Questão referente a Sexta Investigação Lógica de Edmund Husserl

Demonstrando porque o preenchimento das formas de significação é um problema, em que pese uma elucidação fenomenológica do conhecimento, explique como a rigorosa distinção entre sensibilidade e o entendimento, ao culminar na impossibilidade de uma ontologia real, nos é apresentada como solução para o referido problema, segundo o que Husserl expõe nos §40 a §43 do Capítulo Sexto da Segunda Seção da Sexta Investigação Lógica.

A forma contém o ser. É evidente que, nas significações enformadas, as coisas não são tão simples como no caso da significação própria e de suas simples relações de recobrimento com a percepção.

A essência cognitiva do ver, na qual a objetidade que aparece se manifesta como dado ela própria, embora esteja fundamentando certos atos que ligam são relacionantes ou enformam de alguma outra maneira, que sejam esses atos aos quais se ajusta a expressão, nas suas variadas formas, os atos nos quais ela encontra o seu preenchimento relativamente a essas formas, são os atos nos quais ela encontra o seu fundamento numa percepção atual. Se juntarmos esses atos fundados, os atos inteiros, gerados por meio daquela fundamentação formal, poderemos dizer, uma vez suposta a possibilidade que acabamos de indicar, fica estabelecido o paralelismo, não entre as intuições de significação de expressão e as simples percepções que lhes correspondem, mas entre as intuições de significação e aqueles atos fundados na percepção.

Sempre que os pensamentos gerais se preenchem pela intuição, erigem-se, sobre percepções e outras aparições de ordem semelhante, certos atos novos, atos que se relacionam

com o objeto que aparece de uma maneira totalmente diferente das intuições que o constituem em cada caso.

A percepção não dá o ser das coisas, apenas a aparência, os atributos externos do que se está sendo visto, é a intuição por sua vez é que faz o preenchimento da forma que não é a coisa em si, a forma vazia, o fenômeno a ser significado. Por exemplo, a cor só pode ser compreendida na extensão e preenchida pela intuição, onde eu posso ver a cor pura e simplesmente, mas jamais o ser colorido, o ser colorido é invisível, não é alcançado pelos sentidos, o ser é uma irrealização do ser real, é movimento sombreado, volátil, pura possibilidade, uma figura opaca que necessita de preenchimento.

O objeto se dá de dois modos, ou a consciência apreende cognitivamente de forma direta, autêntica, sem intermediação simbólica ou o objeto se dá de modo inautêntico, isto é, se dá a conhecer por mediação simbólica e, portanto, de modo indireto. Ora, o conhecimento se processa quase que totalmente por representações do inautêntico, caracteristicamente simbólicas. Como garantir, portanto, que o conhecimento, fundado por atos de significação se caracterize como conhecimento de fato, a resposta a este problema se dá, grosso modo, a partir de dois conceitos, os conceitos de preenchimento e de evidência.

O conhecimento é uma síntese fundada num ato objetivante ou de forma mais completa, o conhecimento é um ato objetivante pelo qual se dá uma síntese entre o sujeito e consciência, que intenciona um objeto, e o objeto intencionado realmente apreendido numa intuição. O conhecimento se efetiva, portanto, quando ocorre uma síntese de correspondência. A intenção do objeto, que se caracteriza por sua natureza simbólico-lingüística, por si só não basta. É preciso preencher esse ato de significação. Em termos estáticos, o conhecimento é a unidade entre o pensamento que exprime e a intuição que expressa, ou ainda de modo mais preciso, o conhecimento se processa quando o pensamento que confere a significação é fundado na intuição e se relaciona por meio dela, a seu objeto. Mas Husserl não se contenta com a descrição fenomenológica da unidade estática do conhecimento. Ele ainda a completa com o que chamou de unidade dinâmica do conhecimento. Ora, a unidade dinâmica do conhecimento se baseia na consciência de preenchimento.

O preenchimento consiste na apreensão intuitiva do objeto que se dá posteriormente à sua intenção significativa de modo a preencher ou complementar esta intenção. Há, por assim dizer, uma diferença temporal uma vez que o preenchimento se dá após o ato de significação e uma diferença de qualidade, já que o preenchimento de intenção aponta para o fato de que o conhecimento se processa dinamicamente por graus ou camadas até uma síntese mais

acabada, mais perfeita e total do conteúdo do conhecimento, isto é, o objeto. Considerando o fato de que as Investigações Lógicas podem ser interpretadas como um conjunto de análises de atos, o objeto consiste no conteúdo.

