Lenda do Negrinho do Pastoreio

INTRODUÇÃO

O primeiro registro literário do folclore e da tradição gaucha foi elaborado por João Simões Lopes Neto (1865-1916). Encontra-se em suas obras “Lendas do Sul” e “Contos Gauchescos e Lendas do Sul”, um minucioso registro dessa lenda.

Por esse motivo, nosso trabalho, como alguns outros que pesquisamos, segue a estrutura montada por Simões em sua narrativa.

Nosso esforço consistiu em: reduzir detalhes; utilizar outra forma, para contar, mas sem “aumentar um ponto”; e substituir os termos, ou em desuso, ou extremamente regionais, que dificultariam a leitura e entendimento da lenda, por brasileiros de outras regiões.

Como toda lenda e mitos, devemos procurar entendê-los não como fatos, não como história real. São metáforas, linguagem simbólica, da qual precisamos retirar-lhe um entendimento, o sentido real, próprio, correspondente ao figurado. Precisamos fazer analogia entre o visível, o explicito nos fatos, que é o sentido figurado, com o real sentido, invisível e velado pela lenda.

CENÁRIO E ORIGEM

A lenda nasceu, provavelmente, no século XIX em uma das fazendas do Rio Grande do Sul, quando os campos ainda eram abertos, não havia entre eles nem divisas e nem cercas.

A lenda do Negrinho do Pastoreio tem origem mista. É meio africana e meio cristã. Popularizou-se no final do século passado, pelos defensores, no Brasil, do fim da escravidão.

É muito popular no sul do Brasil.

SOBRE O FAZENDEIRO

Conta a lenda que, no tempo da escravidão, existia um fazendeiro, estancieiro como dizem os gaúchos, o mais rico da região; porém era muito avarento e muito mau.

Seu coração tinha tanto egoísmo que, não dava pousada e não emprestava nada a ninguém. Era tão mau, que não permitia que ninguém bebesse água de suas cacimbas e até mesmo gozasse da sombra de seus umbus.

Olhava nos olhos só para três viventes: para o filho menino, inoportuno como mosca; para um cavalo baio com as quatro patas negras e de sua confiança; e para um escravo, menino bonitinho, preto como carvão, e a quem todos chamavam de Negrinho.

Por isso, quando o fazendeiro precisava de alguém mais, além dos escravos, ninguém vinha ajudar-lhe de boa vontade. Ninguém gostava de acertar serviço com ele, pois chorava tanto para pagar e fornecer as refeições, que parecia que era ele o explorado.

SOBRE O NEGRINHO

Menino trabalhador montava tão bem que o fazendeiro o colocou, como responsável por pastorear os cavalos.

Chamavam-no de Negrinho, porque ninguém havia se dado o trabalho de dar-lhe padrinhos e nome. Orgulhoso e sorrindo, dizia-se afilhado da Virgem Nossa Senhora, Madrinha dos desapadrinhados.

Todas as madrugadas, o Negrinho galopava o cavalo baio de patas negras, aviava e depois conduzia os elementos necessários para o chimarrão e, à tarde, sofria os maus tratos do filho do fazendeiro, cuja diversão era judiar do Negrinho.

APOSTA DE MIL MOEDAS DE OURO EM CORRIDA DE CAVALOS

Um dia depois de muitas provocações, o fazendeiro aceitou o desafio de seu vizinho, para uma corrida de cavalos. Discordavam quanto ao destino do valor da aposta, acertada em mil moedas de ouro.

O vizinho destinaria a aposta para os pobres. Já o fazendeiro entendia que o valor da aposta deveria ficar com quem ganhasse a corrida. As mil moedas de ouro, ficariam com quem chegasse primeiro, a uma distância de trinta quadras.

Depois das apostas feitas, iniciou-se a corrida. Os cavalos, baio e mouro, permaneceram juntos em grande parte do percurso. Negrinho sabia o quanto seria surrado se não vencesse.

Quando chegou à trigésima e última quadra, os dois cavalos vinham em veloz galope, mas sempre juntos, sempre emparelhados. Mas, bem perto à linha de chegada, algo assustou o cavalo baio, que empinou e quase derrubou Negrinho. Foi o suficiente, para que o mouro ultrapassasse e ganhasse a corrida.

A gauchada continuava dividida, agora com relação ao vencedor. Entretanto, o juiz era excelente e muito experiente. Sentenciou, para todos ouvirem: a corrida está encerrada, perdeu o cavalo baio, ganhou o cavalo mouro. Quem perdeu que pague.

Despeitado, furioso e sob o olhar do povaréu, o fazendeiro pagou a aposta ao vencedor.

A alegria tomou conta do pequeno povoado, porque o vencedor, como prometera, mandou distribuir a aposta aos pobres.

