FINDAPICADA E O NEPOTISMO

"Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar

Bertold Brecht

Gosto muito de escrever textos em que prevaleça a ficção, tendo em vista que a realidade em que vivemos é sempre monótona, previsível e repetitiva.

Então, imaginei, e transcrevo nas linhas abaixo, como seria o mundo político numa cidade chamada Findapicada , após a eleição de um candidato à prefeitura municipal vindo de um partido da oposição.

Em Findapicada seria comum os vereadores reeleitos, ou não, procurarem manter os cargos destinados a seus amigos e parentes.

Imaginei como seriam as pressões sobre o novo prefeito.

Aqueles vereadores com vinte , trinta , quarenta anos de mandato , cujos partidos ou coligações houvessem perdido o pleito , ofereceriam seus votos, incondicionalmente , ao novo prefeito, para projetos futuros na Câmara Municipal , em questões polêmicas e de interesse do legislativo ( e nunca da população), desde que seus afilhados não perdessem os cargos tão dificilmente obtidos durante árduo trabalho em legislações anteriores.

Alguns novos eleitos ,neo-vereadores, cegos , surdos e mudos aos apelos da moralidade e da decência , já conhecendo a maracutaia , também procurariam o prefeito eleito para trocarem seu apoio irrestrito na Câmara Municipal , em troca de dez ou vinte cargos para membros da sua família ou agregados , que seriam seus assessores parlamentares.

Outros vereadores da ex-oposição ( tendo em vista que oposição é matéria de barganha futura e não de convicção) passariam a freqüentar o palácio do governo municipal , com a maior cara-de-pau , logo após o início da nova legislatura , como se tivessem trabalhado arduamente para eleger o novo prefeito , sendo de conhecimento de toda a população, ou seja , previsível, que eles sempre , sempre mesmo , acabam ficando ao lado do candidato vitorioso , seja ele de direita , esquerda , ou centro : verdadeiros camaleões .

Mas a verba para futuras campanhas eleitorais estaria garantida pelos porcentuais das verbas dedicadas aos partidos e aos padrinhos, pelos apadrinhados desse carrossel silencioso de imoralidade

E, com tudo isso , essa complexidade da política local , o povo de Findapicada, orgulhoso, vangloriar-se-ia de nunca ter votado em branco ou nulo, e nem perceberia que, numa jogada “política”, o candidato de sua preferência teria tido excluída a sua possibilidade de assumir o poder já no primeiro turno das eleições .

E os homens respeitáveis de Findapicada, todos formados ( ou seriam deformados) por famosas universidades, inclusive no exterior, homens de respeitabilidade inquestionável — apesar da assinatura de alguns deles, políticos , de nada valer nos documentos em que assumiam compromissos públicos — continuariam sendo coniventes com o status quo, amordaçados diante da impunidade e da inexorabilidade dos fatos que assolariam a política local.

E ao novo prefeito, imerso nesse mar de lama em que os “valores” se modificariam de acordo com as circunstâncias, sufocado , sem saída, só restaria indicar parentes, todos de sua confiança , para os cargos mais importantes da comunidade findapicadense.

Eis a justificativa para o mais descarado nepotismo vigente e assumido em Findapicada: um município que , graças a Deus , não existe, porque se existisse , seria o fim da picada.

Tórtoro
Enviado por Tórtoro em 13/07/2005
Código do texto: T33867