ARTE E POLÍTICA - O "MOVIMENTO POPULAR DE ARTE" DE SÃO MIGUEL PAULISTA

I – Introdução

Situado em região planaltina na face leste da cidade de São Paulo, o bairro de São Miguel Paulista faz divisa ao norte com o município de Guarulhos, mas tem como perímetro físico nessa área o rio Tietê e a Rodovia Airton Senna. Do seu lado leste os marcos divisórios são o município de Itaquaquecetuba e o bairro do Itaim Paulista. O bairro de Guaianases faz divisão ao sudeste e Itaquera ao sul. Para oeste, Ermelino Matarazzo é quem faz fronteira com o distrito.

A fundação de S. Miguel remete ao ano de 1622, quando foi inaugurada aquela que hoje é conhecida como Capela Histórica (ou, como diziam os antigos, a Capela dos Índios, já que a mesma foi construída pelos índios guaianases, que habitavam toda a região). Antes chamado Ururaí, o lugar teve então acrescentado o prefixo São Miguel. Porém, foi somente 300 anos depois – a partir de 1930 – é que São Miguel de Ururaí passou a receber um fluxo maior de pessoas. Tal fenômeno vem da implantação das primeiras indústrias na região, entre as quais destaca-se a Nitroquímica (1935), que chegou a ser o maior complexo industrial da cidade de São Paulo. Também corroboraram para esse crescimento a inauguração da estação de São Miguel (1932), o início da operação da antiqüíssima linha de ônibus Penha-São Miguel (1930) e a abertura da antiga Estrada Velha São Paulo-Rio, atual avenida Marechal Tito.

Iniciou-se, assim, um grande surto migratório, especialmente de nordestinos pouco letrados que, fugindo da seca e da vida famélica em seus rincões de origem, eram incentivados a vir, para trabalhar como mão-de-obra pouco ou não especializada, nas fábricas do entorno.

Segundo Ferrara,

[...] Antigas terras devolutas do Estado, São Miguel, foi sendo loteada ou ocupada por famílias de baixa renda, a maioria migrantes nordestinos, muitas vezes ludibriados com a compra de terrenos legalmente inexistentes. [...] (Ferrara, 1993, p. 26)

Com isso, observa-se no traçado histórico do bairro, uma prolixa influência dessas raízes nordestinas, amalgamada a outros saberes, que se refletem sobretudo numa cultura oral transmitida nas feiras, nas conversas comezinhas ao portão, nos ´papos fiados´ dos botecos, nos folguedos folclóricos, na arte popular, no futebol de fim de semana e nos cultos afro, sincretizados com variações do cristianismo (catolicismo e protestantismo) e perpetuados por rezadeiras, pais-de-santo e pastores neomodernos.

Como nos atesta Thompson, nas sociedades pré-letradas

[...] toda a história era oral. Tudo mais, porém, também tinha que ser lembrado: destrezas e habilidades, o tempo e a estação, o céu, o território, a lei, as falas, as transações, as negociações.[...] (Historiadores e História Oral. Thompson, p. 46)

Enquanto a roda história girava, a década de 1960 via aumentar ainda mais a migração em toda a região metropolitana de São Paulo, em especial na zona leste da capital e, mais especificamente – para o caso dos estudos aqui apresentados – em São Miguel Paulista.

Na década de 1970, com o recrudescimento do militares que tinham tomado o poder em 64, a crise do petróleo de 73 e a necessidade de que o ´pão & circo´ modernos fossem levados às massas populares, ávidas por ídolos que preenchessem incômodos vazios existenciais.

O pensador sentencia que o artista virava "o profissional"; não podia fazer ´arte para o povo´, a não ser para perpetuar a ilusão. (Krausche, p. 89)

Como é comum em situações afins, dentro dos grupos sociais sempre surge um ou vários nomes que, se não unificam, ao menos justificam a identidade cultural desses grupos. No caso de São Miguel, o cantor e compositor Antônio Marcos foi o propulsor, àquela época, de tais estereotipias nas camadas populares. Representando mesmo que aparentemente sem querer, o galã mítico, bonito e trágico que emocionava multidões, o astro global tinha o sex-appeal que entranhava nos anseios populares, não só de seu bairro, mas de uma nação toda que respirava extasiada as músicas que ele cantava. Extravasava, provavelmente sem perceber claramente o seu protagonismo social como fruto midiático de seu tempo, um tipo popular pelo qual as mulheres suspiravam e aos homens restava invejar.

