A monstruosa máquina pensante e o campeão solitário: considerações sobre a covardia

Em 1997, o então campeão mundial de xadrez, Gary Kasparov, voltava a enfrentar um poderoso computador desenvolvido pela gigante IBM, especialmente, para vencê-lo nesse jogo. Era um match revanche de outro, ocorrido no ano anterior, quando o jogador havia sido surpreendido pela máquina e perdido o primeiro jogo da disputa, tendo virado o escore posteriormente, vencendo 3, e empatando outros 2 jogos.

Para o novo embate de 6 partidas, a IBM contruiu um monstro eletrônico desenhado especialmente para a disputa, contituído por um grande número de processadores atuando paralelamente.

O encontro foi cercado por enorme estardalhaço dos meios de comunicação, especialmente na internet, onde se tornou o evento mais comentado até então, verdadeiro marco na história da rede. Lembro ter sido a primeira vez em que acessei a internet, tendo acompanhado ao vivo os lances de uma, ou duas partidas da contenda.

A o primeiro jogo do encontro resultou, conforme esperado, em vitória do campeão mundial. Sua única derrota no match anterior tinha decorrido de seu total menosprezo pela capacidade da máquina. Sua descrença no potencial do oponente o induziu a jogar desleixadamente, tendo sido incapaz de sustentar a posição, já arruinada, ao despertar para o que se passava no tabuleiro. Mantendo-se alerta, nesse segundo encontro, o campeão não daria chances ao adversário.

Na segunda partida, no entanto, algo estranho ocorreu: após um inusitado lapso de 15 minutos, a máquina apresentou uma resposta inesperada a um lance do campeão. Algumas peculiaridades do “perfil psicológico” das máquinas são bastante conhecidas. É sabido que os computadores “não conseguem resistir” a certas vantagens imediatas. A maneira como são programados, a “forma como pensam”, impõe certas compulsões, certas gulas, de modo que a máquina não consegue se abster de buscar voluptuosamente as vantagens oferecidas, como iscas envolvendo anzóis, sempre devoradas gulosamente por eles, mesmo quando, eventualmente, venha a se mostrar fatal em um futuro distante.

Estranhamente, após a longa e surpreendente demora, o computador surpreendeu seu oponente recusando sua capciosa oferta, e fazendo um lance nada mecânico, muito diferente de qualquer atividade resultante de uma máquina.

O jogo prosseguiu, resultando em uma inesperada vitória da máquina, revelando estilo inacreditavelmente humano. Análises posteriores ressaltaram ainda uma peculiaridade adicional igualmente surpreendente: o lance final da máquina incorria em um erro que pareceria normal a um humano, mas de um tipo que as máquinas nunca deixam passar. Uma imprecisão na jogada da máquina permitiria que o campeão se safasse do perigo iminente, aplicando no oponente uma sucessão interminável de cheques conhecida como “cheque perpétuo”. Ao campeão também passou despercebida a possibilidade que, supostamente, uma máquina nunca teria deixado passar; cpnsequências de nossas diferenças psicológicas.

Após o empate no terceiro jogo, Kasparov expôs publicamente, em entrevista coletiva, suas fortes suspeitas de que a máquina teria tido a ajuda de alguma mão invisível, relembrando o gol de Maradona na copa de 86, feito com o auxílio da mão de deus.

A sugestão de trapaça acirrou os ânimos; o espetáculo havia sido montado como parte de uma promoção publicitária, não poderia macular o nome da IBM, patrocinadora, organizadora, financiadora, juíza e rival do campeão na contenda. A notoriedade do evento superava qualquer expectativa, tratava-se do evento mais comentado na internet até então.

A cordialidade com que os contentores vinham se enfrentando foi substituída por uma relação de animosidade; declarações ríspidas de ambos os lados passaram então a marcar as coletivas do campeão e da equipe da IBM, constante de programadores e grandes-mestres de xadrez. Um time de grandes-mestres havia sido trazido pela empresa para acompanhar o torneio e acessorar a equipe principal, permanecendo ocultos na sala do computador, de acesso restrito a um poucos funcionários.

A partir do terceiro jogo, Kasparov passa a pedir insistentemente as cópias do programa, as provas de que os lances haviam sido efetuadas pela máquina e não por pessoas. Também se queixa de uma espécie de terrorismo intimidatório efetuado com o intuito de desconcentrá-lo. Inicialmente a IBM promete apresentar as cópias, mas em seguida retira a promessa, alegando terem sido feito ajustes no programa durante o embate. Os ânimos permanecem cada vez mais acirrados.

Sob esse clima tenso, Kasparov joga partidas ruins, abaixo de seu potencial, empatando a quarta e a quinta partidas.

O sexto embate foi uma lástima. Kasparov perdeu o jogo final, e consequentemente a contenda, com uma atuação lamentável, muito abaixo da esperada para o grande campeão. A trapaça o abatera; o rancor impotente dinamitara seu poder de concentração.

Para a IBM, em contraste, o resultado da vitória foi avassalador; as ações da companhia subiram quase 15%, o equivalente a centenas de milhões de dólares. Os acessos à internet foram tantos que congestionaram a rede. A IBM retornava à cena em grande estilo, para competir com as jovens gigantes, como a Microsoft.

Tendo obtido tão retumbante vitória, a IBM, simplesmente lacrou seu computador, nunca mais o utilizou; nunca lançou cópias comerciais do programa vencedor, e nenhuma outra. Venceu e abandonou a vitoriosa experiência, sem colher dela nenhum outro resultado que não o promocional. Apesar dos imensos lucros angariados com o evento, se recusou a promover um terceiro match decisivo, para o desempate.

Quanto às acusações, bastaria à IBM ter mostrado ao público o programa vencedor para rechaçá-las, nunca o fêz, nunca o fará. Ao que parece o incrível monstro eletrônico estava mesmo aliado a um time de grandes mestres aos quais era permitido confabular, propor e retroceder lances, trocar ideias testá-las, tudo isso durante o jogo. Armados tão fortemente, e em conjunto, os escudeiros acabaram tendo participação decisiva na contenda contra o campeão solitário.

Atordoado pela covardia do poderoso inimigo, mais que por suas armas, o campeão acabou sucumbindo. A vergonhosa participação da IBM, sua trapaça covarde, nunca foi admitida pela companhia. Houve lucros, rancores, mas nenhuma glória. Mais que tudo, o que houve foi covardia.