O fim da grande boca livre no Buffet Planeta Terra

Por Rogerio Ruschel (*)

O ser humano sempre gostou de ensinar lições de moral e ética inventando fábulas; vamos, portanto, a uma delas. Podemos comparar a utilização dos recursos de nosso planeta pelo Homo sapiens à velha história da Festa no Céu: uma grande boca livre no Buffet Planeta Terra, onde os convidados comem e bebem tudo que podem, sem se preocupar com quem paga a conta, com o desperdício, nem com quem vai limpar o salão. Na varanda alguns convidados enchem os bolsos com tudo o que encontram na casa, inclusive objetos de decoração. Do lado de fora dos portões quem não foi convidado - a esmagadora maioria dos bichos - está ansiosa para participar e percebem-se tumultos na recepção.

Enquanto isto cozinheiros e garçons se dão conta de que está acabando a comida e a bebida (os recursos hídricos, as matérias-primas, a energia, etc). Eles sabem que algo precisa ser feito antes que os convidados, ao se darem conta de que a comida está diminuindo, por um instinto animal de sobrevivência acionem a síndrome atávica de escorpião começando a injetar veneno uns nos outros para eliminar a concorrência, mesmo que isto lhes custe a própria vida. O dono da casa – que criou a bicharada toda - está arrependidíssimo, e já decidiu: na próxima festa vai selecionar melhor os convidados.

Pois estes somos nós, humanos, e esta é a festa que estamos fazendo aqui no Buffet Planeta Terra. Todos nesta festa se acham com o direito de encher a barriga, e a grande maioria ainda não entendeu o nervosismo dos garçons. Poucos, mas muito poucos mesmo, perceberam que daqui a pouco a festa vai acabar - e um punhado de bem intencionados, preocupados, se propõe a fazer uma barricada na porta da despensa para conservar o resto dos recursos.

Os primeiros avisos de fim de festa surgiram quando o biólogo Ernest Haenckel, em 1866, conceituou os limites de uma nova área de estudos, a Ecologia. Com o passar dos anos – e a degradação crescente dos recursos naturais causada pelo aumento da população mundial - esta palavra que originalmente designava uma ciência, foi recebendo novos sentidos ou dimensões como o Conservacionismo, em 1896, com a criação do Yosemite, o primeiro parque nacional do mundo; a Ecologia Social, em 1962, a partir do livro-denúncia de Rachel Carson sobre o uso de agrotóxicos, e a conceituação do modelo de Desenvolvimento Sustentado, em 1987, pela Comissão Bruntland, da ONU, no relatório “Nosso Futuro Comum”. Assim, em pouco mais de 100 anos fomos do Paraíso para o Inferno, e vivemos uma situação que já foi retratado por imagens deprimentes, como esta:


O Desenvolvimento Sustentado

Atualmente Ecologia, mais do que nome de ciência, é base de uma definição política, econômica, científica, social e cultural revolucionária - o modelo de Desenvolvimento Sustentado (ou Sustentável) definido, básicamente, como “o modelo de desenvolvimento que permite qualidade de vida para esta e para as futuras gerações”. É uma nova regulagem da Máquina do Desenvolvimento - que precisa ser feita pelos participantes da festa no Buffet Planeta Terra.

O Modelo de Desenvolvimento Sustentado é um conceito abstrato que se concretiza na forma de iniciativas. Para torná-lo menos abstrato no seu nível mais operacional – o processo produtivo industrial – talvez ajude imaginarmos uma visão gráfica do mesmo.


Visualizando um conceito

A visão simplificada do modelo de desenvolvimento “antigo” – aquele baseado nas tecnologias duras – é a que está dentro do quadro menor, com linhas vermelhas. Aplicando-se Capital, Trabalho e Tecnologia sobre os Recursos que dispomos, produzimos Bens, que teóricamente geram Desenvolvimento. Neste processo industrial geram-se Resíduos, ou Poluição. Simples. E destrutivo.

Para inserir conceitos de sustentabilidade neste processo agressivo e injusto, precisamos ampliar o quadro – e o novo quadro, delimitado pela linha azul, é o cenário simplificado do modelo de Desenvolvimento Sustentado. Neste contexto, o desenvolvimento sustentado em um processo industrial é, antes de qualquer coisa, entender os Resíduos, os “restos do progresso” como parte da solução de nossos problemas. Numa visão de sustentabilidade, estes “restos” precisam ser entendidos como recursos secundários, plenamente utilizáveis a partir do exercício da reciclagem e reutilização.

