Se a minha Igreja fosse assim...

SE A MINHA IGREJA FOSSE ASSIM

Há dias assisti pela Internet ao teólogo Leonardo Boff. em uma entrevista lúcida e esclarecedora, concedida ao Canal Brasil em 2010, que pode ser vista no site http://www.vimeo.com/18918061, onde o ex-frei franciscano revela sua caminhada na Igreja e fora dela. Boff sofreu censura, foi mandado calar, proibido de escrever, perseguido dentro e fora da Igreja, sendo conduzido a uma renúncia de seu estado religioso, única alternativa que lhe foi deixada.

Frei Leonardo deixou de ser padre, mas não a tarefa de teólogo; continua dando aulas, escrevendo e ministrando palestras e conferências aqui e lá fora. Teve cas-sada sua cátedra, mas não puderem lhe tirar o carisma. Incapaz de dialogar e de buscar conciliação, a ala burocrática da Igreja, que antes mandava para a fogueira, modernamente silencia, tira espaços e expurga.

É pena notar que o saber de Boff foi desaproveitado pela Igreja. Ele foi elevado ao estado laico em 1982, há, portanto vinte e nove anos. Hoje, em plena atividade de seus setenta e três anos, poderia ter sido um bispo, quem sabe melhor – melhor mas menos submisso – que alguns que estão por aí, um superior na sua congre-gação ou desempenhando um cargo consultivo na Igreja.

Com Martinho Lutero († 1546) sucedeu algo semelhante. Mesmo sem querer ele se tornou o mentor de reforma protestante. Ele queria protestar contra fatos da Igre-ja que ele julgava incompatíveis com a fé cristã. Não foi sua intenção abrir uma dissidência na Igreja nem tampouco criar uma nova religião. O que aconteceu posteriormente foi fruto da intransigência e da falta de diálogo de alguns segmentos da nossa Igreja.

Lutero foi um teólogo brilhante, um pensador diferenciado e um músico emérito. Homem de profunda fé revelou um notável senso de piedade. Há tempos li um artigo de um escritor e jornalista italiano que o chamou de um “santo equivocado”, onde o periodista chega a dizer que os mesmos que o chama-ram de herege um dia poderão declarar que ele é santo.

O fato é que Lutero disse – através de suas “95 teses” – a coisa certa, talvez na hora errada e para um auditório inadequado. Quem sabe publicou essas teses por não ter outro veículo que o quisesse escutar. Segundo a tradição luterana que celebra a persona Lutero, as “95 Teses” foram afixadas na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517.

Modernamente, tivemos e temos homens notáveis, como o padre José Comblin († 2011), que foi meu professor na Paraíba, que sofrereu perseguições por parte das autoridades da Igreja. As ideias de Padre José o colocaram sob suspeita da ditadura e da ala conservadora da Igreja. Como era estrangeiro, foi expulso do Brasil pelos mkilitares em 1971, tendo que se exilar no Chile durante 8 anos, onde também esteve à frente da criação de um seminário em Talca, em 1978.

Em seu livro A Ideologia da Segurança Nacional, publicado em 1977, ele desvendou (e desmascarou) a doutrina totalitária que servia de base para os regimes militares na América Latina. De volta ao Brasil, radicou-se no interior da Paraíba, onde fundou um seminário rural em Alagoa Grande, e esteve à frente da formação de teólogos leigos e animadores de comunidades eclesiais de base. Apesar de seu carisma e notório saber teológico, sofreu perseguições por parte da Igreja. Em seu sepultamento alguém afirmou: “como o profeta Amós, Comblin incomodava...”.

Outro também que não era bem visto pela corte vaticana nem pela direita da Igre-ja brasileira foi Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo. Nos “anos de chumbo” da ditadura foi uma das poucas vozes – junto com Dom Helder Câmara (de Olinda e Recife) e Dom José Maria Pires (da Paraíba) – que se insurgiram contra as torturas e arbitrariedades do governo militar (1964-1985).