FAZENDEIRO CASTIGA COM VIOLÊNCIA O NEGRINHO

O fazendeiro cavalgava para casa com a alma despedaçada, pela perda de mil moedas de ouro e pelo orgulho ferido.

Ao retornarem à fazenda, o Negrinho teve pressa para guardar o cavalo, enquanto o fazendeiro, depois de desmontar, mandou amarrar no tronco e surrar de relho (chicote de couro torcido) o Negrinho.

O sol não havia nascido e o fazendeiro saiu com o Negrinho, montado no baio e mais trinta cavalos. Ao chegar ao alto de uma das colinas da campina, falou assim: trinta quadras tinha a cancha da corrida, que tu perdeste. Trinta dias, e trinta noites, ficarás aqui pastoreando esse grupo de cavalos.

O pequeno escravo, louco de dor, levou os cavalos para o pastoreio.

Veio a noite. Vieram as corujas e todas pareciam observá-lo, com seus olhos amarelos e reluzentes, e zombá-lo com seus constantes pios.

O Negrinho, cansado, faminto, já sem forças nas mãos, tremia de medo. De repente pensou na sua madrinha Nossa Senhora e, aí, sossegou e dormiu.

Então, vieram os cachorros-do-mato ladrões, que farejaram o Negrinho, assustaram o baio, que saiu a galope e, com ele, todo o grupo de cavalos, perdendo-se nos pequenos vales entre as colinas.

NEGRINHO É CASTIGADO PELA SEGUNDA VEZ

O ruído do galopar acordou o Negrinho e os cachorros-do-mato fugiram, dando berros de escárnio. Assim, o Negrinho perdeu o pastoreio e chorou.

O filho do fazendeiro, menino rancoroso, que havia saído para judiar do negrinho, ao chegar lá, percebeu a fuga, e voltou correndo para trazer a notícia para o pai.

O fazendeiro mandou outros escravos buscarem o Negrinho. Negrinho tentou justificar-se ao fazendeiro, mas não adiantou. Novamente amarrado ao tronco e outra surra lhe foi aplicada.

Quando já era noite fechada, ordenou ao Negrinho, que fosse campear os cavalos fujões. Chorando e gemendo, o Negrinho pensou em sua madrinha Nossa Senhora. Foi ao oratório da casa, tomou um pedacinho de vela acesa aos pés da imagem e saiu para o campo.

Por aonde o negrinho ia passando, a vela benta ia pingando cera no chão, que se transformava numa nova luz. Eram tantas que clareavam tudo. Tudo parecia imóvel e em silêncio, quando os cavalos relincharam. O negrinho montou no baio e tocou o grupo de cavalos até a colina, que o seu senhor lhe marcara.

O TERCEIRO E MAIS VIOLENTO CASTIGO DO NEGRINHO

Assim, o Negrinho recuperou o pastoreio e deitou-se no chão para descansar. No mesmo instante, apagaram-se todas as luzes. Sonhando com sua Madrinha, o Negrinho dormiu.

Não pareceram nem as corujas agoureiras, nem os cachorros-do-mato ladrões. Entretanto, pior do que isso, ao clarear do dia, veio o menino, filho do estancieiro e enxotou os cavalos.

Assim, mais uma vez, o Negrinho acordou e percebeu que perdera o pastoreio e chorou. Mais uma vez, o menino foi enredar ao pai.

O fazendeiro, outra vez, mandou amarrar o Negrinho e surrar-lhe mais do que nunca, até deixá-lo como morto.

Como já era noite e para não enterrá-lo, o fazendeiro mandou atirar o corpo do Negrinho em cima de um formigueiro. Assanhou bem as formigas e, só abandonou o local depois que as formigas cobriram todo o corpo do Negrinho.

O DESESPERO DO FAZENDEIRO

Três dias seguiram de cerração forte. Três noites o fazendeiro teve pesadelos.

Os peões campearam sob ordens ameaçadoras do fazendeiro, porém ninguém achou os cavalos. Então, o senhor foi ao formigueiro, para ver o que restara do corpo do escravo.

Surpreendeu-se, espantou-se, quando ao chegar perto, viu na boca do formigueiro o Negrinho de pé, com a pele lisa e perfeita e, ao seu lado, o cavalo baio e os trinta cavalos. Mais do que isso, protegendo o Negrinho, estava a Madrinha dos que não têm nome nem padrinhos.

Desesperado, o fazendeiro caiu de joelhos...

O Negrinho risonho, pulando sem rédeas no baio, sorrindo, molhou os lábios com a língua e tocou a tropilha, a galope.

Assim, o Negrinho, pela última vez, achou o pastoreio.

NASCE O MITO NEGRINHO DO PASTOREIO

Correu por toda a vizinhança a triste morte do Negrinho devorado pelas formigas num formigueiro. Entretanto, logo começaram a surgir notícias de casos, que pareciam ser milagrosos.