Paradoxalmente, há sempre um contraponto a esse tipo de adoração oriunda dos grandes contingentes populares e devolvido às massas pelo poder alucinatório dos veículos da indústria cultural. Essa antítese estrutural é uma compensação surgida naturalmente dentro dos conglomerados sociais (mais facilmente observáveis no mundo urbano). É um equilíbrio de forças entre o popular e a elaboração mais artesanal, ou, como almejavam alguns, mais erudita.

No caso de São Miguel, o grupo Matéria Prima, liderado pelo cantor e compositor Edvaldo Santana, representava esse pêndulo voltado para uma música que respirava uma elaboração que não aludia a uma resposta imediata do público, antes, proporcionava através de sua tessitura sonora e de uma postura mais radical diante do establishment, uma atuação mais singular diante dos veículos de transmissão de sua arte e uma procura por ritmos novos, sem acomodar-se às situações confortantes anteriormente conquistadas. A adoção dessa linha como fio condutor, levou a música do Matéria Prima a outros públicos, menos homogêneos e mais desafiadores, dentro do status quo imposto. Ainda assim alcançou em alguns momentos, com menos concessões, os mesmos corredores dos programas de rádio e tv que o vizinho Antônio Marcos percorria com mais desenvoltura.

II – Ascensão e Êxtase – O ano de 1978

Por volta de dezembro de 1978, o Brasil começava a respirar a abertura gradual após os anos de chumbo do período ditatorial imposto pelos militares desde 1964. O presidente estadunidense Jimmy Carter visitara o país, tentando alavancar essa “abertura”, que era política, mas também atingia outras esferas da sociedade brasileira, principalmente o vetor cultural. Foi nesse mesmo 78 que um time do interior de São Paulo (da cidade de Campinas), o Guarani Futebol Clube, ganhou o campeonato brasileiro pela primeira vez. Outro time de fora da capital, nesse caso, do litoral, o Santos F. C. conquistara, com seus Meninos da Vila (Juary, Ailton Lira, João Paulo, Pita e Nilton Batata entre eles), um campeonato paulista, o primeiro da era pós-Pelé. E Argentina foi campeã de fato de uma Copa do Mundo pela primeira vez, ainda que Cláudio Coutinho, técnico da Seleção Brasileira, tenha definido que o nosso país fora o “campeão moral”. Isso se deve ao fato de que, mesmo tendo sido eliminado nas quartas de finais, o Brasil fora o único país que não perdera uma partida sequer. O fator da eliminação foi um providencial saldo de gols em favor dos donos da casa.

Outra curiosidade desse ano é que surgiu em cena o cordato papa João Paulo II. Também foi nesse período que as greves na região do Grande ABC, em São Paulo, ganhavam volume, forma, conteúdo e espaço na mídia. Surgia um carismático presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Luís Inácio da Silva, o Lula, que depois se tornaria presidente da república.

Dentro dessas circunstâncias e nesse cenário foi que surgiu o Movimento Popular de Arte, em São Miguel Paulista, zona leste da cidade de São Paulo. Conforme nos descreve Sacha Arcanjo, um dos mentores do MPA, em depoimento para este documento, “a socióloga Marília Andrade e os antropólogos Antonio Arantes e Tadeu Giglio, todos a serviço da recém-criada Secretaria de Cultura do município, pesquisando e mapeando os patrimônios culturais no entorno da Capela Histórica de São Miguel”, receberam informações sobre alguns artistas da região que já tinham uma carreira estabelecida e algum reconhecimento público. Entre os quais figuravam os nomes do próprio Sacha, além de Raberuan e dos já citados Edvaldo Santana e seu grupo Matéria Prima. Foi assim que os pesquisadores chegaram ao portão do casal Sacha e Célia, próximo ao centro do bairro.

