O direito de sentir

Desde crianças, ouvimos expressões de reprovação aos "sentimentos malditos", os quais atendem pelos nomes de angústia, culpa, frustração, medo, revolta, solidão, tristeza e vergonha, entre outros. É como se a pessoa se tornasse imperfeita ao dar-lhes cidadania subjetiva, tendo de rechaçá-los o quanto antes de suas vidas. E, o pior, não se referir a eles.

O imperioso é falar de plenitude, leveza, êxito, coragem, amor, ternura, passividade, congraçamento, alegria e extroversão. E discursar sobre essas coisas boas a qualquer hora, dia e lugar a qualquer um e em qualquer circunstância, como se fôssemos pequenos deuses, inatingíveis pelas vicissitudes da existência, como se as mazelas da vida não nos doessem no calcanhar, como se as loucuras da sociedade maluca em que vivemos não nos dissessem respeito, como se o mundo e seus absurdos não nos atingissem e não nos lançassem nos braços da vulnerabilidade.

Ao negar às pessoas o direito àqueles sentimentos, instauramos a ditadura do sentir-se bem, do sempre contente e feliz, comigo e com todos ao meu redor, não importando o quanto isso custa a cada um de nós. Sim, porque os sentimentos bons é que são bonitos; os sentimentos malditos, feios.

Por isso, hoje eu quero contrariar. Na verdade, maldizer, não dizer bem dessa tirania da felicidade, dessa obrigação de ser sempre um show de luz e resplendor. Não! Hoje eu quero, por exemplo, falar da angústia. Sim, você já sentiu aquela aflição agoniada que brota do aperto provocado por um desgosto que estreita o peito, que limita sua ação junto a si, aos outros, à sociedade e ao mundo? Já sentiu essa opressão atribulada que faz você se perceber menos do que é? Se já, então sabe o que é angústia e sabe quando ela pode lhe pegar com as calças na mão. Eu não quero dizer que ela é boa, mas quero reafirmar nosso direito irrestrito de senti-la. Se necessário for, que tenhamos a liberdade para sentirmos angústia e, depois, ganharmos a expansão.

Outro sentimento ao qual parece termos perdido o direito é a culpa. Sabe quando temos certeza de que pisamos na bola, ferimos o senso moral ou legal por termos praticado quase um delito, quando sabemos que cometemos faltas junto às pessoas, pronunciamos ofensas contra elas ou não respondemos às nossas atribuições perante nós mesmos, a comunidade e a sociedade? Dessa certeza nasce a culpa. Mas ela também tem sido exilada de nossas vidas. É feio senti-la. Mas, hoje, eu digo: culpemo-nos e sintamos o estrago que causamos com nossas ações. Mas não fiquemos nisso! Busquemos e efetivemos a reparação. Do contrário, a culpa não terá o menor valor.

Outro sentimentozinho condenado é a frustração. Vemo-nos defraudados, enganados; notamos que nossos atos não surtem efeito e sentimo-nos inúteis no gosto do malogro, não alcançando nossos objetivos, nem atingindo nossas metas. Mas, não! "O fracasso pertence a quem o admite e você tem de ser sucesso, sempre". Desde quando? Frustremo-nos toda vez que a frustração for real. Aprendamos que, com ela, podemos nos fortalecer para o êxito pé-no-chão.

O medo, que pode ser aquele receio sentido diante do mundo, passa pelo susto em face de acontecimentos inesperados, inusitados, e chega ao terror diante de coisas impensáveis aos humanos, também esse sentimento temos de colocar de lado porque ele é socialmente suspeito. "Seja sempre a coragem em pessoa, senão não irá muito longe", assinalam-nos. Então, contrariando isso, quero dizer: que sintamos nossos medos, pois não somos plenipotentes diante daquilo que a vida é. Medo não é algo que pertence apenas à criança, mas a toda gente, esteja ela em que estádio da vida estiver. Ele pode, inclusive, servir-nos de alerta em algumas ocasiões. E que nossos medos funcionem como doses de equilíbrio para quando a vida exigir a nossa melhor coragem.

Já a revolta, listada entre os sentires malditos, é a perturbação que conduz à indignação. Se bem administrada, a indignação é virtude e pode levar ao levante necessário para concretizarmos as sedições vitais nos palcos da vida pessoal, profissional e social. Se isso tivesse acontecido em relação a um Hitler, por exemplo, o holocausto nazista poderia ter sido evitado. Quando você não se indigna, a injustiça deita e rola. Por isso, vamos nos revoltar, pois esse sentimento é parte do senso da sã cidadania.

Ah... a solidão! "No meio de tanta gente, como você pode se sentir solitário?" Mas essa é outra pressão da sociedade do “todo mundo feliz o tempo todo e em qualquer circunstância e lugar”. Entretanto, em última instância, somos sós mesmo e sós morreremos. É a sociedade da felicidade full-time que não aceita essa realidade. Estar desacompanhado é um fracasso terrível, um crime, independentemente se, do ponto de vista antropológico, o que somos é realmente um singular que não pode ser e estar acompanhado o tempo todo. Contudo, solidão faz bem: mostra-nos quem somos. Se assim é, demo-nos mais esse direito: sejamos sós quando não nos for possível nenhuma companhia além de nós próprios. De si mesmo ninguém pode fugir. Ou pode?

“Você está triste? Magoado e aflito? Consternado com que? Desde quando vale a pena viver essa melancolia? O bar está cheio de gente sorridente; o baile está bombando de gente dançante... vamos lá! Deixe essa tristeza de lado! Levanta, sacode a poeira e dê a volta por cima!”. Ninguém diz que muitos ali estão adiando ou disfarçando aquela tristeza que virá, avassaladora, e não os poupará. E, assim, são concretizadas mais essas maneiras de manifestar a obrigatoriedade de o sujeito ser sempre feliz. Um inferno. Não seria mais prático um silêncio presencioso, desses de o amigo sentar-se do lado da pessoa triste e simplesmente estar com ela, se esse for o caso? Ou respeitá-la em seu momento triste? Entristeçamo-nos sempre que a tristeza for inarredável para nós, pois certas dores fazem parte da condição humana! Senti-las é um direito que ninguém pode nos roubar.

Por fim, a vergonha. As pessoas acanhadas, que se sentem envergonhadas diante de atos indecorosos, os quais desonram e jogam muitos no opróbrio, essas pessoas envergonhadas não podem experimentar tal perturbação moral em face do ridículo e da desonra. Não! "Seja caradura! Para que pudor? Deixar o rubor subir à face? Prá quê? Isso é ser tímido e timidez não leva a lugar nenhum. Não se envergonhe porque o melhor é chegar e abafar", é o que nos dizem. Mas, a vergonha pode nos ensinar o respeito humano, esse que impõe limites ao trato interpessoal e social. Se assim é, não sintamos vergonha de sentirmos vergonha. Já reparou o quanto os desavergonhados aprontam e, muitas vezes, espezinham a nossa dignidade?

Se você nunca passou por situações parecidas às descritas acima, em que terceiros ordenam, tiranicamente, a sua felicidade, agradeça! Se já se viu premido por essas atitudes antidemocráticas, some forças na fileira daqueles que não toleram a teatralidade da vida social e teimam em valorizar a autenticidade em todas as suas expressões. Uma prática da micro-política cotidiana mais saudável requer a garantia do direito de sentir. E nós somos seres sentintes. Por isso, vamos sentir! Demo-nos o simples direito de sermos humanos.