A Criança e o Câncer

O câncer da criança é muito diferente do câncer do adulto. As chances de cura em instituições especializadas, que chegam apenas a aproximadamente 20% em maiores de 18 anos, nas crianças pode chegar a estratosféricos 80%.

Estes números são frutos do esforço conjunto que muitos centros de tratamento multidisciplinares e especializados vêm fazendo desde a década de cinqüenta, de modo que, hoje em dia, dados importantíssimos tenham sido levantados, possibilitando melhor tratamento para estas crianças, que podem receber o mesmo esquema de drogas aqui, na Europa ou nos Estados Unidos.

Em palestra realizada em Brisbane, Austrália, em 2001, o Prof. Larry Hadley, de Cape Town, África do Sul, quando perguntado acerca da grande quantidade de casos avançados da doença em um estudo seu, replicou com uma imagem do caminhão “pau-de-arara” que trazia seus pacientes dos rincões da savana para a cidade. Sobre a caçamba, uma infinidade de cabecinhas; do lado de fora, adultos e crianças agarrando com seus braços magros as laterais do veículo.

Nossa situação, no Brasil, não é muito diversa. Podemos não dispor de imagens tão edificantes como a do Prof. Hadley, mas vivemos similaridades no que tange às dificuldades de transporte até grandes centros e a falta de diagnóstico precoce. O Registro de Câncer de São Paulo 2004 (de base populacional) apresentou coeficientes de incidência e mortalidade de câncer pediátrico mais elevados do que os de outros países europeus e americanos, com uma probabilidade de sobrevida acumulada de apenas 41%. E isto na maior cidade do país, onde, como no Rio de Janeiro, concentram-se grande parte dos hospitais especializados na doença, todos incluídos em grupos de estudo nacionais e internacionais gerenciados pela Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica. Como explicar, então, a disparidade de resultados, se muitas vezes o tratamento recebido é o mesmo que recebem crianças americanas e européias?

As respostas são muitas, incluindo-se a inexistência da disciplina Oncologia Pediátrica na esmagadora maioria dos programas curriculares das escolas brasileiras de Medicina, a não-obrigatoriedade de estágio dos residentes em Pediatria e/ou Cirurgia Pediátrica em instituições especializadas e a própria raridade da doença. A realidade é que a maioria dos médicos, especialmente os pediatras, não adquiriu conhecimento suficiente para identificar e reconhecer os sintomas da doença, levando a criança a uma “via crucis” de encaminhamentos, exames e até tratamentos equivocados, levando ao atraso no diagnóstico e conseqüente diminuição das possibilidades de sobrevida.

E por que nos preocuparíamos com isso, num país onde tantos ainda morrem por falta de cuidados médicos básicos na mais tenra idade? Porque malgrado os avanços milimétricos que obtivemos nos últimos anos, com o combate à fome e à mortalidade infantil, é esta doença rara – o câncer – que responde hoje pela segunda causa mortis entre menores de 0 a 18 anos, atrás apenas dos óbitos por causas externas (acidentes).

A nova Política Brasileira de Câncer, normatizada pela Portaria 741, de 19 de dezembro de 2005, que corrigiu pequenas imperfeições da já excelente legislação anterior, acena com a possibilidade de se descentralizar o tratamento, deixando a cargo dos gestores locais do Sistema Único de Saúde (SUS) a organização de esquemas de referência e encaminhamento dos portadores da doença, inclusive identificando e sugerindo novos hospitais para credenciamento em áreas outrora desprovidas de atendimento. O Ministério da Saúde continua soberano na avaliação de quais locais e cidades deverão ser contemplados com novos centros especializados em Oncologia de adultos e/ou crianças, mas são os esforços destes gestores que, em última análise, possibilitarão a capacitação profissional e tecnológica de instituições que já prestam atendimento oncológico, elegendo-as para o credenciamento como um reconhecimento de sua importância no combate regional à doença.

O câncer na criança é uma urgência em termos de diagnóstico e tratamento precoces. Nossa capacidade de prover o tratamento adequado não depende mais somente de “milagres” da Medicina como novas drogas e/ou esquemas radioterápicos eficazes. Há que haver engajamento por parte das classes médica e política, bem como da comunidade em geral – que deve ser instruída sobre a dimensão do problema – visando a construção não só de uma rede de atendimento médico, como de suporte social para as famílias atingidas pela doença.

Quando este artigo foi concebido inicialmente, tínhamos a intenção de colori-lo com exemplos pungentes e coroá-lo com uma pergunta: além do drama evidente de um diagnóstico terrível, quanto mais um pai ou uma mãe precisam sofrer para ver assegurado a seus filhos o direito ao tratamento previsto por lei? Por mais envolvidos que nós oncologistas estejamos com o dia-a-dia dessas famílias, porém, jamais seremos capazes de compreender completamente o grau de sofrimento que a doença impõe a pais, irmãos e parentes. “O câncer na criança é impensável”, diria o mestre Carlos Vicuña, ora clinicando em Quito, Equador, “nós só somos capazes de executar nossas obrigações de médicos porque não se trata de nossos próprios filhos. Imagine seu filho com câncer. Você não consegue. É impensável.”

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 26/10/2006
Código do texto: T274396