A partir deste primeiro contato, foram feitas algumas reuniões com os artistas. Todos se motivaram e mobilizaram suas energias para a criação de um grupo que otimizasse a produção artística no entorno. Uma mostra de artes dentro da Capela Histórica, no centro do bairro, foi o primeiro trabalho sistematizado do MPA (como ficou conhecido a partir de então). O evento ocorreu entre 9 e 31 de dezembro daquele ano e para lá acorreu um público de cerca de 4 mil pessoas. Foi um sucesso, de certa forma, até inesperado. A exposição, feita pelos próprios artistas envolvidos, foi a primeira articulação, que invertia a lógica que sempre determinara a relação entre seus talentos e a ´oficialidade´, ou seja, foi uma exposição feita ´de baixo para cima´, nascida espontaneamente dentro do grupo.

Na organização, despontaram naturalmente nomes como os de Edson Tomaz de Lima Filho (o Edsinho; Akira Yamasaki, Sacha Arcanjo, José Vicente de Lima (o Zezão), Ceciro Cordeiro, Cláudio Gomes, Severino do Ramo, Raberuan, Edvaldo Santana, Célia Cabelo, Zé Afonso (o Osnofa), Gildo Passos, Artênio Fonseca, Ronaldo Ferro, Sueli Kimura, Nelson Mouriz e Éder Vicente, entre outros. Cláudio Oliveira afirma que, nesse período, o movimento estava desvinculado de qualquer ligação política. “Era tudo artista fazendo arte”. Pode ter surgido aí a força expressiva do grupo.

Como, porém, após a mostra de artes plásticas a Capela não foi mais cedida para a continuidade dos eventos, a Praça Padre Aleixo de Monteiro Mafra passou a ser o espaço a ser ocupado, todos os fins de semana. Outros espaços públicos abertos também foram ocupados, resultando nas Praças Populares de Artes. Nelas reuniam-se músicos, poetas, atores de teatro e seus grupos, artistas plásticos e fotógrafos, todos professando um ideal em comum: mostrar a rica e heterodoxa arte praticada no bairro e na região. Praças, ruas e jardins, numa dinâmica nunca vista antes, tornavam-se palco para exibição de filmes, apresentações teatrais e musicais, atrações infantis, varais de poesias e exposição de fotos e telas. Completavam esse quadro as aulas de música, teatro e artes plásticas, ministradas pelos próprios artistas e arte-educadores para crianças e adolescentes do bairro.

Nesse cenário, estabelece-se o vínculo mais profundo do MPA com a história e a vida do lugar. A partir daí, os jovens que no futuro também se tornariam artistas, jornalistas, professores, arte-educadores e militantes culturais, tinham um alicerce por onde poderiam erigir suas construções. Nascidos na forja da resistência à indústria cultural, à margem da grande mídia estabelecida, lutando contra o "poder" estabelecido, revendo padrões que não condiziam com a realidade da periferia, os membros e simpatizantes do MPA entram em luta corporal contra o sistema que não os aceita.

Constitui-se, a partir daí, um ativismo político, para não se perder aquilo que às custas de muito desprendimento tinha sido conquistado. O momento que o país atravessa é de recuperação de um tempo perdido. Os militares estão sendo afastados dos centros irradiadores do poder, mas suas sombras permanecem. Os movimentos populares (de saúde, moradia, cultura e arte, entre outros) tomam corpo e dispõem-se a negociar por conquistas urgentes, das quais foram alijados por anos a fio. Nesse esteio, surge o movimento pedindo eleições diretas (o Diretas Já), o mais visível de todos, junto com outros movimentos, de defesa do meio ambiente, as centrais sindicais, o Movimentos dos Sem-Terra (MST), e os movimentos populares urbanos, como os movimentos em defesa da moradia e da saúde, que também lutam por reconhecimento e pelo seu quinhão. Também a luta antimanicomial toma a dianteira exigindo direitos constitucionais ainda não conquistados.

Naturalmente, os movimentos culturais também aprofundam e refinam suas questões e proposições nesse período. Na zona leste, surgem vários grupos com reinvidicações semelhantes, no mesmo período. Entre os quais, podemos citar o Movimento Cultural Penha; o Cultura e Arte em Movimento, no Itaim Paulista; e o Espaço Aberto ao Desenvolvimento Cultural (EADEC), também no Itaim Paulista. Todos percebem a necessidade de uma luta sistematizada, contra a própria história, contra os estigmas folclorizantes, contra os aparatos etnocêntricos mantidos à exaustão via senso comum e tradições estabelecidas.

