Por que não posso me sentar?

Analisar a História é buscar compreender o homem e sua relação com o meio social. Dentro da Nova História, aspectos que não eram relevantes para a historiografia tradicional passam a ter importância para compreender fenômenos sociais, como a relação cotidiana de determinada região, processo de inclusão e exclusão em ambientes públicos e a relação dos homens em praça pública, - assuntos como estes passaram a ser discutidos a partir da década de 1930 -, atualmente considerados como micro história. Conforme Ciro Flamarion Cardoso (1997, p.22-23): “[...] no caso da Nova História, [...] alguns de seus aspectos vieram para ficar; entre eles a ampliação considerável dos objetos e estratégias de pesquisa e a reivindicação do individual, do subjetivo, do simbólico como dimensões necessárias e legítimas da análise histórica. [...]”.

Considerando a pergunta de um jovem salgadeiro a uma senhora cativa sentada no único banco de uma praça sob a sombra de uma manguba (Pseudobombax sp.) - “Por que num posso me sentá co a senhora? Tô cansado e quero ficá na sombra” -, sem resposta positiva, questiono o estudo sobre o imaginário identitário do homem moderno a partir dos bancos de praça. Nesse ínterim, ficam evidente as relações do espaço com o indivíduo, focalizando as práticas cotidianas na constituição de identidades na atualidade. A interpelação do jovem salgadeiro nos fala dos bancos da praça e de sua apropriação pelos indivíduos que circulam neste espaço urbano. Entenda-se que esses possíveis bancos pertencem as praças públicas que figurariam em cidadezinha qualquer, mas que certamente promove a constituição de linguagens pensadas a partir da cultura que nela ventila e aventura práticas cotidianas, revitalizando modos de significação, exercício e poder, de emergência e acomodação de conflitos. Por isso, o indivíduo, expressará por meio de sua cultura a constituição imaginária que envolve o diálogo interno do presente e do passado nas práticas cotidianas, marcados a fala do jovem e no apagamento da resposta da senhora.

Dessa maneira, problematiza-se o cidadão e sua inscrição na história sob três eixos temáticos: a) o banco da praça como prática de espaço que pressupõe o contexto no qual se insere a própria cidade; b) o indivíduo, na sua maneira particular de assimilar o espaço público em que vive, fazendo emergir uma identidade dentro desse espaço específico; c) a modernidade, cujas reverberações fazem o homem se sentir livre e, paradoxalmente, preso no e pelo espaço que o controla e o vigia (Foucault, 1977).

Num posso me senta revela-nos a afirmação de um desejo que se realiza por meio da interação entre as pedras do banco de uma praça e as carnes do individuo, a tal senhora cativa, colocando em evidência, assim, alguns vestígios de identidade de homens inseridos na modernidade em um tempo e espaço dados. Da mesma forma, ao lermos (ou ouvirmos, para aqueles que ouvem quando lêem) To cansado, Quero fica na sombra, focalizam-se as relações que se estabelecem em torno dos bancos de praça, evidenciando o segredo do indivíduo Corbin (1999) à medida que caracteriza suas marcas e sentimentos de identidade individual da comunidade local. Esse segredo, portanto, se desvelará por meio de singularidades que identifiquem e constituem um indivíduo ou grupo, de maneira como se atribuíssem à eles mesmos “um nome para si” (ibidem). De que lugar fala o salgadeiro? De que lugar ouve a pergunta aquela senhora? Nessa divisão entre homens sentados e homens em pé, ressaltam-se identidades que parecem se firmar solitariamente e fechadas em si, criando pequenos centros de concentração. Compreendo que o espaço ao qual me refiro é caracterizado por vários espaços de memória, que constituirão as identidades dos indivíduos que vivenciam esses espaços, em referência a delimitação das diferentes áreas que constituem a praça, a saber, a igreja que a circunda, a uma possível estatua ou coreto no centro da praça, talvez um chafariz seco e rachado pelo tempo.

Ainda, cada banco de praça, em diferentes momentos, compreenderia indivíduos cujas maneiras de viver se incluem, ou os excluem na delimitação do espaço apropriado. Note-se que pelo questionamento do interlocutor, o salgadeiro, a senhora ocupava o banco de praça como se este a ela pertencesse. No entanto, o jovem se da o direito de pedir permissão para sentar. Acredito, portanto, que as individualidades emergem dessa dispersão espacial e do dialogismo gerado pela vários ambientes que se delineiam ao longo da praça, deixando-nos ora, ilusoriamente, sentirmo-nos dono dela, ora deixando-a a sorte para outros que chegam.

Essa dispersão é descrita por Foucault (1972) como um fio condutor que marca a sua regularidade. Poderia, então, a grosso modo, considerar que a interrogação espontânea pronunciada pelo jovem coloca-nos diante deu uma unidade identitária, porém, contraditoriamente, heterogênea, porque ao mesmo tempo é uma identidade esfacelada, na medida em que constitui diferentes posições dos indivíduos de uma mesma comunidade, salgadeiro x senhora, num território com limites e fronteiras específicos: um único banco de uma praça sob a sombra de uma manguba...

Ao analisar a circulação dos indivíduos, cujas identidades fluídas giram em torno dos bancos estáticos de praça, observamos uma insistência em se fixar saberes e poderes, que dão sentido à vida desses cidadãos. O olhar que lanço sobre esse objeto de estudo percorre caminhos baudelerianos, no qual o flâneur caminha pela cidade como um detetive, investigando os fatos: um transeunte que vive o urbano e inscreve ali, efemeramente, sua marca instada pelos moldes sociais e as características singulares de cada indivíduo no espaço que ocupa.

Sob essa ótica, considero que o “passante” dessa praça vive a autolimitação determinada pela arquitetura que o envolve, fato que o propulsionaria a traçar individual e coletivamente seus próprios limites individuais e coletivos (Berman, 1999). Dessa forma, as imposições e restrições à liberdade individual parecem gerar uma civilização desestabilizada, pois da mesma maneira que oferecem espaços territoriais a serem preenchidos, classificam-nos e imprimem-lhes estatutos e representação díspares.

Essa diversidade da representação em torno dos bancos de praça espelha uma gama de identidades fragmentadas, marcam o turbilhão de fontes que constituem a vida moderna de, nós, indivíduos. a influência dos modos de vida da modernidade, segundo Giddens (2002), “nos desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que não tem precedentes [e] se darão a ver por meio da produção de identidades de indivíduos ou grupos da cidade”. Essa maneira de viver cria novos ambientes de “socialização”, acelerara o ritmo de vida e parece acarretar uma mudança de imagem no universo e do lugar que nele ocupam. Para Berman (1999), “o público do mundo moderno se multiplica em uma multidão de fragmentos, que falam linguagens incomensuravelmente confidenciais” como o pedido íntimo do jovem passante publicamente expelido face à sua mais anônima senhora: paradoxos do mundo moderno.