Inclusão digital: algumas promessas e muitos desafios

A chamada sociedade da informação e do conhecimento traz consigo impactos sociais capazes de levar a uma transformação maior que a produzida pela máquina a vapor. Um mundo baseado cada vez mais na troca de valores simbólicos, do dinheiro à informação, vai mudar o eixo da economia, acabar com o conceito atual de trabalho, valorizar mais que tudo o conhecimento e a aprendizagem. Neste contexto, os excluídos sê-lo-ão ainda mais, se não houverem políticas e ações visando combater o aprofundamento da clivagem social trazida pelas novas tecnologias.

A tecnologia em si não é boa ou ruim, mas amplifica e potencializa a ação humana, tal como um megafone pode fazer o bom cantor alegrar multidões e o desafinado incomodar muito mais gente! Inclusão digital pressupõe uma série de outros objetivos conexos que não os meramente tecnológicos, podendo ser uma ação comparada ao “cavalo de Tróia”, que, após permitir a penetração das muralhas antes indevassáveis da cidade, em seu bojo carregava guerreiros sabedores de qual estratégia implementar.

Segundo Fredric Litto, coordenador científico da Escola do Futuro da USP, “organizações locais devem ser envolvidas e comprometidas com o sucesso do projeto desde o seu início, incluindo responsabilidade para o design, operação e produção de conteúdo; a estratégia apropriada para essa transferência de tecnologia tem de ser voltada para o desenvolvimento local de capacidade e autonomia”.

O Centro de Inclusão Digital e Educação Comunitária, CIDEC, da Escola do Futuro da USP tem entre seus objetivos o acompanhamento, estudo e debate de todas as experiências de inclusão digital no país e no mundo, mas também leva a cabo uma importante tarefa prática, que é a capacitação e gerenciamento de competências dos monitores de cinqüenta infocentros do Programa Acessa São Paulo. As considerações a seguir, na forma de três itens que, longe de esgotar o assunto, levantam algumas preocupações básicas, são embasadas nesta experiência prática e norteadas pelas formulações metodológicas construídas em mais de uma década de experiência da Escola do Futuro com aplicações da tecnologia em ambientes de aprendizagem.

A “maldição” dos cursos

A primeira expectativa de lideranças e usuários em relação aos projetos de inclusão digital é a da realização de cursos. Um lugar que reúne uma dezena de computadores serve para que outra coisa além de realizar cursos? Cursos de quê? Windows, Word, Excel, claro! E para que serviriam tais cursos? Para se obter um certificado, um diploma. Obviamente este destina-se a obter emprego, ou melhoria da condição profissional dentro de um já existente. Este é o grande desafio: combater a “maldição” do formato taylorista e fordista de transmissão de informações, que não assegura a construção do conhecimento e, ao contrário, promete demagogicamente uma capacitação que o formato de tempo disponível e a qualificação dos envolvidos não atende. Claro que um telecentro é um espaço de aprendizagem, mas a mesma dá-se de forma diferenciada do ambiente escolar, da sala de aula. Ocorre na resolução de problemas significativos, com apoio de monitores e com a participação dos demais usuários, numa verdadeira rede local humana de aprendizagem cooperativa, focada nos contextos significativos do uso das aplicações, sejam elas navegar na internet para fazer um boletim eletrônico ou tirar uma segunda via de conta telefônica ou usar um processador de textos para redigir o currículo e enviá-lo por e-mail. Cada uma destas tarefas exige um acompanhamento pedagógico individualizado que não pode ser feito na forma de curso, embora este último atenda as expectativas imediatas de usuários e a distribuição de certificados mostre mais rapidamente um resultado, porém muito mais próximo da demagogia do que da real apropriação do conteúdo.

