AFINAL, GOSTO SE DISCUTE?

Para Immanuel Kant, sim. Tanto é que ele dedicou uma obra inteira para as questões do gosto, a “Crítica da Faculdade de Julgar”, publicada em 1790. Para o filósofo supracitado é possível discutir o gosto porque uma discussão é diferente de uma disputa. Filosoficamente, uma disputa é uma batalha de argumentos que exigem demonstrações, a fim de que uma ideia prevaleça. Uma discussão é um processo de lapidação das opiniões, cuja finalidade é chegar a um acordo entre as partes. Assim, não se disputa sobre o belo, porém pode-se discuti-lo. Kant afirma ainda que a experiência estética é compartilhável e que a beleza é uma ideia universal da razão. Seu conteúdo e sua forma podem variar segundo circunstâncias históricas e segundo a subjetividade dos artistas, mas o sentimento de belo, fundamento do juízo de gosto, é universal.

Partindo das proposições kantianas, ou seja, se o sentimento de beleza é universal e passível de partilha, por que, atualmente, vivemos uma carência de esteticidade? Hoje em dia, se perguntássemos a uma pessoa comum o que é um artista, provavelmente ela elencaria nomes de atores de televisão ou cantores populares. Escritores, pintores e escultores com quase toda certeza não seriam citados. Para este indivíduo, diferentemente da concepção Romântica, o artista não é o gênio criador, inspirado divinamente; é alguém que realiza performances. Por que esta percepção? Na contemporaneidade, a sociedade do espetáculo está intrinsecamente ligada à Indústria Cultural. Com a necessidade de fazer girar o capital, a indústria da cultura, de maneiras diversas, distorce o conceito de beleza porque sua finalidade é atingir um número grande de pessoas. "Onde as massas têm o poder de decidir, a autenticidade se torna supérflua, nociva e prejudicial", sentenciou Nietzsche. Sobre este ponto, a literatura é ilustrativa: por que livros, digamos, “palatáveis” (autoajuda, por exemplo) vendem muito mais do que livros complexos e bem escritos? Uma das respostas possíveis: a literatura genuína faz o leitor tropeçar. E não é todo mundo que está preparado para cair. Os “best sellers” são “best sellers” porque dizem o que o leitor espera. O menos preparado chama isso de “identificação” com a obra. “Puxa vida, este autor diz exatamente o que eu penso.” Não consegue perceber que o prazer da leitura está justamente em “fechar o círculo”. Este tipo de leitor jamais compreenderia Jean Paul Sartre, quando este afirmou que escrever é distanciar-se da linguagem instrumento e entrar na atitude poética, tratando as palavras como entes reais e não como símbolos estabelecidos. Seguindo o raciocínio sartreano, é lícito distinguir a linguagem: a cotidiana como “instituída” e a do escritor como “instituinte” (criadora, inventora de significações).

Não é exagero afirmar que o homem médio contemporâneo perdeu a capacidade contemplativa; mais que isso, perdeu a capacidade de distinção estética, ao ponto de colocar no mesmo balaio Ivete Sangalo e Chico Buarque. As músicas (e as artes em geral) produzidas para a massa são estruturalmente muito parecidas. Isso é facilmente explicável: a Indústria Cultural desenvolve recursos técnicos para multiplicar aquilo que é considerado o traço mais marcante da obra de arte: ser única. (é o que Walter Benjamim define como “aura”). Diz ele em seu clássico livro “A obra de arte na era da reprodutibilidade”: “Fazerem as coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como superar o caráter único de todos os fatos através de sua reprodutibilidade”. O anseio da modernidade em quebrar a transcendência dos objetos artísticos que provinha de sua unicidade fez esmaecer a aura.

