PODE TER SIDO ANESTESIA

Durante quase seis anos, não tivera dúvidas de que o meu caso fora provocado por virose, até que recebi um cliente especial na Delegacia de Vigilância e Proteção de Menores, onde eu trabalhava naquela época: um médico, cuja clínica havia sido visitada por “amigos do alheio” e os vestígios indicavam ser os infratores menores de idade.

Após as cabíveis providências, devido à minha memória aguçada, reconheci o médico de algum lugar do passado e me fiz identificar. Ele se lembrara de mim e assustara-se com a cadeira de rodas. Contei-lhe que fora vítima de uma virose. Ele ponderou:

— Que vírus, hein? Você se submeteu a alguma cirurgia antes?

— Não — respondi.

— Na Medicina Alopática, geralmente, atribui-se a vírus o que não se encontra a causa. Tratei de uma senhora que ficara paraplégica por causa de uma anestesia durante o parto. Às vezes, a paralisia dá-se na ocasião, podendo manifestar-se até um ano depois.

Um estalo tomara conta do cérebro e a minha voz emudecera. Nada mais comentei sobre a paralisia. Queria ficar só para rebobinar o filme nos meandros de mim mesma.

O médico saíra. Fechei a porta do gabinete e tomei o caminho de volta rumo ao passado. Parecia que voltava no tempo. Calendário entre os dedos, podia precisar até as datas. Havia mesmo feito uma cirurgia, pouco menos de onze meses antes da tão devastadora catástrofe.

Lembro-me de que estava com problemas renais e o especialista diagnosticara “pielonefrite”. Aconselhara-me a procurar um ginecologista depois do tratamento, pois os pielos, condutos que transportam a urina dos rins para bexiga, encontravam-se excessivamente esticados. A bexiga estava projetada para baixo, dependurada.

Logo que possível, submeti-me à cirurgia de períneo, suspensão de bexiga e amputação do colo uterino. Afinal havia cumprido a tarefa materna: quatro filhos.

Oito dias depois, já estava no trabalho. Lógico que a cirurgia recente me incomodava, mas tudo dentro dos parâmetros da normalidade. A lembrança do cirurgião e do anestesista ficara gravada na mente. A anestesia fora na região lombar, cuja agulhada foi repetida sob a alegação de que penetrara em lugar diverso. Lembro-me até do que conversavam durante o trabalho. Falavam de agricultura, tratores, pescarias...

O tempo passava e eu sentia cansaço nos membros inferiores. Achava comum. Quantas pessoas reclamam de dores, canseira nas pernas? Quem sabe seria por causa da vida sedentária que levava.

Quando sentada à mesa de trabalho, tinha sempre uma cadeira ao lado para, de vez em quando, elevar as pernas. Sobrepunha, jeitosamente, uma sobre a outra para que parecessem mais grossas, uma vez que sempre as tive finas. Durante as várias viagens que fazíamos para rever parentes, ficava inquieta no banco do passageiro: cruzava as pernas, sentava-me sobre elas, postava os joelhos no painel do carro, ficava em posição de yoga, abraçava os joelhos e, finalmente, tínhamos que descer para controlar o enfado. Tal comportamento não se dava em épocas anteriores à cirurgia, posso afirmar.

Nunca parei para pensar nisso. Sempre fui uma pessoa otimista que atribui doenças mais ao registro na mente do que ao físico.

Quando esperava o nascimento dos filhos, fui à maternidade dirigindo o próprio carro, pois o Alfredo, no exercício da Odontologia, não podia deslocar-se às pressas. Os partos sempre foram normais e rápidos. Por duas vezes, quando ele chegara ao hospital, fora recebido por uma carinha nova.

Meu jeito determinado sempre me emprestara coragem para tudo. Mamãe legara o exemplo para todos nós. Nunca errara por omissão. Mulher excessivamente destemida, determinada!

Quando esperava os filhos na porta da escola, costumeiramente, depois da cirurgia, elevava as pernas até o banco do passageiro para descansá-las.

Certa vez, tendo que me apresentar na Assembléia Legislativa, tomei banho na hora do almoço e, completamente despida, fui ao guarda-roupas escolher um vestido. Ao olhar-me no espelho, notei acentuada flacidez no baixo-ventre. Parecia que a musculatura estava a distender-se, segura apenas por um ponto, semelhante a uma covinha no rosto de criança. Mentalmente lembrei-me de que havia três anos que não fazia nenhuma modalidade de exercício físico. A última vez fora um ano de intensa natação. Daquela época, lembrei-me de uma colega da natação que me mostrara flacidez na mesma região que a minha, porém, bem mais acentuada. Pensei nos meus 36 anos de idade e senti que estava no cume da pirâmide, pronta para o declínio. Agora teria mesmo que cuidar das formas físicas. Já não era uma adolescente. Teria que mantê-las. Decidi voltar aos exercícios na manhã seguinte.

Por volta das 5h30min, eis-me de bermuda e tênis fazendo Cooper em volta do quarteirão. Depois, um bom banho e tudo bem. Partia para as tarefas diárias: levava a filha ao colégio e seguia para o trabalho. A vida ficara até mais agradável.

Vinte dias e a mesma rotina, até que senti uma comichão na extremidade do dedão do pé esquerdo como se a sandália estivesse a apertá-lo. Estava no trabalho e comentei que a sandália era nova.

No retorno a casa, após o banho, percebi que leve dormência ascendera à metade de ambas as pernas. No outro dia, após o banho, elevara-se até as coxas e, à noite, novamente após o banho, atingira a região pélvica. Tudo muito leve e discreto. A sensação era de que a pele estava mais espessa.

Trabalhando num complexo hospitalar, não me era difícil procurar um médico. Até mesmo uma consulta de corredor. E foi o que fiz. O meu amigo médico prescrevera-me relaxante muscular e até brincara dizendo que eu não poderia ser um gandula no campo de futebol. A medicação provocara-me náuseas, e eu a suspendi. Como os demais, fiz um prontuário e, legalmente consultei, dias depois, a maior autoridade médica em ortopedia daquele hospital-escola. A resposta foi tranqüilizadora. Tudo se devia mesmo ao Cooper que eu fazia todas as manhãs. “Tudo se normalizará”, completou ele.

Continuei como se nada tivesse, dirigindo o carro, trabalhando, estudando para o concurso ao cargo de Defensor Público, e até preparando uma festinha de aniversário para os filhos, ambos de março.

Recordo-me de que, durante uma noite, sofri uma dor passageira no abdome como se fosse provocada por gastrite.

Por vezes, quando ficava de pé, tinha a sensação de que as pernas estavam molhadas, levemente. Em Medicina, era leiga. Mas não havia motivos para temer, pois a dormência não subira mais e eu havia consultado um bom médico que, na dúvida, encaminhar-me-ia a outro especialista ali mesmo no hospital.

Na festa em casa, conforme relatei no início deste livro, começou a me faltar controle motor até que fui parar no Instituto Neurológico, onde não me perguntaram sobre a feitura de qualquer cirurgia. Dez dias depois, o diagnóstico era dado: mielite transversa virótica, uma inflamação na medula espinhal.

A medula é basilar para o ser humano. É por meio dela que o cérebro envia as ordens para o funcionamento de todo o organismo. Os nervos enfeixados na medula são os veículos que conduzem ao cérebro, para serem decodificadas, as sensações de dor, frio, calor etc. A mielite danifica os nervos e interrompe os fluxos nervosos, com perda da sensibilidade. É uma doença gravíssima e é chamada mielite transversa porque acontece no sentido horizontal. São inúmeras as suas causas. É uma síndrome incapacitante, paralisa tudo o que esteja abaixo dela: pulmão, bexiga, intestinos e aparelho sexual, além da locomoção. Se acontece na porção cervical, a pessoa fica tetraplégica. Pode matar.

Bom que eu fiquei sabendo disso bem depois quando me meti a estudá-la. Naquela época teria sido muito doloroso saber da irreversibilidade dos danos que ela me havia causado.

