Felizes os íntegros [SERMO CIX]

Este texto é continuação do n. 106 – Feliz ou infeliz?

FELIZES OS ÍNTEGROS

Felizes os íntegros em seu caminho,

os que andam conforme a vontade de Javé (Sl 119,1).

Ontem, ao abrir este retiro, nós refletimos sobre a felicidade humana, quando abordamos o tema “Feliz ou infeliz? que iluminou nossos debates e estudos do dia inteiro. Foi uma abordagem mais ou menos social, onde se deu a ênfase ao aspecto psicológico da realização do ser humano. Hoje vamos aprofundar mais o tema. Vamos ao Antigo Testamento, mais especificamente ao Saltério, onde vamos encontrar a felicidade prometida aos justos, àqueles que fazem da integridade sua bandeira e norma de vida.

Há no Livro dos Salmos, a partir do primeiro capítulo, vinte e cinco “bem-aventuranças” ou declarações de felicidade como prêmio pelo bom comportamento atribuído aos íntegros e justos. A expressão bem-aventurados, por sua origem lusitana considerada arcaica, deu lugar nas traduções mais modernas das Bíblias católicas à palavra “felizes”, makários, no grego e, ašroi (alef-shim-rô-yod) no hebraico. Esta substituição se nota não só nas conhecidas “bem-aventuranças” do Sermão da Montanha (Mt 5, 2-12), mas em todos os trechos do Antigo Testamento, especialmente nos Salmos, objeto desta meditação que hoje vamos desenvolver aqui. As Bíblias protestantes, mais conservadoras, ainda mantêm o termo “bem-aventurados”.

Não é difícil observar quer no Novo Testamento, a maioria das bem-aventuranças, é baseada nos textos do Antigo Testamento, a partir dos Salmos. Quem desejar – é extenso – pode fazer uma pesquisa e estabelecer um estudo comparado entre os dois Testamentos, no que se refere ao tema ora enfocado.

Um número de vinte e cinco declarações de felicidade que encontramos nos Salmos, não pode passar despercebido. Embora escrito por homens, este livro, do grupo Sapiencial é inspirado por Deus. Ora, se a Palavra Divina afirma, no mínimo 25 vezes que “felizes são os que me mantêm íntegros”, um conjunto de premissas desse quilate não deve nem pode ser desprezado. Por esta razão vamos estudar todas as vezes que o verbete é mencionado no Livro dos Salmos. Aqui utilizaremos a versão da Bíblia Pastoral, Ed. Paulus, edição de 1990.

Integridade, eis a questão! O que é ser íntegro? Integridade é a qualidade de quem é íntegro, justo, isto é, inteiro. A integridade em geral aponta para um caráter pleno, repleto de virtudes. A característica de ser inteiro é o oposto de quem tem personalidade e atitudes fragmentadas, despedaçadas pelos vícios e todas as seqüelas dos defeitos humanos.

O que é ser íntegro? Os dicionários e manuais de teologia falam em integridade: como akakia (alguém isento de kakós, maldade); os adjetivos íntegro e completo: aparecem nas versões gregas como plyres.

Integro é o indivíduo correto, bom-caráter, que age de acordo com o direito e a justiça, seja no terreno social, profissional, familiar ou no âmbito da religião, da fé e da teologia. A integridade tem seu apoio em várias virtudes, entre elas a sinceridade. Sincera é pessoa sem cera, isto é, alguém sem aquela cera que reveste as máscaras do fingimento, que encobre atitudes falsas, que tenta encobrir a mentira e a dissimulação.

O ser humano que tem a integridade como seu distintivo não se esconde atrás de máscaras ou de atitudes postiças, mas revela seu caráter reto e suas atitudes honestas. O íntegro é aquele cuja vida, e seus frutos de virtude, agradam a Deus e são capazes de servir de paradigma para seus irmãos. Nessa conformidade, íntegro é aquele justo que agrada a Deus.

Hoje, com base em um antigo Salmo (Sl 24) a Igreja canta e celebra o fato de estar na presença de Deus, quando pergunta e ao mesmo tempo responde:

Senhor quem entrará no Santuário, prá te louvar?

• quem tem as mãos limpas

• quem tem o coração puro

• quem não é vaidoso

• quem sabe amar, servir e perdoar...

