Ônibus para o inferno

Luiz Luna*

O ônibus trafegava devagar, ele era o único passageiro, sentado entre as poltronas do meio. Sequer existia motorista. As imagens eram aterrorizadoras, a fumaça ardia as narinas e colaborava para o clima fúnebre, o odor de enxofre causava uma sensação de impotência e desespero, pois a movimentação física era impossível. O homem não entendia bem onde estava, mas imaginava que aquele lugar era o inferno.

Havia corpos de todos os tipos e de vários tamanhos, uns ardendo em fogo, outros já em decomposição, embora conservassem suas vestimentas, que eram de um tom cinza forte, uma imagem em preto e branco. Não foi visualizado nenhum rosto conhecido, mas a comoção é indescritível, embora não fosse percebido sinal de tristeza em suas faces. Alguns questionamentos interiores eram inevitáveis, uns feitos posteriormente. O que teria acontecido? Por que aquelas pessoas estavam ali, aparentemente sem vida? Onde estavam os outros passageiros? Cadê o motorista? Que lugar era aquele? Em que momento o ônibus pararia? Para onde estava indo? Faria também parte daquela situação e ainda não tinha percebido? Diante da falta de respostas e sem poder comunicar-se, continuava sentado e o ônibus prosseguia. Enquanto tanta gente clama por momentos de solidão e reflexão, diante da complexidade do mundo moderno, aquele homem nada entendia e não ver alguém apenas aumentava a insegurança e a incerteza diante da vida. Por que não poderia escolher estar em outro lugar? Onde tinha ido parar seu direito de ir e vir? Onde estava toda a estrutura governamental em que acreditava?

A maioria das perguntas permanecia sem resposta. De repente, o ônibus diminui a velocidade, quase pára, mas continua se movimentando. Um corpo de criança destaca-se em meio a outros que estavam metros distantes. Ela usava um vestido branco (?) com bolinhas e florzinhas desenhadas, não tinha uma das pernas, os braços abertos, os cabelos assanhados (como que perplexa com tamanho horror), os olhos quase saltitando e alguns orifícios na face. A cena lembrava o holocausto (dizimação perpetrada contra os judeus durante a segunda guerra mundial pelos alemães, sob o pretexto de formar uma raça pura), mas a pequena quantidade de informações não permitia nenhum juízo. E o clima de incerteza aumentava quando se podia perceber um discretíssimo sorriso no contexto facial da menina. Seria possível algum sentimento prazeroso diante daquele momento? Como saber e interpretar seu sentimento se o homem assistia a tudo como se a janela do ônibus fosse uma tela de TV? Ainda era madrugada quando o despertar o libertara do pesadelo... Tocava-se e olhava em volta, sentindo-se ressuscitado e sem entender como poderia ter sido apenas um sonho.

Não fora a primeira vez que durante o sono sentia-se transportado para outras dimensões, tampouco era primária a vivência dos pesadelos durante a noite, mas fazia tempo que não sonhava, e imagem semelhante à daquela menina era uma novidade tão marcante que durante dias ficou a pensar no assunto. No entanto, continuou sem nada entender. A falta de respostas plausíveis também causava uma sensação de impotência, mas jamais se igualava aos momentos vivenciados pelas pessoas do pesadelo, representadas por uma menina, que talvez expressasse esperança na discrição da tentativa de sorrir...

* Jornalista e especialista em gestão de pessoas.

L L Jr
Enviado por L L Jr em 07/11/2006
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