O MPA, organizado como sociedade civil e articulando-se com os diversos instrumentos surgidos dentro do tabuleiro político, vai aos poucos costurando sua via de acesso. Isso acontece conforme as demandas que surgiam, tanto em seu âmbito cultural quanto, principalmente, nos implementos artísticos, uma vez que a maioria daqueles que estão dentro de seu centro nervoso, são - também - artistas.

Sposito exemplifica toda essa teia com clareza que

[...] No início de 82, a sede foi inaugurada com dias de intensa atividade. [...](1987, p. 68)

Logo, porém, retifica que

[...] Após um ano de trabalho, o contrato de aluguel da sede é renovado, mas, nessa segunda etapa, o imóvel praticamente só foi utilizado para a realização de reuniões do MPA. Ao término do segundo contrato, no início de 84, o MPA, diante de inúmeras dificuldades, desistiria finalmente de continuar mantendo uma sede com seus escassos recursos [...] (Sposito, 1987, p. 74)

Para manter sua articulação, o grupo aproximou-se ainda mais do poder público, principalmente durante a gestão de Mário Covas à frente da Prefeitura de São Paulo, quando o cargo de Secretário da Cultura foi ocupado pelo ator e diretor Gianfrancesco Guarnieri.

O avanço das relações fez surgir então, em 1985, um segundo momento do grupo, quando ganham uma lona e implementam o circo. Rapidamente o espaço torna-se referência, conquistando mais público e ampliando o raio de atuação dos artistas, através da interrelação entre os mesmos e os grupos próximos. As praças e ruas são deixadas de lado, em detrimento de ações dentro do circo. As produções no espaço são refinadas, sendo observado justamente nesse período o ápice do MPA como movimento pleno e autossuficiente. A maior conquista desses áureos tempos, o disco Movimento Popular de Arte, uma coletânea em vinil gravada pelo Studio Eldorado, em setembro e outubro de 1985, demonstra a pujança daquele momento.

O disco tinha como artistas participantes, Edvaldo Santana (Passarinho, de Edvaldo Santana e Matéria Prima), Raberuan (Pela Estrada de Ferro, dele mesmo), Zulu de Arrebata (Pés n´Areia, do mesmo autor), Gildo Passos (Sangue Inimigo, de Éder Vicente e Cláudio Gomes), Grupo Goró (Menino Brasil, de Elias e Toninho), Ceciro Cordeiro (Locomoção, do mesmo), Sacha Arcanjo (Leve, dele), Matéria Prima (Meretriz, de Edvaldo Santana e Osnofa), Sacha & Raberuan (Cavaleiro Peri, dos mesmos), Lígia Regina (Pássaro Cigano, de Edvaldo Santana e Akira Yamasaki), Osnofa (Crepúsculo, dele mesmo e Matéria Prima) e Luíz Casé (Curumim Aiçó, de Severino do Ramo, Raberuan e Sacha).

Daí para a criação de um Centro Cultural no bairro, que era uma reinvidicação antiga, parecia ser apenas uma questão de tempo.

III - Politização – O ano de 1985: Êxtase e Queda

Em 1985, todavia, o sol vira bruma escura no horizonte. O candidato Fernando Henrique Cardoso, mesmo apoiado pela administração Covas, ainda assim perdeu uma eleição considerada fácil, para o inquieto, falastrão e inconstante Jânio Quadros. A partir daí, um brusco entravamento das conquistas anteriores é experimentado por todos os movimentos engajados. Iniciou-se um período de vacas magras e de populismo exarcebado, onde os investimentos sociais são estancados abruptamente e as organizações vivenciam situações de penúria tenebrosa. Um longo e lento processo de refluxo nas ações do MPA também é percebido por todos nesse período. Os longos anos vividos juntos, a sensação de impotência diante de um novo governo que não quer dialogar com as instâncias populares, as atividades partidário-políticas de alguns personagens principais, o vencimento do prazo para devolução do circo, problemas na autogestão, tudo isso gera um esfriamento natural nas relações dentro do MPA, que se dispersa.

Cleston Teixeira, ator, cantor e compositor da zona sul mas que tem intensa relação com o movimento desde os seus primórdios, cita, sobre essa época “(...) os movimentos organizados – como o próprio MPA – estavam em fase de dissolução (...) por causa do envolvimento com a atividade política que, a partir da liberação dos partidos, passou a usar o gancho da militância pra extrair de dentro do movimento cultural, personagens que estavam na ação política (...)”. Contextualizando o período, ele arremata “(...) as pessoas que são difíceis de encontrar (...) com capacidade de coordenação (...) foram tiradas da ação principal, já que essas cabeças foram trabalhar na Secretaria e deixaram seus respectivos movimentos”.