Deste modo, vemos que honesto é o homem que cumpre os mandamentos de Javé e faz o que ele manda, meditando dia-e-noite a sua lei.

Feita esta introdução, vamos a partir de agora refletir sobre os tópicos em que o Saltério privilegia a integridade do ser humano, a ponto de classificá-lo como makário, isto é, feliz, bem-aventurado.

1. Feliz o homem que não vai ao conselho dos injustos, não pára no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos zombadores (1,1);

Este Salmo funciona como o pórtico de todo o Saltério. Começa com o alef, a primeira letra do alfabeto hebraico (ashroi). Aqui é oferecida uma bênção (bem-aventurança) ao orante que se afasta do mal e dos maus. Feliz é aquele que não se mistura com os malfeitores, não apóia seus atos perversos nem se alia aos pecadores para dar curso aos seus projetos malvados. É feliz (porque Deus o distingue como justo) quem não comete o mal que é sugerido por boa parte da sociedade humana que se deixou corromper pelo pecado e pelas insídias de Satanás.

2. Felizes aqueles que (em Javé) se abrigam! (2,12);

A partir da primeira bem-aventurança (Salmo 1), as demais seguem um encadeado de bênçãos sobre aquele que faz a vontade de Javé. Em um mundo infenso, cheio de maldades e ameaças, é feliz quem se abriga sob a sombra protetora do Altíssimo.

3. Feliz aquele cuja ofensa é absolvida, cujo pecado é coberto (32,1);

É feliz quem toma a Deus por protetor. Aquele que evita o mal, e como uma pequena ave se abriga sob as asas do Pai. A esses suas falhas são relevadas, suas culpas absolvidas e seus pecados são apagados. Se de um lado o Salmo 1 exalta a felicidade de não cair no pecado, este retrata a alegria de ser perdoado. Pecadores todos somos, mas se nosso coração está ancorado no amor de Deus, na hora em que ocorrem nossos tropeços, fruto de nossa fragilidade humana, o Todo-Poderoso que conhece nosso interior, vem ao nosso encontro com as mãos cheias de perdão, consolo e fortaleza.

4. Feliz o homem a quem Javé não aponta nenhum delito (32,2);

Na continuação do versículo anterior, esta bem-aventurança abrange, como uma bênção, o homem a quem Javé tem em conta de íntegro, mesmo que seu pé possa vir a tropeçar em alguma armadilha do Maligno. A integridade não está em não cair, mas na forma como o justo se ergue.

5. Feliz a nação cujo Deus é Javé, o povo que ele escolheu como herança (33,12);

No aspecto macro, vemos aqui a bênção de Deus, não mais ao homem, individualmente, mas ao povo, à nação cujas ações, propósitos e objetivos estão voltados para os projetos do Senhor. Não basta a escolha divina: é preciso, pelo exercício da virtude e da piedade, a adesão humana ao plano do Pai. A escolha é da exclusiva competência de Deus, mas a adesão a ela pertence aos justos.

6. Provem e vejam como Javé é bom: feliz o homem que nele se abriga (34.9);

Aqui Deus faz um desafio, para que todos provem sua doçura de pai e amigo. Voltando à idéia do Salmo 2, é feliz quem nele encontra seu abrigo, buscando proteção, consolo e iluminação. Muitas pessoas não descobrem a bondade de Deus porque não têm a coragem de estabelecer essa real experiência.

7. Feliz é o homem que confia em Javé! (40,5);

A confiança ilimitada em Deus é a chave e a pedra-de-toque da nossa espiritualidade. Confiamos nele porque temos fé na oferta de sua amizade e no poder da sua graça. E isto nos torna felizes. Quem confia em Deus se entrega a ele de forma incondicional. Da experiência concreta do amor de Deus passa uma experiência que desemboca em uma bem-aventurança.

8. Feliz quem cuida do fraco e do indigente: Javé o salva no dia infeliz (41,2);

O Salmo 41 abre com uma referência que privilegia a solidariedade. O “dia infeliz” é uma adversidade que pode cair sobre qualquer ser humano. A salvação de Deus é algo gratuito que o homem não fez por merecer. Enquanto alguns praticam a caridade quando são chamados a fazê-lo, o solidário está sempre “ligado” na carência do outro. Este Salmo privilegia, como foi dito, a solidariedade, mas também o cuidado fraterno especialmente com os mais fracos, os pobres e os despossuídos. Embora a nossa caridade não deva ser interesseira, a espera de recompensas, Deus nos garante seu apoio nos momentos difíceis, se formos pródigos e generosos na acolhida e no socorro do indigente e do excluído.