Mas para complementar o conceito de sustentabilidade, é necessário introduzir duas variáveis a nível de “feed-back”: a Justiça Social, que ao transformar o Desenvolvimento em novos Recursos trata de rever os Valores do principal recurso disponível, o ser humano; e a Justiça Ambiental, o equilibrio ambiental, que transforma os Resíduos em novos Recursos, através da conjugação dos três “verbos ecológicos”: reduzir, reutilizar e reciclar.

O quadro apresenta também, resumidamente, as Metas prioritárias de cada uma das três etapas do processo: a utilização dos Recursos enquanto matéria-primas; a sua transformação em Bens, e o Resultado Social, que é o que chamamos de Desenvolvimento.

É fácil perceber que estas mudanças precisam ser feitas a partir de decisões individuais para termos um resultado coletivo. Ou seja: espera-se que todos nós, os habitantes do Buffet Planeta Terra, assumam responsabilidades para que a festa no céu não termine em um desastre coletivo.


Novos negócios com o novo modelo

Mas adotar o modelo de Desenvolvimento Sustentado não significa abrir mão da necessária geração de renda e emprego. Pelo contrário, o modelo de Desenvolvimento Sustentado oferece uma série de oportunidades de mercado.

Veja que para cada grupo de Recursos/Fontes (como Energia), que têm seus Problemas específicos (como o impacto ambiental para produção), que geram Metas específicas (como, por exemplo, reduzir os impactos ambientais para sua produção), derivam Oportunidades e Mercados novos. No caso da Energia como Recurso, surgem oportunidades óbvias como tecnologias de novas fontes: energia eólica, pequenas centrais hidrelétricas, biomassa alternativa, solar, etc.

Algumas destas oportunidades já se transformaram em negócios estabelecidos. Outras requerem mudanças comportamentais individuais ou coletivas (que criem consumidores potenciais); e outras ainda requerem o amadurecimento de tecnologias que acelerem o retorno de capital investido. Mas as oportunidades podem ser instigantes. Um bom exemplo: você imaginaria, há apenas 10 anos, que o cocô de porcos criados em Santa Catarina poderia ser vendido para um banco internacional na Europa? Pois isto é o que ocorreu com um projeto da Sadia inserido no MDL – Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, conhecido popularmente como sequestro de Carbono ou Protocolo de Kyoto.

Ou ainda: chamariam você de doido se dissesse que um dia um lixão urbano no qual, durante anos a fio crianças e adultos pobres podiam ser vistos catando restos, se transformaria em uma unidade de produção eneergética…

ISO 14.000: um convite permanente

Para facilitar a caminhada para o novo modelo, foram sendo criadas certificações. E entre elas foram definidas as regras de um sistema normativo denominado Série ISO 14.000. A ISO 14.000 pode e deve funcionar como um acelerador do compromisso explícito de uma organização buscar o modelo de Desenvolvimento Sustentado.

Enquanto na Série ISO 9.000 as “partes interessadas” se limitavam a um relacionamento comercial - certificação de padrões de qualidade de processos, produtos e serviços - na Série ISO 14.000 está inserido um “terceiro interessado”: a comunidade como um todo, ou os participantes da festa no Buffet Planeta Terra. Esta diferença essencial, que aparece como um "compromisso de disponibilizar informações ambientais para terceiros interessados", pode ser entendida a partir de dois enfoques:

1) O enfoque “Aqui está o meu convite”, com o qual a empresa considera que a ISO 14.000 é um Certificado Público de Empresa “Verde” e basta tê-lo para ter a consciência livre. Neste enfoque a empresa que está na Festa do Buffet Planeta Terra raciocina de maneira rasa: “Aqui está o meu convite; com ele tenho direito de comer tudo e não me perturbe mais” - e se materializa como dar uma gorjeta ao garçon da festa para receber mais e melhores iguarias, antes dos outros convidados.

