustavo Gutiérrez, sobre a libertação e a espiritualidade latino-americanas.

No tocante à liberdade, podemos vê-la como uma relação de alteridade. Sempre somos/estamos livres em relação ao outro. Liberdade é uma relação com as outras pessoas. Ser livre significa “ser livre para o outro”, uma vez que o outro me liga a ele. Somente em relação ao outro é que sou livre. Quando oramos “livra-nos do mal” (cf. Mt 6,13) estamos pedindo a graça da liberdade.

A espiritualidade nada mais é do que aquela parte da teologia que lida com a perfeição humana e com os caminhos que levam a ela. A chamada teologia dogmática ensina aquilo que devemos acreditar. A teologia moral aponta para o que devemos ou não fazer para evitar o pecado e, acima de ambas, embora baseada em ambas, vem a espiritualidade, também chamada de teologia espiritual. Esta, novamente, pode ser dividida em teologia prática e teologia mística.

Enquanto mística, a espiritualidade adora; enquanto prática, ela se coloca a serviço. Nascendo encarnada nas virtudes teologais (fé, esperança e amor), ela vem iluminada pela luz do Deus Trinitário, e adquire, por conta dessa iluminação, uma vigorosa atitude de solidariedade.

Espiritualidade é, igualmente um encontro multidimensional, consigo mesmo, com Deus, com o outro e com o cosmo. Com afirma PH. Sheldrake (in: Espiritualidade e teologia. Vida cristã e fé trinitária. Ed. Paulinas, 200,

A espiritualidade cristã tenta responder à pergunta: “Que tipo de Deus nós temos e que diferença isso faz para nós?”. As doutrinas essenciais formuladas pela antiga Igreja Cristã eram as de Deus como Trindade e Jesus Cristo como verdadeiramente Deus e verdadeiramente humano. Todas as afirmações humanas sobre Deus têm implicações práticas: vivemos aquilo que afirmamos. Espiritualidades ineficazes ou até destrutivas inevitavelmente refletem teologias inadequadas de Deus.

Espiritualidade é vida cristã, mudança, conversão que conduz à perfeição da alma e das atitudes humanas. O “caminho da perfeição” – ensina Santa Teresa de Jesus, passa pela cruz. Falaremos em cruz amanhã. Não existe santidade sem renúncia e sem combate espiritual (cf. 2Tm 4,6ss). Não se admite espiritualidade sem cruz.

Trecho extraído do mais recente livro do autor, “Espiritualidade:o itinerário para seguir Jesus”. Este texto é um resumo da pregação realizada em um retiro de espiritualidade levado a efeito em novembro de 2010 numa casa de formação, no interior do Rio Grande do Sul

O autor é Filósofo, Biblista, com especialização em exegese. Escritor, com mais de uma centena de livros publicados e desde 2005 é Doutorado em Teologia Moral pela Sorbonne.