Novamente trago Nietzsche: "Quanto mais superior é uma coisa em seu gênero, tanto mais raramente ela é bem sucedida". Sob este viés, cai por terra qualquer discurso de “democratização da arte”. Mas, em contrapartida, tomando as palavras de Kant que atribuiu o status de partilhável à beleza, não seria válido dizer que a arte pode ser para todos, ainda mais se levarmos em conta o poder de disseminação da internet? Não é bem assim. Para penetrar nesse reino, o homem precisa de cultivo. Aquela pessoa cujo espírito é educado pelas artes é capaz de formular o juízo de gosto adequado; é capaz de compreender que a arte está muito além da utilidade e do prazer. Sim, é preciso que o indivíduo tenha instrumentos de julgamento; é preciso dar a ele possibilidade de escolha. Em termos simples: para que alguém afirme categoricamente que “pagode” seja o seu o gênero musical preferido, faz-se necessário o conhecimento de outros tipos de música, como a erudita. Afinal, a comparação é o princípio mais elementar de conhecimento, como nos mostra Platão em sua célebre alegoria da caverna: se se conhece somente as sombras, acredita-se que elas sejam toda a realidade existente.

Talvez nosso erro esteja em querer julgar com as categorias da arte algo que, de antemão, não se propõe a ser arte, somente entretenimento. Michel Teló não quer produzir um sentimento de arrebatamento em nosso ser (a mais alta função da arte, segundo Kant). Com a Indústria da Cultura, o entretenimento invadiu o terreno da arte e a distanciou muito do cidadão comum. Isso fez com que o “relativismo estético” tomasse proporções assustadoras em nossa cultura. Todavia, trilhar o caminho oposto, ou seja, estancar os limites da arte pode ser extremamente perigoso. As consequências podem variar desde o engessamento da expressão (uma espécie de totalitarismo estético) até os mais brutais massacres como o protagonizado por Adolf Hitler. Afirmava ele: "Muito tempo atrás o homem era lindo, mas a miscigenação e a degeneração poluíram a Terra." Com a fixação de "embelezar o mundo", Hitler arquitetou seu plano de "higienização da humanidade", que culminou no holocausto.

Atenuados os dois extremos (dogmatismo e relativismo), em quais veredas, então, podemos vislumbrar a arte? Obviamente, as respostas são inúmeras. Talvez a definição de artista de Merleau-Ponty nos ajude. Dizia ele que o artista é aquele que fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem perceber. Ou a de Fernando Pessoa, que se faz ouvir pela boca de Alberto Caeiro: “o artista procura o pasmo essencial, que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras”. A arte pode e deve ser a manifestação da essência da realidade que está amortecida em nossa existência diária. Contudo, isso não significar atribuir à arte um papel moralizante. A arte não deve melhorar ninguém, não deve sequer ser agradável. Theodor Adorno toca nesse ponto ao escrever em sua “Teoria Estética”: “À aceitação conformista da concepção corrente da obra de arte como bem cultural agradável, corresponde um hedonismo estético que expulsa da arte toda a negatividade para os conflitos pulsionais da sua gênese...” A arte deve, sim, mostrar a condição humana perante a vida; mostrar o humano em todas as suas possibilidades, inclusive na esfera mais trágica e horrorosa. Parafraseio novamente Nietzsche: “Só a arte pode transformar a ideia de repugnância sobre os aspectos horríveis e absurdos da existência em representações com as quais se torna possível viver.” E ainda: “a vida só se justifica como fenômeno estético”. Sim, amigos! Homem, concomitantemente, como artista e obra de arte. A arte é um “estado de vigor animal”, a mais visceral afirmação da vida. Talvez essa “metafísica de artista” seja utópica. Mas lançada ao horizonte, tal percepção faz com que eu me mova e, mais que isso, que eu continue a respirar.

REFERÊNCIAS

PLATÃO. A república

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade de Julgar

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia

_________________. Assim falou Zaratustra

ADORNO, Theodor. Teoria Estética

BENJAMIM, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade

SARTRE, Jean Paul. O que é a literatura?

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia