A vida passa na esteira.

A questão é que as coisas acontecem de maneira tão rápida, que você não tem nem tempo para pensar direito. Digo isso porque fui visitar um amigo que trabalha com produtos e objetos reciclados e recicláveis. Dono de um galpão enorme, onde cabem folgados tres caminhões. Dos grandes. Uma esteira comprida, por onde passam à frente de funcionários atentos, objetos de todos os tipos. Estes, na sua maioria senhoras, com mãos ágeis de luvas, máscaras daquelas tipo cirúrgicas no rosto, reviram tudo de maneira a irem separando coisas. Vidros, plásticos, papéis, tecidos, braços de bonecas, fitas cassetes se desenrolando, sacos plásticos, pedaços de vidro, meio travesseiro, e por aí vai passando a esteira com sua carga pitoresca de coisas que, um dia, já serviram para algo. Já foram novas, já foram presentes, já deram alegrias e utilidades. Agora, passam ali, mortas naquela esteira barulhenta. Autorizado que fui pelo dono, encetei conversa com uma velha magrinha, turbante na cabeça, sem máscara, sem luvas e para completar com um cigarro palheiro no canto da boca murcha. "E aí, tia podemos trabalhar sem proteção?" Ela, me olhando meio de lado, meio não me olhando perguntou: "O moço é fiscal, que mal lhe pergunte?" Eu, dei uma olhada na parede, lá em frente, e tinha um cartaz de todo tamanho EXPRESSAMENTE PROIBIDO FUMAR, e engatei "Não tia, não sou fiscal, que nada. Sou amigo do seu Carlos, e estou fazendo uma visita por pura curiosidade. Além do mais, me preocupa o seu cigarrinho aí. Vá que esta geringonça toda pegue fogo. Já imaginou?" Ela parou de escrafunchar na esteira, bateu às mãos como para tirar o pó, e me convidou para ir com ela para uma outra parte do galpão. Ali, o ruído era menor e ela me sentenciou: "Sou a funçonária mais véia que o seu Carlos tem. Nunca fartei um dia só de trabaiá. Mas tem um acordo entre nóis: Num uso máscara nem luva que me deixa nervosa, e fumo meu paiêro sempre que quero. E pronto". Diante disso tratei de lhe dar razão, afinal essas coisas de máscaras, luvas, proibido fumar é tudo frescura. Segundo ela me ensinou depois, coisa de fiscal do governo que vem "só pra pegá dinhêro" Mas, nessa outra parte do galpão dos recicláveis, havia uma pilha das mais variadas coisas que iam sendo separadas na esteira, ou que os catadores já traziam separados da rua. Achei ali um porta-retratos, ainda com a foto do casal, no casamento, datada de 1912. Quem jogaria fora os pais, ou talvez avós, ou quem sabe bisavós? "Falta de respeito" ensinou a velhota. Me pegando pelo braço, me levou a um canto onde haviam livros e mais livros jogados. De "a gata triste" até uma bíblia faltando a metade. Livros e mais livros. "A senhora nem pode imaginar o valor que um dia já tiveram esses livros", arrisquei eu posando de sábio. "Será que eles eram mais importantes que os véinhos do quadro?", me disse ela no ato. Eu ia dizer qualquer coisa, mas ela "Moço, eu só num tenho estudo mas sei como as coisa funciona. Vai tudo pro mesmo fim: seja livro, gente, prástico, pano, tudo. Antigamente rico é que podia tê livro, podia estudá. Hoje, eles tem computadô. O moço nem imagina os pedaço de computadô que nóis acha na estêra. Então continua como nos antigamente: vai tudo pro lixo, no fim das conta..." Como as coisas acontecem assim, tão rapidamente? Havia ali uma enciclopédia quase completa, onde, em um dos volumes meio entreaberto o Alexandre, o Grande montava seu cavalo bucéfalo. Também vi, depois de remexer outro volume com o pé, a clorofila, o verde das árvores e a foto síntese. Além de dar uma espiada, lá na frente em alguns moluscos, uns vertebrados e invertebrados. No volume de número 21, tinha o Voltaire lá com suas mangas cheias de rendas. Continuei andando e fuçando nas coisas, sempre acompanhado da velha. Perguntei seu nome, e ela "Assunção, mas pode me chamá de Sunça". "Pois é, dona Sunça, aqui neste lugar é que a gente percebe que muita coisa na vida é passageira". "Muita coisa nada sô, tudo na vida é passagêro. Tudo. Tem prá mais de 14 ano que eu trabaio aqui mais o seu Carlo. Pregunta prá êle: nóis já achemo aqui de um tudo. Dinhêro, jóia de valô, um dedo de gente branco bem grandão, um revórvi, já achêmo uns documento de casa, uma tar de escritura, coisa de muito valô mesmo." E eu, surpreso, perguntei qual era o destino de tanta coisa diferente. E ela, meio rindo "O destino é o mesmo, tanto prum dedo como pruma jóia que tá no lixo recicráver: o fim. É o fim de tudo, moço. As jóia é vendida e dividido o dinhêro cum nóis. Os dinhêro também. Agora o dedo nóis num dividiu não". E deu uma gargalhada. Continuamos olhando os livros. Olha, não quero exagerar, mas havia ali, no mínimo mais de mil livros. Quando o seu Carlos veio se juntar a nós, se referindo à dona Sunta como o seu braço direito e coisa e tal, ela riu e disse: "Eu pensei de primeiro que esse era também fiscar do governo. Mas, adepois, vi que êle nem prá fiscar serve. Imagina o sinhô, seu Carlo, que êle ainda se emociona: é cum casal no retrato, é cum livro empilhado, ainda fais cara de triste quando eu digo prá êle que tudo vai pro mesmo fim. O sinhô imagina que essa criatura ainda tá preocupada se eu uso máscara, luva ou se fumo meu paiêro? Tem que chamá êle mais veis aqui, seu Carlo. Pode sê que nesse dia nóis achêmo um dedo na stêra, ou tarvez um bom dinhêro. Lembra?" E foi voltando para o outro lado do galpão, para junto da esteira. E o meu amigo Carlos, entre risonho e triste apenas disse: "Viu?"

Matogrosso
Enviado por Matogrosso em 24/12/2006
Reeditado em 24/12/2006
Código do texto: T327269