DA MORTE...

“O que é a morte”? Os filósofos não param de responder. Toda uma parte da Metafísica se joga aí.

André Comte-Sponville

Sei o pensamento de alguns: “sobre essa coisa (morte) não se deve falar”. As batalhas no adiamento dela minam estranhos velamentos de sua inexorável potência: vamos morrer. Fenômeno indomável por excelência, a morte deve ser tratada como natural, familiar e próxima. Encará-la como algo amedrontador, inimigo e macabro é o avesso do próprio filosofar. Estou com Montesquieu: “Filosofar é aprender a morrer”. Não é sintomático que a angústia, melhor, que o medo da morte tenha se originado no final do século XIX?

Não confundamos: celebrar vivos mortos é povoar nossas cidades de parques funerários nos quais hedonistas, irresponsáveis e cretinos de todo gênero decantam cinicamente: “comamos e bebamos porque amanhã morreremos”. Ganhar e vencer, aqui, são sinônimos de violência, de eliminação do outro, de si, dos desvalidos. Ostenta-se um modo de vida em que a barbárie são vísceras de uma metafísica que ferve entre o desespero e a resignação das fatalidades. Interditar, assim, a morte acaba sendo preservação da dor, da ilusão e embriaguez do “é, a vida é desse jeito. Fazer o quê?”. Morrer como produto de “civilização” pode não ir além de fim. Nessa rede materialista, perpassam ondas de niilismos onde o aparente emoldura a temperança, a prudência e a coragem. A exploração gera consciências tão miseráveis que os movimentos infernais, prenhes de genes infelizes, beiram ao indiferente. De modo que é até “natural” que certas pessoas saiam por aí dirigindo alcoolizadas, que valentões acertem os embates com violência, que se agridam animais, velhos e crianças. Não é a morte uma virtude às avessas? Não se vive, afinal, numa cultura da morte? Toda essa ordem não sublima o verdadeiro significado dela? Creio que, nessa perspectiva, é que procedem as palavras de Ezequiel: “Não tenho prazer na morte de ninguém, diz o senhor”. Impera um tipo de “negativite”, à Epicuro, em que a morte não passa de nada, mas um nada definitivo.

A morte, amigo, é acontecimento iluminado, Mistério luminoso que, por ser outra coisa, nos adentra noutras vivências. O amor pleno à vida, nossa fidelidade libertadora a ela, sem dúvida, passa pela aceitação crítica e pelo aprendizado da Morte. Apavorar-se com ela recorrendo a volúpias de vazios, a propedêuticas de desprezo ou suspeitas infundadas é decretar, conforme preceitua Sartre, a negação de nossas possibilidades. Acontece ser ela algo para além de um muro. Somos imortais, isso nos infunde a consciência de que precisamos do tempo presente e da fé autêntica na continuidade para além deste “vale de lágrimas”. Menos vida na morte é uma interpretação, lamento, tacanha, opaca. Enquanto vivemos, nos privamos dela, mas, como disse, por ser Mistério luminoso, não desembocamos no nada. O viver Belo está atravessado pela arte de Morrer, é um trabalho inteligente de desdobramento no ser que somos, é, no fundo, a chave do segredo da Vida. Vamos da imanência à transcendência certos de que, na Eternidade, renascemos para a Plenitude de Vida. Ora, a vitória de Cristo sobre a morte não é mutismo metafísico; é verdade irrefragável a limpar os efeitos negativos dessa sociedade do medo, da ameaça, do risco e da aniquilação. Não é à toa que Paulo interroga: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?”

Nossa leitura da morte, enfim, impacta sobre os sentidos da vida e do mundo. Se, de um lado, a morte pode ser um fenômeno comprovado cientificamente; por outro, ela carrega um Mistério que ninguém deve ignorar. Na verdade, há fundamentos específicos, cheios de sentidos. O confusionismo civilizatório por que passamos não nos autoriza nem o dogmatismo, nem o cientificismo. Negar ou cultuar a morte são atos irracionais que desviam a humanidade de seu fim: o Infinito. A morte é nossa conselheira, nos convida a agir e requer nossas mentes centradas no reconhecimento de Deus, em nossa adesão a Ele e consciência de sermos no e pelo Senhor. Ela é a tranquilidade perene nos movimentos de Luz. Preciosa é aos olhos do Senhor, entoa o salmista, a morte dos seus.