Sposito, complementando essas informações, cita uma situação peculiar: Edson Tomaz de Lima Filho, o Edsinho, economista, filho e sobrinho de políticos atuantes no estado, sempre teve uma forte atuação orientando o MPA em seu fortalecimento enquanto movimento popular. Foi assessor de diversos políticos e trabalhou na administração Regional de São Miguel/Ermelino durante a gestão Mário Covas, entre 1983 e 1985. Dentro do grupo, é um dos poucos que, teoricamente, nunca foi artista, sendo antes um dos pontos de articulação e organização do grupo. Até o presente exerce cargo de assessoria dentro do PSDB, do qual é filiado.

Estudando a história do movimento, contudo, é a introjeção do ´político´ no ´artista´ o que vêm à tona. Zulu de Arrebatá, que fez parte da primeira formação do Matéria Prima e depois seguiu carreira solo, hoje é professor de História na rede pública. Gravou um cd independente em 2006 onde ficam visíveis suas raízes black, urbanas e suingueiras, uma ´ilha´ dentro de um grupo cujo predomínio é de uma musicalidade fincada nas tradições nordestinas. Outro caso que permite uma análise profunda é o do cantor e compositor Ceciro Cordeiro. Assim como Zulu, tem um disco gravado e mesmo sendo um entertainer urbano com uma artesania musical acelerada e sincrética, onde nota-se um vínculo histórico com o rock, a embolada, o cordel e a urgência do rap, na verdade ganha seu pão como assessor político de um vereador da capital.

Edvaldo Santana, com o refluxo da maré em meios da década de 1980, vai morar em Santa Tereza, no Rio de Janeiro. Retorna tempos depois e retoma sua carreira. Sempre independente, contorna barreiras e quebra tabus, lançando sistematicamente vários discos, mantendo coerência musical, poética e política. De todos os egressos do MPA, é aquele com carreira melhor estabelecida e, via de fato, o que menos flerta com a política dito partidária.

Sacha Arcanjo tem uma carreira com 4 cd gravados. Ainda que seja citado por muitos como o mais inspirado e renovador compositor da safra emepeana, com construções verbais que remetem ao panteão dos grandes letristas da música popular brasileira, sua atuação mais visível, paradoxalmente, é como coordenador da Oficina Cultural Luiz Gonzaga, no centro de São Miguel, trabalho este – também reconhecido por muitos – como vital para o fortalecimento cultural e artístico da região e profundamente vinculado à idéia de formação de público.

Cláudio Gomes é arte-educador. Como tal, tem sua carreira profissional ligada estreitamente com os corredores de instituições públicas ou não governamentais, de onde surge a maioria das oportunidades de trabalho. Como já é fato entre aqueles que professam uma arte literária, seus textos ficam secundados enquanto trabalha com educação informal.

Akira Yamasaki compõe, com Cláudio Gomes e Severino do Ramo (já falecido), o legado mais denso da poesia gestada nos primeiros anos do MPA. Apesar da rica produção, fincada na procura incessante do verso perfeitamente vestido de lirismo e contemporaneidade, é como funcionário da Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô) que ele garante seu sustento e o da família. Após longa hibernação, onde pouco ou nada produziu, há poucos anos Akira retomou os trabalhos, seja com um blog muito visitado com produção literária intensa (http://blogdoakirayamasaki.blogspot.com.br), seja com a produção e difusão artística, onde, entre muitos projetos, toca o Sarau da Casa Amarela (mensal) e o projeto Memórias Musicais, onde produz discos de alguns dos ´dinossauros´ do MPA (antigos cantores e compositores que ficaram alijados da indústria fonográfica), para que ao menos algumas das músicas destes protagonistas do movimento fiquem gravadas, ´guardadas´ e eternizadas. Atualmente, com José Vicente de Lima (o Zezão), é um dos mais devotados e desprendidos cultores da história e memória do MPA.

Raberuan, falecido recentemente, era funcionário da Casa de Cultura Antônio Marcos, em São Miguel, ligada à Secretaria Municipal de Cultura da cidade São Paulo. Era um dos mais dinâmicos produtores e guardadores orais da memória do movimento.