Todos, que viviam ou passavam por aquela região, contavam ter visto passar, como levados em pastoreio, tropilha de cavalos tocada por um Negrinho, montando em pêlo um cavalo baio seguido pelo dourado de luz de velas.

Contam ainda, que a região fica sem esse pastoreio mágico do Negrinho, durante três dias do ano. O Negrinho desaparece, para meter-se em algum formigueiro, visitando suas amigas, enquanto seus cavalos espalham-se pela região, correm e brincam com as manadas nas fazendas.

Ao nascer do sol do terceiro dia, o cavalo baio relincha pertinho do seu ginete. Negrinho monta-o e sai recolhendo a tropilha. Nesses momentos acontece, a disparada das cavalhadas. Todos olham, mas nada se vê.

Surgiu então a crença de que o Negrinho do Pastoreio teria poderes para achar coisas perdidas.

Até hoje, conduzindo o seu pastoreio, O Negrinho cruza toda aquela região. Anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondo-os de tal jeito, que possam ser achados por seus donos, Entretanto, isso só acontece para aqueles que acendem uma vela.

Contam, ainda, que essa condição se deve ao fato dele querer retribuir aquela retirada do altar de sua Madrinha que, além de libertá-lo, deu-lhe uma tropilha e um baio, para que possa continuar seu pastoreio.

Quem perder suas prendas no campo tenha esperanças. Junto de algum mourão, ou sob ramos de árvores,acenda uma vela para o Negrinho do Pastoreio.

Se ele não achar... Ninguém mais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O enredo da lenda apresenta a relação doentia entre dominadores, representados pelo fazendeiro, e dominados, representado pelo escravo.

Nessa relação o fazendeiro e senhor do escravo Negrinho, considera-o um objeto de sua posse e pode impor sua vontade, escravizá-lo e até tirar-lhe a vida, quando bem lhe interessar e da forma que bem entender. O senhor está acima do bem e do mal, no sentir e pensar dos dominadores.

A lenda apresenta características do comportamento humano que, certamente nos dificultam sermos, como o Negrinho, também, afilhados dos deuses, Como a lenda é influenciada pela parte cristã, esses deuses, o divino, está representado por sua Madrinha, a Virgem Nossa Senhora.

Sermos afilhados, como o Negrinho, representa religarmos, reconstruirmos, o canal de comunicação perdido com o Criador. E, certamente, a avareza, a crueldade, o egoísmo e a sede de domínio do fazendeiro impedem essa reconstrução.

Já o Negrinho, representa o oposto do fazendeiro e de seu filho: pureza; solidariedade; respeito à Natureza; prazer no que trabalha; e fé de que seria aceito como afilhado dos deuses.

Acrescentaríamos, ainda, que a lenda indica com a morte do Negrinho, que essa forma de a tratarmos como castigo, como fim da vida, e não como evento natural e determinístico, deveria ser reconsiderada. Negrinho tem vida após a morte.

A linguagem simbólica da lenda, quem sabe, poderia estar velando, que todos nós temos um fazendeiro e um negrinho. Ou seja, temos personalidade grosseira, densa, escrava das paixões, que necessita doentiamente de escravos, mas, também, um espírito, leve, sutil que quando liberto da personalidade, galopa pelos espaços de outra vida, deixando rastro de poeira dourada.

“Negrinho do Pastoreio” é registro em rimas dessa lenda gaúcha muito divulgada por todas as regiões do Brasil.

Negrinho do Pastoreio

Em fazenda sem divisa,

senhor, avaro fazendeiro,

bom menino e negro, escraviza,

e lhe surra, se erra no pastoreio.

Negrinho, assim era chamado,

por não ter nome e nem ser batizado.

Sempre sorrindo, dizia-se afilhado

da Virgem, Madrinha de todo menino escravo.

Certa vez, foi tão grande a surra,

que tombou, liberto do cativeiro.

Sem direito nem a sepultura,

Negrinho foi jogado sobre um formigueiro.

Afirmam todos daquela região,

ser Negrinho, da Virgem, afilhado.

Pois, em recompensa ao seu bom coração,

deu-lhe um baio, para seu pastoreio..

Se alguma coisa perderes no campo,

não te faças de rogado,

mentaliza o Negrinho em seu baio,

num pastoreio deixando rastro dourado.

Acende vela à Madrinha de todo menino escravo,

e o que perdeste, sempre será achado.

Achado pelo Negrinho do Pastoreio,

pelo Negrinho, Negrinho do Pastoreio.

FONTES:

LIVROS:

Contos Gauchescos e Lendas do Sul; e Lendas do Sul – João Simões Lopes Neto

SITES:

arteducacao.pro.br;

educacao.uol.com.br;

infoescola.com;

pt.shvoong.com;

wikipedia.org

J Coelho
Enviado por J Coelho em 24/08/2012
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