Enquanto a maioria do episcopado silenciou, e outros tomavam chás nos palácios e merendavam nos quartéis, Dom Paulo e Dom José visitavam presos políticos e ajudavam a procurar desaparecidos. Para diminuir sua área de atuação e influência, Roma reduziu o tamanho de sua área de ação, dividindo a Arquidiocese de São Paulo em várias outras dioceses menores. Dom Paulo, Dom Helder e Dom José Maria Pires (o Dom Pelé) foram praticamente as únicas vozes respeitadas pelo governo militar, no ne-gro período da ditadura.

Lamentavelmente, nossa Igreja que se diz “especialista em humanidade”, parece que não aprendeu a lidar com os problemas de seu público interno; não sabe fazer o “dever de casa”, pois não demonstra caridade e sensibilidade no trato com aqueles que se atrevem a dissentir. Como afirmou Padre Zezinho em seu site

“ultimamente a Igreja Católica não está sabendo muita coisa… Isso é delicioso! Faço parte de uma religião que admite que perdeu muito nos últimos anos e aceita reaprender. É a minha Igreja! Católica, Apostólica e Romana. Eu fico! Sereno e feliz, porque acho que vale a pena”.

Não sendo democrática, minha Igreja não sabe dialogar sem impor, nem interagir sem querer dominar. Ela não está aberta para a crítica. Quem critica se arrisca a sofrer represálias. Se for membro da hierarquia, sofrerá algum tipo de censura (como Boff e Ivone Gebara, por exemplo); se leigo, é capaz de ser excluído de algum ministério extraordinário ou eventual cátedra.

Eu faço da crítica, serena e honesta, a bandeira do meu profetismo. Como batizado fui ungido profeta, sacerdote e servidor. Assim como fui crítico em certo momento dos anos oitenta, contra alguns excessos dos seguidores da Teologia da Libertação, que se mostrava mais sociológica que teológica, mais política que eclesial e mais sectária que acolhedora (críticas que me valeram algumas dores de cabeça), hoje me sinto capaz e comprometido para criticar o que entendo que não está certo.

Minha Igreja é crítica com a sociedade, a família, a política, a economia, os costumes, mas sensivelmente acrítica quanto aos seus problemas e mazelas. Ou seja, gosta de criticar e julgar: nós escutamos isto todos os dias nas homilias de todas as missas, mas não admite receber nenhum julgamento ou comentário contrário. A nossa Igreja, vinte séculos depois de contemplada com a ata de fundação pelo Espírito Santo, ainda não aprendeu a conviver com a crítica e a diversidade, mesmo que honesta, justa e pertinente.

Em sua etimologia, a palavra crítica brota de crisis, crise, que nada mais é que um julgamento, uma ocasião para reflexão e decisão. Sempre que se faz uma crítica ocorre um julgamento, porque geralmente há uma crise. Eu não vou criticar a Maçonaria ou a Igreja Luterana, pois não faço parte de nenhuma dessas instituições, não conheço bem suas formulações e seria pretensioso e leviano fazer um julgamento a suas atuações. Mas quanto à minha Igreja me sinto a vontade em fazê-lo, pois sou membro dela desde o dia 13 de junho de 1942, quando fui batizado, e militante em várias de suas frentes pastorais e docentes há mais de cinquenta anos.

A crítica pode, se feita por quem tenha capacidade de fazê-lo, ser dirigida à Igreja pecadora (que sempre necessita de conversão e atualização) e jamais à Igreja santa (como a esposa que desceu do céu para cumprir a vontade do Cordeiro). O Espírito da Igreja é diferente da atitude humana de seus membros. Isto precisa ficar bem claro. É bom, também esclarecer que discordar não é não-amar. Criticamos e repreendemos um filho, mesmo amando-o.

