Tive um sonho...

Sonhei que eu estava sendo diplomado Presidente da República.Isso mesmo. Lá estava eu já com a faixa pendurada ao peito, num enorme salão. Não era oval, mas era bem grande. Grande quantidade de gente. Jornalistas, políticos, senhoras de vestidos longos, gente se empurrando educadamente para poder chegar mais perto de mim, me abraçar, me parabenizar, dar tapinhas nas costas, etc. Identifiquei alguns desafetos, que ainda há uns dias atrás me chamavam de ladrão para baixo, e agora me acenavam, me davam piscadelas de cumplicidade, gestos quase comprometedores. Muitos que se aproximavam, me falavam coisas como “Excelência, se me permite, aqui está meu cartão. Sou tio do deputado Agripanta, que sempre vos apoiou, e penso ser um bom nome para a pasta da...”.

Antes que aquele terminasse, já estava um outro, tal “papagaio de pirata”, “Presidente, represento o bloco de parlamentares que muito vos apoiou na campanha, mesmo que lá no sul o pessoal preferiu o outro candidato, mas nós gostaríamos de fechar com Vossa Excelência...”.

E já tendo sido empurrado por outro deputado, que tentou falar qualquer coisa sobre criar um ministério para um correligionário que não se elegeu, dei uns dois passos para o lado, me escapando daquela cantilena. Mas qual: assim que consegui me aprumar, lá estava um embaixador louco para mudar de país, já que naquele que ele servia a embaixada era muito velha.

Já não agüentando mais os flashes das máquinas fotográficas e o calor enorme gerado pelos holofotes, além dos discursos acalorados sobre a eleição de um homem do povo, eu é claro, para o fortalecimento das instituições democráticas e blábláblá, tive uma idéia! Aos empurrões, com licenças, me permite, dá uma chegadinha aí senador, posso passar senhor empreiteiro, consegui entrar numa salinha daquelas onde guardam as coisas do expediente do palácio. Ali, escondido, sem nem a minha mulher Marilda me falando coisas nos ouvidos, decidi dar uns telefonemas usando meu celular especial à prova de grampos.

Dei curso, então, à idéia brilhante que me ocorrera lá no salão quase oval e cheio de bajuladores, interesseiros de toda espécie, empreiteiros, estrangeiros, gregos, baianos, troianos e goianos. Telefonei para umas pessoas, que eu tinha certeza me apoiariam na tarefa de por em prática a minha idéia. Saí, às escondidas pelos fundos, e alguns minutos depois já me reunia com as pessoas que eu chamara. Falei para a primeira pessoa: “Madre, posso contar com a senhora e sua congregação para o meu plano de reconstruir o país?” E para a outra pessoa perguntei: ”General, posso contar com o senhor...”, antes de terminar me disse ele: “claro, não só comigo mas com meus colegas das outras armas...” e assim fui perguntando para os economistas, técnicos, todos estes de minha confiança é claro, além de uns padres e pastores, e outros rabinos que também convidei.

Expus minha idéia que já se tornava, com a ajuda deles, um plano. Comecei: “Senhores e senhoras, vou tentar moralizar este país, e para isso só há uma maneira: mexer nos poderes da República, a começar pelo Legislativo. Imaginem que nem estava empossado ainda e já tinha uma renca de depurados e senadores, além de outros abutres a me pedirem coisas. Já saiu nos jornais que não vou conseguir governar se não obtiver maioria no congresso. Para isso vai começar aquela coisa do toma lá da cá, isso se eu não tiver que comprar uma porção deles com cargos, dinheiro, nomeações para parentes, canais de rádio e televisão, coisa que já foi muito usada como moeda de troca. Alem disso, tenho aqui os números oficiais do Poder Legislativo em todo este país: são exatos: 51.748 vereadores; 1.054 deputados estaduais; 513 deputados federais; 81 senadores. Vejam, senhores, que isso dá um total de 53.396 pessoas fazendo leis. É na minha opinião de homem do povo, sem instrução secundária, operário que veio lá do nordeste num pau de arara, gente demais fazendo leis demais.”

