AINDA BEM QUE O VIMOS

Chegamos a casa um pouco mais tarde do que de costume: passava das dezenove horas.

Desci a rua e virei à direita, para entrar na garagem, quando, já defronte ao meu portão, meu filho e eu percebemos a silhueta de algo que se movimentava diante do farol de um automóvel que vinha em direção contrária a nossa, subindo vagarosamente a rua.

Meu filho, já saindo do veículo, disse que havia visto alguma coisa: parecia ser uma coruja, mas era um bem-te-vi, com a asa bastante machucada.

A assustada ave, não podendo alçar vôo, foi aconchegada em uma gaiola vazia que tínhamos em casa, com água, frutas, ração, e protegida dos gatos que sempre rondam minha residência. E, assim, passou conosco aquela noite toda: e ela não seria a única e nem a última.

Depois de uma semana de atendimentos diários, abrimos a porta da gaiola, e nosso bem-te-vi tentou voar: não conseguiu.

Tropeçou, rolou no chão, bateu o bico na parede, perdeu algumas penugens que estavam presas ao corpo com sangue negro e pisado, e parou num canto do quintal, assustado, respiração alterada, bico aberto na tentativa de defender-se de nós, supostos agressores, que íamos atrás dele.

Em vão todas as tentativas de fazê-lo encontrar a tão desejada liberdade.

Hoje, não sei se, feliz ou infelizmente, ele é nosso alarme vivo.

Se vir um gatinho no telhado, ou um pássaro diferente querendo roubar-lhe a ração, ou ainda qualquer coisa que se mova , e que não sejamos nós, moradores da casa, ele solta um viiiiiiiiii, longo e tremendamente sonoro.

Se alguém aparece de supetão, na porta da cozinha, ele levanta o topete, abre as asas e solta dois ou três tivi, tivi, tivi, manifestando sua indignação por tão inesperada aparição.

Mas o pior é o que sinto quando vejo e ouço o cantar de outros bem-te-vis, livres, que têm tomado conta dos espaços verdes da cidade, durante essa primavera: é indescritível.

Eu tenho, a contragosto, um bem-te-vi cativo: é horrível, mesmo estando ele, ou, possivelmente, por estar ele, diariamente, rodeado por rolinhas arrulhando, beija-flores buscando água com invisíveis asas, abelhas zumbindo a alegria da primavera.

Se eu o soltar, ele, com certeza, morrerá. Se não o soltar, tenho medo de vê-lo morrer sem a tão imprescindível e fundamental liberdade. Como diante da possibilidade da minha morte, não sei o que fazer.

Como agora, a cada dia, me soa imbecil o provérbio, “mais vale um pássaro na mão que dois voando” : nada vale mais que um pássaro voando, nada seria mais gratificante , para toda a minha família, que ver nosso bem-te-vi voando.

Chego a pensar: o que mais me incomoda, realmente, é vê-lo personificar, a cada dia, a minha situação de prisioneiro das convenções, com asas quebradas do primitivo ser que um dia fui, sem poder voar livremente, mesmo que minha gaiola estivesse aberta.

ANTÔNIO CARLOS TÓRTORO

EX-PRESIDENTE DA ACADEMIA RIBEIRÃOPRETANA DE EDUCAÇÃO

Tórtoro
Enviado por Tórtoro em 27/10/2006
Código do texto: T275394