2) O enfoque “Meu Deus, a festa pode acabar”, no qual a empresa entende que a ISO 14.000 é um Certificado de Compromisso com Responsabilidade Social. O gestor que procura o Desenvolvimento Sustentado entende sua participação na festa do Buffet Planeta Terra de outro jeito: “Aqui está meu convite: quero comer o que tenho direito, mas acho que temos que ser mais discretos no consumo das iguarias para poder convidar mais pessoas (animais), porque senão a festa acaba ou o dono da casa não convida mais a gente”. E se materializa como comer com mais critérios e pagar o ingresso para que outros também possam participar da festa.


Educação Ambiental: fazendo diferença

A diferença entre os dois enfoques se chama Responsabilidade Social Corporativa e uma das formas de se materializar é através de programas de Educação Ambiental. É através da Educação Ambiental que uma empresa poderá obter, além do Certificado Público de Empresa “Verde”, o “Certificado de Compromisso com Responsabilidade Social”.

Educação Ambiental é a única alternativa eficiente para promover mudanças de comportamento hoje e no futuro. Em empresas deve ser feita em caráter interno - junto aos funcionários - e depois disso, em caráter externo - para outros públicos externos, como fornecedores, clientes, comunidades.

Programas de educação ambiental devem, filosóficamente, começar de dentro para fora - realizar primeiro dentro da empresa e só depois informar os demais habitantes do Buffet Planeta Terra - e de cima para baixo - começar pela cúpula para dar o exemplo, e só depois descer ao chão de fábrica.

Educação Ambiental pode ser feita de maneira simples; deve não apenas estar inserida na Politica Ambiental ou na Política de Responsabilidade Social Corporativa da empresa, mas ser transformada em atitudes concretas pela organização. Educação Ambiental é um processo de interesse coletivo, pró-ativo e reflete posturas reais dos gerentes das organizações. Requer decisões corporativas, planejamento específico, adequado à cultura da organização, investimentos e especialização.

Será longa a caminhada para um modelo de Desenvolvimento Sustentado, mas um bom começo pode ser a adoção de um conjunto de regras que bem poderíamos chamar de “Os dez mandamentos da empresa verde”.


Os Dez Mandamentos da Empresa Verde

1 - Identifique os problemas ambientais potenciais e reais existentes em todas as áreas da empresa - e não só na área de produção. Pode-se economizar energia e matérias-primas, reciclar materiais e reduzir hábitos esbanjadores em todo o ciclo;

2 - As soluções devem ser técnicamente honestas e políticamente desejáveis - investimentos em responsabilidade comunitária devem ser planejados como aqueles que aumentam os lucros;

3 - Promova mudanças comportamentais de “cima para baixo e de dentro para fora”. Os diretores devem dar o exemplo e a empresa só deve divulgar seu esforço “verde” depois de ter feito as “lições de casa”;

4 - Situe os valores ambientais no contexto da cultura corporativa de maneira irreversível - e zele por eles ;

5 - Permita e promova a contribuição dos funcionários. Programas de mudança comportamental precisam ser participativos, e os de caráter ambiental geralmente motivam iniciativas individuais muito ricas;

6 - Estenda suas conquistas ambientais a seus fornecedores e parceiros de negócios. No fundo todos querem mudar, mas alguns podem precisar de uma ajuda especial, de um empurrãozinho;

7 - Ouça a comunidade e trabalhe em conjunto com ela e não contra ela. O “inimigo” é comum a todos e a parceria é sempre a melhor solução;

8 - Entenda educação ambiental como parte da formação básica e indispensável dos funcionários que tomam decisões na empresa - hoje e no futuro;

9 - Tenha paciência e calma com ataques externos agressivos: ambientalistas e jornalistas também estão aprendendo a conviver. Diálogo é sempre o melhor caminho;

10- Prepare-se para a construção de novas relações éticas e estratégicas com o mundo externo.Este será um aprendizado dificil e completamente novo.


(*) Rogerio Ruschel é diretor da Ruschel & Associados Marketing Ecológico, consultoria pioneira no Brasil em associar valores economicos com valores ecológicos. Professor universitáriuo por mais de 25 anos, é jornalista e autor dos livros “Guia Ruschel de Ecologia”, "A caminho do desenvolvimento sustentado - A memória dos primeiros 5 anos do Prêmio Ambiental von Martius" e do “Glossário de Informações Ecológicas para Jornalistas”.

Fonte: Envolverde - Revista Digital de Meio Ambiente e Desenvolvimento
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