Dado que como correlato intencional dos atos perceptivos, que são como escorços do objeto. Esses efeitos de perspectivas do objeto são contínuos e preenchidos pela intuição, de tal modo a alcançar um ponto limite, a saber, o objeto apreendido de modo absoluto, como uma identidade sintética, ainda que mostre seus diversos lados e sendo nisso continuamente uma só e a mesma coisa. O conhecimento é, portanto, um ato objetivante que se processa por camadas que são pouco a pouco preenchidas em direção da apreensão intuitiva absolutamente plena do objeto, isto é, a doação absoluta do objeto, denominada adequação. Independente de entrar na explanação husserliana sobre a adequação e seus tipos, o que por hora interessa é que a adequação é um ideal a ser alcançado pelo conhecimento enquanto ato objetivante e que, deste modo, dado que o conhecimento se processa por sínteses de preenchimento, ou seja, de modo gradativo, então a adequação também se efetiva de modo comparativo. Mas a adequação não deixa de ser um ideal buscado pelo processo cognitivo. A este ideal, por sua vez, Husserl chama de evidência, que tem a verdade como seu correlato objetivo. A própria evidência, é o ato daquela síntese de recobrimento, a mais perfeita de todas.

Para os propósitos, o que interessa é que o conhecimento é um ato objetivante, é um ato em que o objeto é dado e doado primeiramente de forma simbólica e inautêntica, mas desenvolvendo-se em direção ao seu preenchimento intuitivo, onde o objeto é apreendido em si mesmo.

O que o obriga a discutir a relação entre sensibilidade e entendimento para poder dar conta de explicar de que modo o objeto, que é transcendente ao sujeito, lhe é dado a conhecer a partir da percepção sensível. Juízos concatenados entre si têm a pretensão de certeza e verdade. Essa pretensão é satisfeita graças à referência objetiva do ato judicativo a atos mais fundamentais e primitivos que são as percepções sensíveis nas quais se manifestam os objetos sensíveis, tomados por Husserl como os objetos constituídos de modo simples e diretamente compreendidos, isto é, sem dependência de atos para sua constituição.

Na percepção, os objetos sensíveis estão aí num único grau de ato, eles não são submetidos à necessidade de terem que se constituir multirradialmente em atos de grau superior, os quais constituem seus objetos por meio de outros objetos que de per si já são constituídos em outros atos. Nesse sentido, a sensibilidade e o entendimento desempenham um papel de condição necessária para a manifestação do categorial ou dito de outro modo, Husserl descobriu, no decorrer da Sexta Investigação, que o conhecimento se funda na

sensibilidade e entendimento, uma vez que é por meio deles que se tem acesso direto ao objeto necessário para garantir a pretensão de significabilidade aos enunciados científicos que versam sobre os objetos e, até mais, a sensibilidade e o entendimento constitui simbolicamente novos objetos científicos. Esse posicionamento de Husserl foi alvo de uma autocrítica bastante fecundo sob diversos aspectos. Mas para os nossos propósitos, as considerações feitas até aqui são provisoriamente o bastante. Não é difícil perceber como na fenomenologia husserliana o conhecimento científico é tematizado como um processo em que as proposições eram constantemente preenchidas em sua carga intuitiva de tal modo a possibilitar uma evidência cada vez mais acentuada, porém, sem a necessidade de mecanismos de refutação.

Culminando na impossibilidade real de uma ontologia segundo Husserl que expõe nos §40 a §43 do Capítulo Sexto da Segunda Seção da Sexta Investigação Lógica, muito pode ser dito a cerca da fenomenologia de Husserl, que tem a pretensão inicial de ser um caminho, um método rigoroso que tem por meta a constituição da ciência da essência do conhecimento que é sempre conhecimento das coisas, um conhecer de acontecimentos conscientemente dados, uma exegese do eu, egoidade do eu, onde compreender Husserl é compreender a si mesmo, mundo de possibilidade, adequação.

