O MÍSTICO E A LOUCURA NAS MINAS GERAIS

Leonardo Lisbôa

I. Primeiras considerações:

Na cultura clássica greco-romana havia uma mitologia onde tudo era divinizado para se entender a essência do humano. Entre os muitos mitos havia a crença em Jano, o deus com uma face voltada para frente (presente/futuro) e outra para trás (passado). Isto seria uma alegoria que pode representar a História, se as ciências precisassem de representações alegóricas.

A História, ciência humana que tem um olhar passado para entender o seu olhar presente possui várias vertentes como toda abundante fonte de água que pode ter vários dispersores. Estas vertentes são suas correntes historiográficas.

Destacamos três.

A corrente historiográfica positivista, que é aquela que esteve presente nos livros didáticos brasileiros até meados de 1980. E que propunha a visão da importância dos Heróis, modelos que esta história dava notoriedade para serem admirados e exaltados. É a história linear, do tempo cronológico e que trazia a História da Europa como centro propagador de todos os “fatos” históricos do mundo. È a história esquematizante das causas, desenvolvimento e consequências do fato.

Em meados dos anos da década de 1980 os livros didáticos conheceram a historiografia marxista. A exaltação das lutas de classe como fator de aprimoramento social e com base no determinismo econômico.

No século 20, outra corrente historiográfica que tomou corpo foi a história das mentalidades, proposta por Marc Bloch e Lucien Febvre. O importante é o imaginário, a cultura e o psicológico do coletivo que faz a história. Ou seja, o político, o econômico e o social se fazem marcados de como a sociedade, o grupo, o coletivo enxerga a sua cultura e como esta faz os indivíduos se verem no conjunto.

E é por esta vertente que propomos a presente análise do estudo de caso que ficou conhecido nas Minas Gerais no início do século 19.

II. O caso da Irmã Germana na Serra da Piedade – Minas

Nas Minas Gerais dos tempos coloniais nos últimos anos de setecentos e início dos oitocentos como era o imaginário populesco que vivia à margem das explorações auríferas e de diamantes e das elites intelectuais e religiosas que faziam a Arcádia Mineira, o Barroco das igrejas e que liam, em segredo, os iluministas?

Enfoquemos o caso de uma mulher, que não era escrava, mas não tinha posses. As únicas referências que possuía era aquilo que via nas igrejas e ouvia do sagrado católico romano. O próprio nome que recebera de batismo era a expressão desta religiosidade feita lusitana: Germana Maria da Purificação. Substantivo próprio carregado de elementos que marcaria sua vida, seu psíquico, sua religiosidade regada à superstição que, se pode dizer, introjectara como traçado pelo divino. Este caso é relatado na obra de Auguste Saint-Hilaire e foi estudado pelo Dr. Gomide.

Germana nasceu na efervescência do movimento político que marcaria a mineridade, a Conjuração da Liberdade Ainda que Tardia. Ou seja, dez anos antes (1782) do teatro público que levou ao enforcamento daquele que seria escolhido como conjurado maior ou o maior culpado daquele movimento.

Para Germana, estas questões não tinham importância, pois o que possuía significado para ela era o que seu nome trazia como destino. Ela preferia pensar em sua purificação e quando mais dona de si, do seu imaginário, de sua psiquê, meditar na “Paixão” de Jesus que levaria a sua crucifixão pela humanidade. O teatro que Germana preparava era, portanto, diferente daquele que as autoridades lusas prepararam para Tiradentes.

A beata em questão, que almejara a santidade e que seus contemporâneos, igualmente iletrados e ignorantes (conhecedores apenas do religioso que se firmava e se fazia) a queriam santa.

Seu exemplo, como previra Gomide, chegou a influenciar outras mulheres de igual sorte social a requerer das autoridades civis e eclesiásticas apoio e licença para fundar um abrigo onde pudessem se recolher para viverem como aquela que se se martirizou e teve seus êxtases ali na Serra da Piedade (hoje se localiza o município de Caeté, a 60 km de Belo Horizonte).

O imaginário católico sempre foi marcado por estes “êxtases” que segundo Raphael Bluteau, em seu dicionário, é o fenômeno em que as funções vitais são suspensas e há elevação do espírito abolindo os sentidos, sendo fruto de delírios ou alienação mental.

O espetáculo religioso de Germana na Serra da Piedade levava à ermida erguida no cimo da mesma uma numerosa romaria e despertou a curiosidade de viajantes estrangeiros que visitavam a colônia portuguesa como Auguste de Saint-Hilaire que relataria o fato e outros.

