VAGABUNDO (ÁLVARES DE AZEVEDO) - HUMOR EM LIRA DOS VINTE ANOS

Eu durmo e vivo no sol como um cigano,

Fumando meu cigarro vaporoso,

Nas noites de verão namoro estrela;

Sou pobre, sou mendigo, e sou ditoso!

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;

Mas tenho na viola uma riqueza:

Canto à lua de noite serenatas,

E quem vive de amor não tem pobreza.

Não invejo ninguém, nem ouço a raiva

Nas cavernas do peito, sufocante,

Quando à noite na treva em mim se entornam

Os reflexos do baile fascinante.

Namoro e sou feliz nos meus amores;

Sou garboso e rapaz... Uma criada

Abrasada de amor por um soneto

Já um beijo me deu subindo a escada...

Oito dias lá vão que ando cismado

Na donzela que ali defronte mora.

Ela ao ver-me sorri tão docemente!

Desconfio que a moça me namora!...

Tenho por meu palácio as longas ruas;

Passeio a gosto e durmo sem temores;

Quando bebo, sou rei como um poeta,

E o vinho faz sonhar com os amores.

O degrau das igrejas é meu trono,

Minha pátria é o vento que respiro,

Minha mãe é a lua macilenta,

E a preguiça a mulher por quem suspiro.

Escrevo na parede as minhas rimas,

De painéis a carvão adorno a rua;

Como as aves do céu e as flores puras

Abro meu peito ao sol e durmo à lua.

Sinto-me um coração de lazzaroni;

Sou filho do calor, odeio o frio;

Não creio no diabo nem nos santos.

Rezo a Nossa Senhora, e sou vadio!

Ora, se por aí alguma bela

Bem doirada e amante da preguiça

Quiser a nívea mão unir à minha

Há de achar-me na Sé, domingo, à Missa.

*Eat, drink and love; what can the rest avail BYRON. D. Juan.

*“Come, bebe e ama; de que pode nos valer o resto?” BYRON.

Tradução: Coleção L & PM Pocket, nº 118, pág. 176.

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Vagabundo é a “história” poética de um homem que não tem teto. De um homem que vive ao relento, gosta de um cigarro e mesmo assim é feliz (“ditoso”).

São quadras (quatro versos) com o seguinte esquema de rimas: o segundo verso rima com o quarto, totalizando quarenta versos divididos em dez estrofes.

São versos decassílabos (dez sílabas poéticas). Vejamos a escansão da primeira estrofe, onde o eu lírico (a voz que “fala” na poesia) se apresenta e diz a sua sina (pobre, mendigo e ditoso):

(“Eu-dur-moe-vi-vo-no-sol-co-moum-ci-/ga-no,”)

(“Fu-man-do-meu-ci-gar-ro-va-po-ro-/-so,”)

(“Nas-noi-tes-de-ve-rã-na-mo-ro-es-tre-/la;”)

(“Sou-po-bre-sou-men-di-goe-sou-di-to-/so.”)

E assim o jovem poeta continua pelas quadras restantes, sempre nessa tonalidade, sem dinheiro, namorador sonha com a donzela, nomeia-se filho da lua e procura sempre o contato com a natureza, etc.

Na profundidade do texto podemos entender que é um homem sem desejos materiais, não tem onde morar, não tem dinheiro, reza para Nossa Senhora, freqüenta a missa aos domingos e é feliz.

Tudo narrado (contado) em tom de humor, diferente do restante de sua poesia e, imprimindo um novo viés em suas páginas literárias, deixando de lado palavras como: palor, macilento, cadáver, funéreo, morte, etc., abandonando, assim, as “distorções macabras” que o consagraram na Literatura Brasileira, procurando um novo olhar para seus escritos.

Augusto de Sênior.

(Amauri Carius Ferreira)

(FERREIRA, A. C.)