Quando falei dos números, as freiras, os religiosos e generais presentes ficaram boquiabertos. Surpresos. Apenas um ou dois economistas tinham uma idéia do total de legisladores. Além disso, prossegui: “Toda essa gente tem no mínimo uns 10 assessores, o que aumenta o total de pessoas mamando nas tetas do Poder Legislativo, em mais de 530.000. E tem mais: se eu conseguir esse meu intento, vamos desativar 5.567 prédios das câmaras de vereadores, 27 Assembléias Legislativas, mais o Congresso Nacional. Isso vai dar uma economia desgraçada de grande de energia, telefone, salários, manutenção, viaturas oficiais, material de expediente, etc, etc. Só para cada Senador, o poder Executivo vai pagar mais de R$ l20.000,00 reais por mês. Cada deputado federal vai custar mais de R$ 60.000,00 por mês, além de todos os deputados estaduais e demais vereadores. Assim sendo, se os senhores me apoiarem, vou fechar o Poder Legislativo em todo o país. Como? Criando um decreto que se chamará Ação Conjunta Moralizadora que terá sigla ACM, para facilitar”. Nisso, alguém ali presente argumentou que aquela sigla já ia gerar problemas, visto que era uma sigla ligada a maus feitos, malvadezas antigas, coronelismo, e que seria melhor não usá-la. Foi sugerido então e apoiado por todos, inclusive por mim, MRM – Movimento de Reconstrução Moral.

Estava criado um novo movimento para dar um jeito definitivo no país. Mas, eu não ia ser um ditador, nem torturador, nada disso. Eu era apenas o salvador. As freiras iam cuidar dos hospitais que eu construiria dali para frente, com o dinheiro economizado e atualmente jogado fora para sustentar parlamentares que, já se sabe, não valem a pena. Os religiosos iam atuar junto com os economistas, para que os números fossem justos e sérios. E os militares, por dever de oficio, já que eram meus comandados, ficariam prontos para intervir caso alguém não concordasse com minhas idéias. Mas, eu já deixava bem claro, que esta minha atitude nada tinha a ver com morales, chaves e kirshners da vida. Eles que não se metessem. Era uma coisa só nossa intra-fronteiras. Afinal, este país não é nenhuma republiqueta de bananas para um ditadorzinho qualquer fechar poderes. A minha causa era nobilíssima: SALVAR O PAÍS. Além do mais, o George que não interferisse, pois já que eu estava invocado, ia fechar o Legislativo e fim de papo. Pois assim foi. Mandei recados sigilosos para os prefeitos e governadores para que não repassassem verbas para vereadores e deputados. Quando os federais e senadores se deram conta, já não conseguiram entrar na Câmara e no Senado. Os 432 apartamentos funcionais já estavam devidamente lacrados. Os móveis, propriedade do povo, foram vendidos. Os apartamentos, alugados. As residências oficiais foram alugadas para empresas estrangeiras que pagavam em reais, a minha moeda forte. Sem falar da venda dos carros oficiais, que gerou mais de um bilhão.

No primeiro mês, houve grandes bate-bocas. Alguns esboçavam reações iradas, mas já não tinham acesso às rádios e televisões e ficavam falando sozinhos. Outros, mais afoitos, me ameaçavam de morte, mas ao verem os generais com suas espadas, desistiam. E aqueles da oposição de discurso, começaram a me chamar pelo apelido de Lelé. “Este presidente está lelé da cuca!!”. Pois não me importava. Fosse eu lelé da cuca, da mulesta, duma gota serena, do pajeú das flores, não me importava.

No segundo mês de fechamento do esquema, a caixinha que eu chamei de CAIXA DE SALVAÇÃO DO MRM, já tinha juntado mais de 900 milhões de reais. Pus mãos à obra. No fim do terceiro mês já estavam em andamento as construções de 30 novos hospitais e uns 300 postos de saúde, onde os prefeitos, em vez de darem dinheiro para aqueles 21 vereadores de seus municípios, estavam aplicando em melhor atendimento à população. Com a economia das verbas de representação dos deputados federais, eu já tinha incluído na merenda escolar uma maçã e uma banana, além de melhorar a sopa de legumes com carne de primeira. Com a economia das passagens aéreas, mais escolas estavam sendo reformadas. Os tetos iam parar de cair nas cabeças das crianças.