9. Feliz quem tu escolhes e aproximas de ti para morar no teu Templo (65,5);

Semelhante ao que é dito no Salmo 24, aqui o salmista ergue um louvor e um agradecimento a Deus, pela escolha e eleição do fiel para caminhar com ele e ser digno de entrar no seu Tabernáculo. O Senhor chama e escolhe a todos; aceitar essa vocação é uma questão de fé.

10. Felizes os que habitam em tua casa: eles te louvam sem cessar (84,5);

O louvor é endereçado a Deus que permite a participação de seus filhos na vida divina. A essa vida divina chamamos de “vida da graça”,que consiste em aceitar os dons que a providência divina nos cumula por toda a vida. Os que habitam na casa do Pai são felizes e dessa felicidade nasce o louvor e a ação-de-graças.

11. Felizes os que encontram em ti a sua força ao preparar sua peregrinação (84,6);

Na Antiguidade, as peregrinações compreendiam extensas e concorridas caminhadas na direção das cidades santas, especialmente para Jerusalém. Antes de empreendê-las, o povo orava a Deus pedindo proteção. Hoje podemos enxergar a vida humana como uma grande peregrinação à casa do Pai. É feliz o homem que se sente apoiado e fortalecido pela misericórdia divina para empreender essa importante jornada.

12. Javé dos Exércitos, feliz o homem que confia em ti! (84,13);

Seguindo a linha de louvor dos Salmos anteriores, este glorifica a Javé dos Exércitos pela segurança que proporciona àqueles que nele confiam. Este é um Salmo litúrgico em que o povo que volta do exílio descobre o sentido da sua vida e a forma mais concreta de viver sua espiritualidade.

13. Feliz o povo que sabe te aclamar: ele caminhará, ó Javé, à luz da tua face (89,16);

O conteúdo deste Salmo, cuja autoria é atribuída a Ethan, o ezraíta, retrata o culto de memória que perdura em Israel desde o êxodo, a partir do qual o povo não cansa de glorificar o Senhor, pela libertação. Nessa glorificação aparece a alegria e o orgulho de um povo historicamente escolhido. A palavra “aclamar” tão comum nos livros Sapienciais hebraicos aponta aqui para um brado de triunfo. O rosto benévolo de Deus ilumina como um sol a vida e a conduta dos que são íntegros.

14. Feliz o homem a quem educas, Javé, a quem ensinas com a tua lei (94,12);

Todas as atitudes de Deus com relação ao ser humano têm sua pedagogia, visando uma edificação pessoal e comunitária. Este é um Salmo da época de retorno do exílio babilônico, período em que os mestres de Israel, afirmavam que todo o sofrimento pelo qual passou o povo tem um aspecto educativo, por conta do desleixo em observar a Lei. Esta bem-aventurança passa do estilo sapiencial à revelação teológica que preconiza o cumprimento da lei.

15. Feliz quem observa o direito e pratica a justiça em todo o tempo! (106,3);

Este é outro Salmo com caráter de hino litúrgico, tanto que abre com a aclamação de um vigoroso “aleluia”. Aqui os termos “direito” e “justiça” são uma característica do homem justo, cuja persistência e perseverança o tornam feliz. Aqui a bem-aventurança contempla o homem que age com retidão de atitude e caráter.

16. Feliz o homem que teme a Javé e se compraz com seus mandamentos! (112,1);

A Lei de Deus não é um fardo pesado, mas uma graça capaz de iluminar o caminho dos homens, nas refregas diárias contra as forças do mal. Na continuação, o salmista afirma que a descendência do íntegro que teme a Deus será poderosa e abençoada. Trata-se de uma meditação sapiencial sobre o ser e o agir do justo. Esta bem-aventurança é aberta com um brado de aleluia como sinal de fé em Deus e alegria. Trata-se de uma lição para a vida daquele que crê e almeja a salvação.

17. Feliz quem tem piedade e empresta, e conduz seus negócios com retidão (112,5);

O homem honesto e solidário que se compadece das necessidades dos outros é tachado de feliz, em face da integridade do seu caráter. O ato de socorrer o necessitado é uma demonstração do “temor de Deus” (um dos dons do Espírito Santo). Esse dom se caracteriza por atitudes práticas de solidariedade. A partir da compaixão de Deus o homem deve aprender a ser justo e socorrer as necessidades dos outros sem esperar recompensa.