Ontologia é a ciência que estuda o ser enquanto ser, segundo Aristóteles, que se opõe às ciências particulares que "englobam qualquer parte do ser e estudam as suas propriedades". A ontologia é o estudo da essência do ser, daquilo que faz com que um ser seja, é o estudo do fundamento da ordem das coisas com relação ao ser. Para Husserl isso é impossível

A fenomenologia irá se colocar em outra perspectiva. Ela terá a preocupação em mostrar, e não demonstrar, em explicitar as estruturas em que a experiência se verifica, em deixar transparecer na descrição da experiência as suas estruturas universais. O projeto de Husserl não consiste em erguer uma ciência exata da fenomenologia. As ciências exatas têm o seu exemplo na matemática que é uma ciência eidética dedutiva. A fenomenologia será uma ciência rigorosa, mas não exata, uma ciência eidética que procede por descrição e não por dedução. Ela se ocupa de fenômenos, mas como uma atitude diferente das ciências exatas e empíricas. Os seus fenômenos são os vividos da consciência, os atos e os correlatos dessa consciência.

Não há fenômeno que não seja fenômeno para uma consciência de algo, não há consciência sem que ela seja consciência de algo, sem que ela seja determinada como certa

maneira de visar os objetos, o mundo. Para toda modalidade da consciência intencional temos uma correspondência ou certa maneira do objeto se apresentar à consciência. A todo conteúdo visado, a todo objeto, noema, corresponde uma certa modalidade da consciência, noesis.

O objeto é o correlato intencional do pólo subjetivo, noesis e noema são palavras traduzidas do grego, que significam respectivamente, o ato do conhecimento e o conteúdo relativo ao ato do conhecimento. O ser em si não se esconde atrás das aparências ou do fenômeno, mas a percepção do real só pode ser apreendida em perspectivas, em perfis. E a finitude irremediável da percepção. É da essência do percebido não poder ser objeto da exploração exaustiva, mas sim de desvelar-se progressivamente e de ser apreendido em perspectiva.

A intuição da essência e as regiões do ser. A representação não produz o ente mas sim o ser-objeto de um ente. O objeto será alvo de descrição por parte da consciência, e nele se verá que existe núcleo central invariante que permanece ao longo de todas as variações imaginárias. Husserl chamará eidos ou essência a essa estrutura invariante cuja presença permanente define a essência do objeto. As essências se referem ao sentido do ser do fenômeno. À fenomenologia irá, assim, distinguir um certo número de regiões ontologias regionais, que permitem estudar e classificar os vários tipos de eidos. Husserl chamará de ontologia regional ou material aquelas que constituem o domínio do percebido, do imaginário, da natureza física, da região consciência, eidos dos objetos materiais, culturais, etc.

Toda ciência necessita explicitar os seus conceitos fundamentais e isto será tarefa da ontologia regional. Ela explicitará o que pertence ao objeto desta ciência, de modo universal e necessário, isto é, explicitará as suas estruturas essenciais. Ela se distinguira da ontologia formal ou das ciências eidéticas formais, que constituem o domínio da lógica dedutiva, da lógica das significações, do pensar em geral. Ela investiga em que condições algo pode chegar a ser em geral objeto do pensamento, as condições do pensar de objetos em geral, não importando de qual classe ele seja. A visão das essências é uma intuição, isto é, um ato de conhecimento direto, sem intermediários, que nos põe em presença, num face a face ao objeto em pessoa. Ele chamará de intuição doadora a este ver que constitui seus objetos.

Conhecer é ver, colocar-se à distância dos objetos, dirigirem-se a eles visá-los progressivamente. Pois existir significa, para Husserl, existir como coisa do mundo, se o mundo é a totalidade do ente, e se, na redução transcendental, a validade ontológica do mundo é colocada entre parênteses pelo ego puro, então não se pode afirmar a existência do ego sem abrir mão da própria perspectiva transcendental.

A radicalidade da fenomenologia husserliana consiste justamente no projeto de reconsiderar o mundo, isto é, a totalidade do ente, a partir da suspensão de toda e qualquer tese de existência, logo, a partir da neutralização de toda e qualquer ontologia enquanto conhecimento da realidade. Recua-se da experiência natural do ente em si mesmo para a esfera imanente da subjetividade, entendida como lugar originário de toda formação objetiva de sentido e de toda validade de ser. Esse lugar, o lugar do transcendental, precisamente por ser o lugar em que se constitui originariamente o ente em sua totalidade, não é ele mesmo absolutamente nada de ente.