Germana instalou-se na tal ermida que tinha sido o claustro do ermitão Irmão Barcarena que havia falecido. Tinha como companhia uma irmã que lhe assistia fisicamente e a assistência espiritual no vigário de Roças Novas, o padre José Gonçalves.

A beata entregou-se à vida contemplativa naquele ermo pondo-se só em orações, penitências e vigílias noturnas. Sucumbiu-se aos rigores a que se impunha demonstrando sintomas físicos que o povo achava sobrenaturais.

O bispo de Mariana na ocasião tentou interná-la em Macaúbas, proibiu a celebração da missa naquela ermida. “Os devotos, entretanto, não se conformaram com a proibição. Solicitaram diretamente ao soberano a revogação da ordem, sendo prontamente atendidos. Germana, que já se havia retirado da serra, foi novamente levada a sua cela por mãos devotas, fazendo recrudescer com a sua presença o fervor das romarias” (ALVIM).

Entretanto, Germana foi examinada por dois clínicos, os médicos Antônio Pedro de Souza e Manoel Quintão da Silva. Eles, em seus laudos, atestaram a origem sobrenatural dos êxtases da beata. Os dois doutores assim sentenciaram, porque também tinham a sua mentalidade e imaginário regados por este misticismo e religiosidade que se fazia nas Minas Gerais e em todas as terras lusas.

Este parecer clínico sofreu oposição de um outro médico mais comprometido com a ciência e mais lúcido. Porém sabedor que seria criticado pela maioria fanática preferiu o anonimato ao escrever um opúsculo se opondo à crendice daqueles dois peritos.

Não demorou muito para que o autor da impugnação fosse identificado como sendo o Doutor Antônio Gonçalves Gomide que assistia na área influenciada pela beata, mas que publicou seu estudo no Rio de Janeiro, em 1814. Dele se diz que era um homem culto formado pela Universidade de Edimburgo, tinha projeção política e seu artigo é considerado o primeiro documento médico-legal do Brasil.

Neste documento, fartamente endossados com citações científicas da época, Gomide identifica os êxtases de Germana como histerismo que levava a sua catalepsia – estado em que se observa rigidez dos músculos, permanecendo o paciente na posição em que é colocado.

Gomide ainda escreve nos fazendo lembrar: “Todavia as diferentes anomalias da ação nervosa e contração muscular têm em todos os tempos cultos e lugares induzido pessoas ignorantes a acreditar na influência umas vezes de Deus e outras do diabo”.

Assim em terras onde predominava a invocação dos mistérios católicos como a “Paixão de Cristo”, tais histerismo eram creditados à manifestação do divino. Porém, onde o imaginário era impregnado pelo puritanismo protestante, o histerismo era ligado às bruxarias e satanismos. Temática esta já bem explorada pelos cineastas e como ilustração citamos “As bruxas de Salém” que retrata como mulheres histéricas pagaram com suas vidas pelas suas anormalidades mentais por serem vistas associadas às possessões demoníacas.

Segundo dizem, Jean Lhemitte, por exemplo, em sua obra “Místicos e Falsos Místicos” o imaginário religioso é capaz de levar ao histerismo extremo identificado como “Complexo da Crucificação” quando beatas são acometidas de efusões sanguinolentas com os estigmas das chagas de Jesus Cristo. Lhemitte observa que no Oriente não se produzem estigmatizações, “que esta particularidade, é possível, esteja ligada à corte e às diversas maneiras de representações do Cristo. Não descobrimos na arte bizantina a dor que exala dos nossos calvários, dos nossos crucifixos, ou das pinturas realistas dos norte-europeus. Não se experimenta em face do crucificado a compaixão e o sofrimento compartido; o que domina é a grandeza, o esplendor, a majestade daquele que ressuscitou”.

Voltando ao nosso caso de estudo nas Minas Gerais, Gomide advertia, além do mais, para dois males que o espetáculo de Germana poderia acarretar:

O primeiro de ordem econômica fazia que o médico chamasse a atenção para os danos econômicos provocado pela peregrinação dos romeiros até a serra, ao claustro da beata, que interrompiam assim as suas lidas e seu labor engrossando ainda mais seu estado de miserabilidade.

O outro de ordem social-cultural, o cientista advertia contra a vaidade do fanatismo daquela gente desprovida de bom senso onde dizia: “Fazei que vossas mulheres, vossas irmãs, e vossas filhas contemplem na Serra da Piedade o culto tributado à vossa santa, cujos pés e mãos se beijam, cujas relíquias se guardam com veneração; que testemunhem compadecidas e horrorizadas as espantosas convulsões; e tereis a vaidosa satisfação de ver algumas delas, a vosso modo, santificadas”.

Seja como for o caso descrito por Saint-Hilaire em sua obra permitiu deslumbrarmos como o místico nas Minas Gerais influenciava o comportamento da população em Geral.

Também o caso de Germana mostra-nos que no Brasil colonial havia pessoas preparadas para analisar cientificamente dados que fugiam do campo religioso e atingia o psiquiátrico e antropológico como nos expõe o professor Clóvis de Faria Alvim falando de Gomide:

“O opúsculo termina com uma breve exortação aos peritos, contendo ainda em apêndice, como já foi mencionado, um catálogo dos livros em que se encontram casos circunstanciados de catalepsia... Acreditamos suficientemente demonstrado que o Dr. Antônio Gonçalves Gomide, nascido em Minas, em 1770, possuía vastos conhecimentos de Patologia Mental, como era conhecido na época a nossa especialidade, podendo ser considerado, com justiça, o precursor da psiquiatria em nossa terra. Foi contemporâneo de Pinel e de Benjamim Rush, o patriarca da psiquiatria americana. Precedeu de alguns anos o famoso Dr. José Martins da Cruz Jobem, que na cidade do Rio de Janeiro, em 1830, bradou contra o modo desumano de tratamento dado aos alienados”.

O que a História das Mentalidades tem a dizer de nosso tempo do século 21 marcadamente nas suas estruturas culturais por aquilo que se convencionou a chamar de pós-moderno? Isto é enfoque para uma outra analise. Haverá algum estudo de caso como marcou o de Germana naqueles longínquos anos? Certamente que sim.

A História nos dirá.

III. Considerações Finais

Por que a obra de Auguste de Saint-Hilaire (Voyage dans lê district des diamans et sur lê litoral du Brésil-Paris: Gide, 1833) é conhecida apenas pela intelectualidade brasileira?

Porque o Brasil é dado a poucas leituras e ler erudismo francês ou de qualquer outra nacionalidade é um luxo dos acadêmicos.

Por que o opúsculo do Dr. Antônio Gonçalves Gomide é menos conhecido ainda (apesar de ser o primeiro documento médico-legal do Brasil e o precursor oficial de nossa psiquiatria)?

Por vários motivos. Por ser um documento e em um país que pouco conhece a sua literatura pouco se daria ao capricho de ler um ‘Documento’. Por estar voltado para uma área específica – medicina/psiquiátria. E por receber diversas críticas por desmistificar um fenômeno visto com positividade pela religiosidade marcante em nossa cultura; e por ser obra científica que combate a crendice popular que adora o espetáculo supersticioso.

Por que o artigo “Um Precursor da Psiquiatria Mineira” do professor do Departamento de Psiquiatria e Neurologia da Faculdade de Medicina da UFMG (1962) é menos conhecido ainda?

Por causa dos diversos motivos citados acima e por causa de nossa visão cultural ainda embaçada pelo colonialismo – o que é bom é estrangeiro; o que é nacional é duvidoso e, as academias reforçam, o que não é escrito em francês, inglês, alemão, e agora em espanhol, não é tão digno assim, e, mais, o que é da academia é só da academia, ou seja, o popular não entenderia.

BIBLIOGRAFIA

1) ALGRANTI, L.M. Honradas e Devotas: mulheres da Colônia, condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: José Olympio, Brasília: Ed UNB, 1993.

2) ALVIM, Clóvis de faria. Um Precursor da Psiquiatria Mineira. Revista da UFMG. 1962. 12:234-250.

3) GOMIDE, A.G. Impugnação Analítica ao exame feito pelos Clínicos Antônio Pedro de Souza e Manoel Quintão da Silva em uma mulher que julgam Santa na Capela de Nossa Senhora da Piedade da Serra – (Rio de Janeiro, 1814). In: Um Opúsculo Precioso. Revista do Arquivo Público Mineiro, Fascículo I ao IV, 1906. Belo Horizonte. P. 759-774.

4) LHEMITTE, Jean – Mystiques et Faux Mystiques. Paris: Bloud e Gay, 1952.

5) SAINT-HILAIRE, A. Viagens pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil – São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1941. Coleção brasileira, Vol.210, p.100.

6) SCHUMAHER, S. In: Brazil, E.V. (Org). Dicionário de mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade. Biográfico e ilustrado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

FILMOGRAFIA

1) As Bruxas de Salém – Nicholas Hytner.

2) O exorcismo de Emily rose – Scott Derrickson.

3) Ritual – Mikael Hafstöm.

L.L. Bcena, 15/07/2011

Leonardo Lisbôa
Enviado por Leonardo Lisbôa em 15/07/2011
Reeditado em 16/07/2011
Código do texto: T3097706
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