No fim do sexto mês, já que aqueles 53.396 fazedores de leis viram que o negócio não tinha mais volta, resolveram trabalhar. Eles e os seus mais 500 mil assessores. Alguns conhecidos senadores e deputados que nunca tinham trabalhado tiveram problemas psicológicos, e desesperados quase se mataram. Com quase todos trabalhando, o PIB cresceu bastante. Muitos voltaram a ser médicos, dentistas, advogados, comerciantes, pois perceberam o que já sabiam: não tinha sentido todo aquele Poder Legislativo num país onde nem leis se cumprem. Num país onde pessoas moram nas mais de 4.000 favelas existentes. Onde um pai de família ganha uma merreca de R$ 350,00 reais por mês. Num país onde sobram doentes e faltam hospitais. No final do primeiro ano já tínhamos, no meu país, mais de l0.000 km de estradas pavimentadas ou repavimentadas. Porque também surgiram fatos novos: com a minha decisão de fechar o Legislativo, também o Executivo começou a entrar nos eixos. Em vez de eu dar ouvidos a assessores e criar ministérios para os companheiros, ao contrário: passei a fechá-los. Economizei um montão de dinheiro e a turma das autarquias começou a ficar com medo de mim, e então diminuiu o roubo naquela que aposenta os velhinhos com merrecas. O pessoal das licitações passou a entrar na linha, as ambulâncias passaram custar bem menos, desapareceram as notas frias, os super faturamentos, etc, etc. Dos 1.300.000 servidores federais, consegui, no meu sonho, reduzir mais de 400.000, e a máquina funcionou perfeitamente igual.

Assim ia meu sonho, lindo, lindo. Lá pelo final do meu terceiro ano de mandato, já tínhamos construído 390.000 casas populares com água, esgoto e luz elétrica. Terminamos 1.600 hospitais e, com as freiras no comando, se rezava mais e se desperdiçava menos. Esparadrapos, mercúrios, gazes, comprimidos, comadres, enfim, tudo era economizado sob meu comando e o delas. Terminei com aquele tal imposto de contribuição das emissões de cheques, que era para a saúde, e que nunca foi usado para tal.

Já bem andado o meu quarto ano de mandato, vinham comissões do mundo todo ver aquela maravilha de país. Gente da Dinamarca, Suécia, Suíça, Inglaterra vinha ver como um nordestino como eu tinha conseguido ajeitar aquela miscelânea de mais de 500 anos. Sem falar de gente da África e da Ásia que também vinha. Os primeiros vinham para admirar, e os demais para aprender. Tinha chegado uma nova era. Já no final do meu mandato, faltando apenas 10 dias para passar a faixa, o país entrou em polvorosa. Começou um movimento nacional chamado VC – Vigília Cívica. Como minha popularidade estava altíssima, batendo nos 100%, depois de pedidos emocionados dos meus assessores e ministros, que tinham acabado de chegar ao palácio numa van alugada, decidi continuar mais quatro anos. Mas isso por amor a este país. Meus assessores ainda não sabiam, mas eu ia lhes fazer outra surpresa: já estava tudo pronto para eu começar a mexer “naquele” outro poder que ainda estava intacto, aquele da “caixa preta”. Quando comecei um discurso de improviso, de minha própria autoria, dizendo assim: “SE É PARA O BEM DE TODOS E FELICIDADE GERAL DA NAÇÃO, DIGAM AO POVO QUE...”, bem nesse exato momento minha mulher me acordou: “Raimundo, acorda homi, num vê que é segunda e nóis tamo com as conta tudo atrasada? E acabou o gais bem na hora de passá o café. E na televisão tá dando uns negócio com os deputado. Se bem entendi, é uma questã dum aumento prá todo mundo...”

Que pena. Foi só um sonho. Acordei, levantei e pensei numa ponte bem alta, com um rio bem seco e cheio de pedras lá embaixo...

Matogrosso
Enviado por Matogrosso em 17/12/2006
Reeditado em 18/12/2006
Código do texto: T321064