Outro fator de desajuste se refere aos leigos. Estes têm um espaço limitado na Igreja, e o que possuem está sempre sob severa vigilância da chamada “hierarquia”. Há tempos houve um encontro que ia tratar do “protagonismo dos leigos”. Interessei-me pelo conclave. Depois desisti de comparecer, quando vi que os palestrantes e assessores eram padres e religiosas. Numa cidade, por aí, quem coordena a “pastoral familiar” é uma religiosa. Agora em junho assisti, pala Rede Vida – uma televisão que só privilegia produções clericais – alguém falando sobre uma “comissão para o laicato”, onde a cúpula é toda composta de bispos.

Muita gente mudou e continua mudando de religião porque não acreditou na nossa fala; muitos foram para outras Igrejas porque foram seduzidas pela fala do pastor de lá. Trata-se de um fenômeno natural. Nem todos os convertidos a uma religião são convertidos a Deus. Tem os atraídos, os encantados, os que curtem... Conheci jovens que eram fanáticos por seu “movimento”, que lhes permitia tocar violão em uma missa do fim-de-semana, fazer ruidosas reuniões e promover encontros periódicos. Quando houve uma reformulação, a maioria deixou de ir à igreja.

“A cena do século XVI repete-se atualmente em Roma. Os(as)

que trabalham pela reforma da igreja católica são considerados

(as) ‘personae non gratae’. Reina um espírito de prepotência,

fechamento e mesmo cinismo, como afirmou recentemente o

escritor Saramago. Todos e todas que ousam apresentar uma

sugestão que não é do agrado das autoridades do Vaticano

sentem isso na pele. Como nos tempos de Lutero, necessitamos

atualmente de uma reforma protestante a sacudir a igreja

católica pela força do espírito evangélico. Temos de protestar,

fazer ouvir nossa discordância dos desmandos praticados pelo

papa e pelas autoridades do Vaticano”. (E. Hoonaert. In: A

Igreja necessita de uma “reforma protestante”. Adital, 2011).

Eu tenho quatro mães: Dona Mercedes e a Virgem Maria, no céu. Tenho também a Igreja, que está a caminho do céu. Além destas, tenho Carmen, esposa e companheira há quase cinquenta anos que me embala com seus carinhos e cuidados maternais, Amo as quatro e não renego nenhuma delas. Todas elas foram e são importantíssimas para mim e para meu crescimento.

Na minha Igreja falam em democracia, mas praticam um grosseiro autoritarismo de cima para baixo. Parece que só Roma é capaz de pensar o que é bom para o povo de Deus. Ainda vige a divisa medieval de Santo Agostinho "Roma locuta causa finita est" (Sermo 131), como se as igrejas particulares não tivessem discernimento e não fossem guiadas pelo Espírito Santo para suas iniciativas e decisões.

Ao que tudo indica, parece que falta à Igreja, como um todo, a coragem, a humildade, o destemor e o discernimento que animou a comunidade em seu começo. Coragem dos dirigentes para tomar as iniciativas necessárias e dos demais para pressionar pelas mudanças. É salutar que se saiba que autoridade quer dizer serviço e não dominação e tirania.

Existem hoje, no mundo todo e também no Brasil, propostas para a revisão de alguns critérios considerados pétreos pela alta hierarquia da Igreja, como celibato do clero, ordenação das mulheres, aproveitamento dos padres casados e democracia nas decisões, sobretudo. Democracia de os padres elegerem o bispo, os bispos elegerem o papa, e assim por diante.

Minha Igreja precisa daquilo que o papa João XXIII, ao abrir uma janela pedindo ar renovado chamou de "aggiornamento", ou seja, uma vigorosa adaptação da tradição da Igreja à evolução do mundo contemporâneo; uma adaptação ao progresso e às mudanças que cada época preconiza. É preciso se atualizar e avançar no debate social, no diálogo com as religiões, com as minoras e na adoção de uma nova visão, mais incisiva quanto à política e à economia, espaços por onde transitam os cristãos.

Ah, quando a minha Igreja for assim, talvez ela não padeça da baixa adesão de fiéis, com apenas 25% dos batizados frequentando as missas dominicais, em muitos lugares, conforme dados alarmantes informados pelas próprias autoridades católicas.

O autor é um leigo, Doutor em Teologia Moral.