É bom ter a esperança de que tudo passará, embora o final feliz dos contos de fada não haja acontecido comigo. Driblo tantas dificuldades! Sou um soldado de mim mesma! Um guardião estático sempre pronto à frente das trincheiras.

Eis-me, depois de todos esses anos, irreversivelmente paraplégica! Com uma vida de muitas batalhas para não ser escória de uma sociedade que só aceita os fortes, perfeitos e vencedores.

Leigamente falando, acredito haver existido erro médico no princípio (quando da anestesia) e, posteriormente, quando procurei, numa consulta formal, o médico ortopedista e dias depois o seu sucessor, quando os sintomas de um quadro neurológico eram bastante acentuados até com retenção urinária. Em nenhuma dessas ocasiões, fui encaminhada a outro especialista, não obstante as minhas súplicas, quando da última vez.

Quem sabe poderia estar andando de muletas, ou até sem elas, se não fosse o desinteresse e a insensibilidade dos profissionais que me assistiram. Não atribuo a fatalidade a ninguém. Nada agora me devolverá as pernas. A ordem é aceitar-me, como estou, para viver melhor. Luta é a minha palavra de comando! E o campo de batalha é o meu “habitat”.

Sei que as pesquisas científicas avançam. Estamos diante de uma revolução médico-tecnológica, sem precedentes, desencadeadora de processos curativos extraordinários nas áreas neurológica e genética. É o marco deste novo milênio, que enfoca o uso da clonagem de embriões, principalmente nas pesquisas das chamadas células-tronco, tentando buscar a superação dos problemas do ser humano.

A experiência com célula tronco no Brasil deixa o campo da teoria e passa a ser implementada na prática, após experimentos positivos em laboratório, tentando substituir a célula morta por outro tecido saudável.

“Células tronco são células progenitoras, capazes de originar qualquer tipo de célula no organismo, dependendo do meio em que se encontra. Até recentemente encontrada apenas em embriões, trata se, na verdade, da mais importante célula do corpo humano, já que possui a capacidade de se transformar em qualquer tecido ou órgão perfeitos. Simplificando, pegue uma célula tronco e implante a num coração e ela se transformará em célula de coração. Coloque a num fígado e se transformará em célula de fígado; num cérebro, e ela se tornará uma célula cerebral. Essas células tronco são coletadas do sangue da pessoa, expandidas em cultura laboratorial e reinjetadas perto do local da lesão, com o objetivo de que se transformem na célula faltante”. Por isso não há implicações éticas envolvendo a experiência.

Entretanto o deficiente tem que manter a cabeça erguida, continuar fazendo fisioterapia para que as articulações mantenham-se flexíveis e a musculatura não se atrofie. A receita é cuidar-se, manter-se ativo, com uma grande dose de auto-estima para ser sempre um candidato apto a receber o tratamento celular que, com certeza, baterá à porta.

Extrato

Sinto saudades!

Uma saudade própria,

Latejante,

Quente e profunda.

Uma saudade

Que se escancara em gritos,

Rasga dimensões,

Estampa cacos,

Cega os olhos,

Sufoca os sentidos,

Deixando o cérebro confuso,

Inerte,

Ensandecido.

E, no entanto

Há consciência

E o desejo se agiganta

Numa enorme vontade de viver.

Estou literalmente paraplégica! A destreza dos meus passos foi banida. Não tenho movimentos. Há muito não convivo com eles. Apenas sonho com o acirrado Cooper pela rua de minha casa. Quando acordo, estou inerte, quietinha, do jeito que me deitei. Nem o cobertor move-se sobre mim.

Tenho saudades do que fui! Saudades de andar... Embora discípula do otimismo, guerreira de muitas batalhas, por vezes, sinto-me reclusa, prisioneira de minha teia. Faltam-me os passos para liberdade. Como eu era feliz e não sabia!

Genaura Tormin
Enviado por Genaura Tormin em 09/04/2007
Reeditado em 17/01/2010
Código do texto: T443289
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