IV – Conclusão

Inquiridos a respeito, em seus depoimentos percebem-se distintas opiniões sobre os motivos que arrefeceram os ânimos dos militantes do MPA, ainda nos anos 80. Em comum, todos confessam que as respostas oficiais aos seus anseios, a partir de um determinado momento, não atendiam às demandas criadas e muito menos proviam as necessidades cotidianas de cada artista. A opção pela política em detrimento da carreira artística foi também uma forma de sobrevivência. Na entrevista com Cláudio Gomes, por exemplo, ele concorda que diferenças político-partidárias impediram, em algum momento, a continuidade do processo. Edvaldo, no entanto, vê a mesma problematização sugerida por Claudio, mas entende que não é só a opção política que impediu a sequência de trabalhos de todo o grupo. Atesta que foi a experiência do MPA que projetou as idéias dos futuros projetos de implantação das “Casas e Oficinas culturais que hoje existem nas periferias da cidade” e também em outras cidades do estado de São Paulo, conforme entrevista para Fábio Henrique Giórgio. (2010, p. 20)

Os mesmos argumentos são sustentados por Zulu, que entende que o grupo se dispersou porque cada um elegeu prioridades que, em algum momento, entraram em choque com as do coletivo. Sacha não tem dúvidas de que as simpatias políticas surgiram da naturalidade das relações. Discorre ele que essa politização – e, consequentemente, as afinidades partidárias – foi o que permitiu que caminhos fossem construídos e assim muitos no grupo pudessem ter renda e dar continuidade à carreira artística, mesmo que fosse de maneira ´bissexta´.

Raberuan, em entrevista de 2009, acentuava que o MPA nunca foi uma unidade. Eram, em seu dizer, várias cabeças com muitas respostas para diversas perguntas.

Luís Avelima, poeta, compositor, produtor cultural e tradutor, aproximou-se do Movimento Popular de Arte por meio do poeta Severino do Ramo (também já falecido), assevera que essa fissura não era percebida por quem estava mais afastado da linha diretiva. Segundo ele, podia-se perceber uma estrutura única na condução dos processos. Também Gilberto Lobato, jornalista e escritor que, morando em Itaquera, acompanhou as atividades do grupo, afirma que percebia-se uma certa unidade discursiva, tanto que alguns artistas mais afastados ressentiam-se de uma certa dificuldade em integrar-se ao grupo.

Em minhas entrevistas, percebi peculiaridades e complexidades de um grupo heterogêneo e multifacetado. Que a política influenciou a todos, permitindo que portas fossem ora abertas, ora fechadas e, em outros momentos, atalhadas, disso não restam dúvidas. O mais desconcertante, porém, é a forma paradoxal com que vários dos atores interpretam, historicamente, essas ingerências no processo de identificar-se, representar-se e inocular-se dentro de um projeto amplo, como foi o MPA, ou então para justificar possíveis erros e/ou acertos cometidos no calor da hora.

Fato é que o Movimento Popular de Arte foi muito importante para criar caminhos, interpretar o sentido histórico de toda uma região fadada ao ´esquecimento´ público, influenciar gerações de artistas surgidos a partir de seu advento, abrir portas para que fosse estabelecido um diálogo com as instituições políticas, sociais e culturais e – mais importante – estabeleceu um paradigma a ser superado, o de que os próximos atores sociais e culturais da região de São Miguel teriam que fazer mais, e melhor. Tarefa que também me propus, quando iniciei os primeiros rascunhos deste artigo.

Referências bibliográficas:

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Fontes:

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BAIRROS de São Paulo – Vol. 2 São Miguel, Itaim Paulista, Vila Matilde, Cidade Tiradentes. Direção, Roteiro e Pesquisa de Carla Gallo; Produção de Liniane Haag Brum; com as crianças Daniel A. Lima, Thayná C. Moura e Vivian H. Álamo; os entrevistados Augusto F. Lima, Joana C. Koschitz, João A. Santos, Paulo Fontes e Roseli S. Stella. Coala Filmes, (26´), colorido, SP. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=4UsqxX9ziFM&feature=endscreen <Acesso em 01/05/2012>

Discografia:

Movimento Popular de Arte. (São Paulo): Studio Eldorado, 1985, 1 disco