O ambiente de um centro de inclusão digital

Geralmente um telecentro ou infocentro possui dez computadores e um servidor, conectados em rede e ligados em banda larga à Internet. Aliás, hoje em dia não faz o menor sentido ter computadores sem conexão na rede mundial e experiências até bem intencionadas de reaproveitamento de lixo tecnológico que não levem isso em consideração acabam não promovendo inclusão mas sim funcionando como uma esmola tecnológica, uma sopa dos pobres da era da informática. Mas não basta esse ambiente, que deve ser enriquecido com impressora, webcam, possuir acesso individual a multimídia etc. É fundamental que faça parte desse espaço uma outra sala sem computadores, com cadeiras e mesas, com estantes e publicações, com murais de cortiça, com área para os usuários esperarem e fazerem algo útil conexo às atividades ali desenvolvidas, onde ocorra troca e socialização. Como geralmente o tempo de uso do computador, dada a enorme procura, é cerca de meia-hora para cada usuário, convém que um desempregado que vá fazer seu currículo no micro antes o rascunhe em papel, e nesse espaço fora do laboratório ele pode obter auxílios de quem tem mais experiência. Ou uma senhora que ache receitas de culinária interessantes na Internet e as imprima pode depois compartilhá-las com suas amigas. Links e dicas de sites podem ser afixados nos murais e, acima de tudo, a troca de calor humano, piadas, histórias do dia-a-dia fazem com que a tecnologia seja mais uma ferramenta de troca humana e que seja apropriada como tal. Num ambiente destes ocorre a multiplicação e democratização do acesso à informação mesmo para os que ainda não mexem no computador, ampliando enormemente o alcance da inclusão digital. Se junto com isto houver uma sala de aula em anexo, então nela podem ocorrer alguns dos cursos que criticamos acima, mas que em adequado ambiente podem ser altamente desejáveis.

Inclusão também dos não-excluídos

Sempre que se fala em inclusão digital pensamos nas classes C, D e E. Obviamente este é o foco principal, mas para atingir tal objetivo é importante não esquecer que qualquer ação completa deve ser integradora e potencializar outros segmentos da sociedade, pois a cidadania é alcançada digitalmente quando a rede é tecida incluindo excluídos e não-excluídos. Assim, no centro físico de inclusão, seja um telecentro, infocentro ou outra designação, é desejável que jovens que possuem micro em casa o freqüentem, pois estes poderão ser de inestimável ajuda nas tarefas impossíveis de serem levadas somente pelos monitores, que adultos dominando diversos campos do conhecimento colaborem como voluntários, principalmente se também forem usuários, esporádicos ou não. Outro aspecto da “inclusão dos não-excluídos” é o da geração e captação de conteúdos em língua portuguesa. Segundo dados do Ministério da Ciência e Tecnologia, aproximadamente apenas 2% dos conteúdos da Internet mundial são em língua portuguesa, contra cerca de 5% em língua espanhola. Mais importante que a criação de novos conteúdos deve ser a captação dos já existentes, considerando três eixos: diversidade de conteúdos, convergência de mídias e formação de redes e comunidades. As ações de inclusão digital devem incluir empresas, entidades sociais, intelectuais, estudantes, empresários, políticos, militares, sindicalistas, jovens, pessoas da terceira idade, portadores de deficiências, homens e mulheres, tanto usuários como, principalmente, produtores de conteúdo. Afinal, não basta apenas surfar na Internet: também é preciso aprender a fazer onda!

Em recente pesquisa feita pela Escola do Futuro da USP, em parceria com o instituto de pesquisa Insight, para o programa Acessa São Paulo, sob o tema “necessidades informacionais da população de periferia de São Paulo”, identificamos que 90% (sic) da população pesquisada, das classes C, D e E, já ouviram falar e sabem o que é a Internet, ao passo que 79% nunca usaram um computador (destes, 93% declararam desejar aprender a fazê-lo). Quanto aos conteúdos e serviços considerados mais importantes para possível uso da internet, 81% afirmaram desejar marcar consultas médicas, descobrir endereços de hospitais ou postos de saúde, tirar dúvidas sobre doenças, tratamentos e outras questões de saúde; 79% para procurar emprego, saber de vagas de trabalho, preparar currículo; e 75% para reclamar ou se informar sobre serviços públicos, impostos, luz, asfalto etc.

Num mundo em transformação, onde cada vez mais o computador é o veículo de transporte da mente e um instrumento essencial de trabalho, não podemos preparar as novas gerações para um mundo de subalternidade, tanto do ponto de vista individual quanto na perspectiva da nação. Assim, é necessário frisar que inclusão digital não é apenas ensinar a utilização da tecnologia ou disponibilizar o acesso à rede: é preciso haver um trabalho de identificar as demandas informacionais, como as listadas na pesquisa acima citada. A produção de conteúdos deve ser vista como uma estratégia importante no processo de Inclusão, somando-se aos demais esforços, como formação e capacitação de multiplicadores, criação de redes locais e comunidades virtuais, bem como integração com políticas públicas e ações de responsabilidade social.