18. Felizes os íntegros em seu caminho, os que andam conforme a vontade de Javé (119,1);

Neste grande Salmo de meditação sapiencial é dito pelo autor que são íntegros todos aqueles que se perfilam à vontade de Deus. O caminho dos justos sempre prospera por causa da integridade dos seus atos, que se ajusta àquilo que Deus quer.

19. Felizes os que guardam os preceitos de Deus, procurando-o de todo o coração (119,2);

O versículo 2, integrado ao anterior, completa a idéia do testemunho de vida reta e integridade. O Salmo 119 é o maior do Saltério (176 versículos) e acumula vários sinônimos à Torá (lei de Deus), visando a edificação espiritual do povo e a compreensão dos estatutos divinos. É feliz quem segue essa lei. Os versículos 1 e 2 são colocados no itinerário da verdadeira felicidade indicando o caminho para o êxito. O contrário é alertado no v. 6: o fracasso.

20. Os filhos da juventude são flechas na mão de um guerreiro. Feliz o homem que enche sua aljava com elas (127,4s);

Neste Salmo sapiencial, atribuído ao rei Salomão, é afirmada a superveniência da família no regime tribal de Israel. Uma prole numerosa (a idéia da aljava cheia) é uma bênção de Deus. As flechas lançadas à distância apontam para os filhos, que através do testemunho de integridade da família, levam adiante os valores da vida. É através deles que a história da família se perpetua.

21. Feliz quem teme a Javé e anda em seus caminhos! (128,1);

Os caminhos do Senhor são bondade e amor. Quem reconhece essa verdade reconhece a divindade de Deus, tornando-se dócil e obediente aos mandamentos do Senhor. Temer a Javé e seguir seus conselhos são atitudes afins, correlatas e comunicantes.

22. Você comerá do trabalho de suas próprias mãos, tranqüilo e viverá feliz (128,2);

Aqui o salmista se refere ao valor do trabalho humano, complementando a idéia do v. 1. Temer a Deus e cumprir suas normas é condição de felicidade. Trabalhar, produzir e auferir bens com a produção é uma bênção.

23. Feliz o povo cujo Deus é Javé! (144,15).

Neste Salmo de Davi ocorre uma semelhança com o Salmo 33, onde a felicidade é creditada ao povo que aceita Javé como seu Deus e Senhor. Os judeus, até os dias de hoje, costumam usar este Salmo afixado à porta de suas casas. Povo da promessa continua sendo o povo da Aliança, que reconhece a Javé como seu Deus.

24. Feliz quem se apóia no Deus de Jacó, quem coloca sua esperança em Javé seu Deus (146,5);

Esta é a última bem-aventurança do Saltério. Trata-se de um Salmo de confiança, onde o rei Davi exalta o poder de Deus, que por toda a história sempre foi o go´el (o aliado) do povo de Israel. Aqui surge a lembrança do patriarca Jacó e das doze tribos de Israel.

Na contextualização da volta do tempo do exílio, há uma maldição contra a Babilônia que implica em declaração de felicidade aos vingadores:

Ó devastadora capital de Babilônia, feliz quem lhe devolver o mal que você fez para nós! Feliz quem agarrar e esmagar seus nenês contra o rochedo! (137,8s).

A oração dos Salmos é uma forma de comunicação com Deus que os judeus, deste a Antiguidade, usavam para louvar, agradecer e glorificar a presença divina.

Invoque-me no dia da angústia, eu te livrarei e tu me glorificarás (Sl 50,15).

Para finalizar, vamos encontrar mais uma “bem-aventurança” (a 25ª.) endereçada àqueles que reconhecem em Javé o pastor do povo:

Sim, felicidade e amor me acompanharão

todos os dias da minha vida (23,6).

Resumo (2ª. parte) da pregação feita em um retiro de padres, no Paraná (novembro 2010) com o tema “Felicidade”. Escritor, com mais de cem livros publicados no Brasil e exterior, entre eles “Salmos: a oração do povo de Deus”, Ed.Ave-Maria, 2001. Especialista em espiritualidade e Doutor em Teologia Moral. Conferencista e pregador de retiros.