Liberdade para interpretar

Por não cair em dia útil (“inutilizando” um feriado nacional) talvez a data comemorada no próximo sábado passe em branco para muitos. Em 21 de abril o Brasil celebra o Dia de Tiradentes, que em Minas ganha uma conotação ainda mais forte enquanto Dia da Inconfidência Mineira.

A força de certas passagens históricas nos faz relembrar, 220 anos depois, que um simples dentista chamado Joaquim José da Silva Xavier se tornou herói nacional por defender ideais libertários. Ideais tão fortes que terminaram impressos em um dos símbolos mais grandiosos de qualquer povo: a bandeira.

Acompanhando o triângulo vermelho da bandeira de Minas Gerais, a frase em latim “libertas quae sera tamen” já foi motivo de confusão na leitura de uma criança baiana na década de 1970. Sim, estou me referindo a mim e a uma época típica de curiosidades nem sempre investigadas e explicadas devidamente.

Não me recordo bem se foi aos 7 ou 8 anos, mas sei que a lembrança está diretamente ligada àqueles cadernos distribuídos nas escolas públicas pelo Governo Federal (na época da Ditadura Militar), com a impressão do Hino Nacional e das bandeiras do Brasil e de todos os estados. Lembro-me que aquela frase incompreensível em torno do triângulo da bandeira de Minas me intrigou bastante quando a vi pela primeira vez.

Como baiano e ainda tomando pé da nossa história, não tinha a menor intimidade com os símbolos cívicos dos mineiros. Como também não poderia imaginar que as palavras que via estavam em latim, decidi na minha percepção infantil dar a elas o sentido que me era possível. Resolvi, então, ler exatamente assim: “libertas que será também”. Soava bem melhor aos meus ouvidos, mas ainda não fazia sentido para mim, uma vez que a segunda pessoa do singular não estava entre as minhas aprendizagens formais e informais. O “quae” nem chegou a me preocupar muito, pois achei apenas que se tratava do “que” escrito errado. Mesmo que fizesse sentido, a frase não estaria gramaticalmente correta, pois o “sera” não tinha acento nem estava na segunda pessoa do singular para concordar com “libertas”. Assim, sem solução a dar e também sem interesse em buscar a explicação para tal “enigma”, resolvi que o “será também” dava ao menos uma possibilidade mais inteligível.

Quase 35 anos depois, e aproveitando a semana que antecede ao 21 de abril, permito-me filosofar um pouco sobre aquela percepção infantil. Se levarmos em consideração os referidos ideais libertários que fizeram nascer e impulsionaram a Inconfidência Mineira, não seria tão absurdo substituir a frase em latim pela minha livre versão em português (agora devidamente corrigida): “libertas que serás também (libertado)”. Seria, quem sabe, um lema existencial. Afinal, não pode haver qualquer tipo de liberdade se os que oprimem não conseguem enxergar os males da opressão. Nenhum indivíduo pode se considerar livre cultivando o desejo de cercear a liberdade do outro.

Deixando de lado a análise da minha interpretação, ressalto que o verdadeiro lema dos inconfidentes – “libertas quae sera tamen” (liberdade ainda que tardia) – se mantém atual e merece ser um referencial de vida para as novas gerações. Talvez agora o ideal de liberdade esteja bem mais próximo de uma busca individual (a desembocar numa busca coletiva) pelo livre pensar, livre sentir e pelo livre agir.