A mitologia do amor romântico

Wilson Correia

“Faz parte da essência do amor pretender amar sempre, mas, de fato, amar apenas por um tempo” (Clément Rosset).

Alheio a essa epígrafe, quem embarca no amor romântico alimenta uma mitologia nascida do poder da imaginação, a qual possibilita idealizar excessivamente a pessoa amada e a relação possível a ser vivida com ela.

Essa mitologia sobre o amor romântico, provisória e precária, apresenta regras que desconhecem até a sanidade. Mas ela não está completa. Ajuda, apenas, a principiar o ato de pensar sobre o assunto.

Que outros mitos possam ser acrescidos ao esse decálogo. Cada um de nós, herdeiros da Modernidade que inventou o amor romântico, sempre tem algo para contar sobre essa matéria, seja teórica ou empiricamente experimentada.

Vamos aos dez mitos que pude registrar!

1 Univocidade

Nascido nas sociedades modernas ocidentais, o amor romântico é a potência psíquica consubstanciadora de um modo característico de “ser” e “estar” no mundo, afetando a vida pessoal e social. Quem dele se reveste, crê na univocidade da palavra “amor”, aglutinação de sofrimento e impossibilidade. Idealizado como processo de fusão com outro, ele não admite a pluralidade sentimental, essa que, por exemplo, os gregos nomeavam com as palavras: “ágape”, amor desinteressado; “cháris”, sentimento segundo o qual se deve tratar o outro com “caridade”; “ennóia”, o devotamento entre diferentes; “Eros”, o amor sexual; “mania”, a paixão descarrilada, ladeira abaixo, acima, em todas as direções; “páthos”, o sofrimento originário do desejo; “phylia”, a amizade pela amizade; “storgé”, a ternura entre dois seres humanos. O sentido único e dogmático parece ser a marca fundamental do amor romântico.

2 Unicidade

Não admitindo a multiplicidade, o amor romântico é totalizante e totalitário. Ele se estabelece sob a égide do “único”. Nessa modalidade de amar, ama-se apenas uma única pessoa, à qual se deve prestar total exclusividade e fidelidade. Fora da fé no “único” não há salvação. O autoritarismo unicizante é uma das mais pronunciadas características verificadas em contextos sob a influência do amor romântico.

3 Dependência

É o lamentoso, infantil e imaturo “Sem você não sei viver”. Aí a pessoa romântica, imperativa, deposita no ser amado a primeira e a última chances. As possibilidades existentes entre a primeira e a segunda, também. Sob o amor romântico, o amante abre mão de ser sujeito de si e compreende que apenas no outro pode ser alguém.

4 Ataraxia

O amor romântico requer o ser amado canalizando o próprio desejo ao “um” e alcance a ataraxia própria dos deuses, exigindo que o desejo por mais pessoas seja completamente aniquilado. O amor romântico vai contra a natureza e afronta a força mais forte do universo proveniente da libido.

5 Durabilidade

No contexto do amor romântico, só a morte biológica deve separar os amantes. Nem se cogita que essa morte possa ser do desejo, do interesse, do projeto e do propósito da vida em comum. Sob o amor romântico enfraquece-se o entendimento de que tudo na vida tem início, meio e fim.

6 Onipresença

O sujeito tomado pelo amor romântico torna-se um controlador de mão cheia e não consegue fazer as próprias coisas sem a presença do ser amado. É como se um cordão umbilical invisível se estendesse entre a barriga de um e outro, diuturnamente. O amor romântico embaralha as identidades.

7 Onisciência

Nas relações balizadas pelo amor romântico há a pressuposição de que o amor ensina tudo, corrige tudo, tudo pode curar. Pode, inclusive, fazer o outro do vínculo um conhecedor absoluto daquilo que vai pela “minha mente e coração”. É como se o amor romântico tivesse o condão de fazer um adivinhar pensamentos, sentimentos e vontades que o outro alimenta ou venha a alimentar. No amor romântico não há espaço para o ignorar.

8 Certeza

As populares “Almas gêmeas”, o vulgo “Todo caldeirão tem sua tampa” e o surrado “Há pessoa certa para cada um” expressam bem essa idealização das relações afetivas. É como se pessoas, múltiplas em si mesmas, fossem feitas à imagem e semelhança da dupla “Porca e Parafuso”. O amor romântico é determinista e, como tal, não vislumbra qualquer chance de a liberdade prosperar.

9 Projeção

O que um é, sente, pensa, escolhe e faz não são, de fato, escolhas dele, mas, sim, atributos do movimento imagético que o outro da relação romântica lhe dá. O romântico só vê no outro o que quer ver porque vê nele a imagem que construiu para o ser amado. É a pura perfeição. O amor romântico leva um a amar a idealização do outro, e não ao que o outro realmente é.

10 Egotismo

O amante que ama segundo os imperativos do amor romântico não vê outra saída para o ser amado se não for “em minha direção”. É como se esse amante dissesse: “Você é meu e deve viver inteiramente para mim”. O amor romântico transforma pessoas em propriedade.

Enfim, não há como estranhar quando o amor romântico cobra nosso sangue (às vezes, nossa vida) como paga pelo gozo que nos oferece. Ele está plasmado sob o signo tóxico, destrutivo e mortal.

Sob o amor romântico, a qualquer hora, alguma coisa ou algum ser atrai a morte. Não é isso o que a experiência teima em nos ensinar?