Novas considerações sobre o absurdo

Costumamos achar que vivemos uma normalidade, que o mundo cotidiano ao nosso redor é bastante normal, aceitável, embora, eventualmente, nos deparemos com situações absurdas, vistas na maioria das vezes pela televisão, umas poucas nas redondezas.

Suponhamos, no entanto, que o absurdo não seja a exceção, mas a norma: que aconteceria se vivêssemos em um mundo completamente absurdo, irracional, sem pé nem cabeça, em um mundo que, sob o ângulo da racionalidade parecesse ter sido arquitetado por loucos? Como nos sentiríamos tendo nascido e crescido em mundo assim?

Acredito que nos acotumaríamos com ele, por mais louco e absurdo que fosse, considerando tudo aquilo a normalidade, e, despropositada, qualquer correção. De fato, penso que vivemos em um mundo assim, completamente absurdo, injustificável, mas, com o qual estamos acostumados. Acredito que, devido ao costume, vivemos como loucos, como nossos pais o faziam.

Penso que, caso o absurdo diário tivessse sido repentinamente imposto sobre nós, teria parececido gritante, insuportável. Tendo nascido imersos nele, no entanto, acostumamo-nos, e nem o percebemos como tal. Aliás, creio que para quase todos nós, o que se opõe ao absurdo não é a razão, mas o costume; e podemos nos acostumar com qualquer coisa, esse o verdadeiro fundamento do absurdo!

Tente supor que vivamos em um mundo assim, completamente absurdo, um mundo sem pé nem cabeça no qual todas as nossas ações sejam desconectadas, sem nexo; que passemos a vida executando apenas tarefas absurdas, sem atentar ao que importa, como loucos. Parece difícil ao menos imaginar possibilidade tão absurda.

Mas, consideremos um cidadão brasileiro comum em seu dia a dia. Ele acorda cedo, ingere alimento impróprio, e se dirige para o trabalho, gastando, talvez, umas duas horas para isso. Tendo trabalhado durante umas 8, retorna para casa, chegando lá coisa de duas horas mais tarde para ligar a televisão, assistir umas novelas e sonhar com a aposentadoria, dia após dia. Também sonha comprar os produtos anunciados na tela; almeja comprar uma nova geladeira, e coisas assim. Labuta diariamente participando de alguma etapa na produção e satisfação desses sonhos diários. Também sonha com o fim de semana, quando terá alguma folga para o descanso.

Seu grande sonho, no entanto, é, provavelmente a aposentadoria, quando estará livre de seu chefe, da obrigação do serviço diário, da chateação no caminho e de outros percalços. Sonhará quase diariamente com a aposentadoria até que ela chegue, quando passará a sonhar com o passado, com a juventude gasta numa labuta injustificada. Labutou durante toda a vida para manter a normalidade. Labutou para permitir a todos sonhar com uma nova geladeira, e com a aposentadoria, no fim sonha em ter vivido a vida que não viveu.

Poderia ter mantido sua geladeira por mais tempo, assim como seu carro, seus outros bens, a maioria deles descartados ainda em bom estado, e nesse caso não precisaria ter labutado tanto. Nesse caso, não precisaria ter ganhado o dinheiro usado para comprar esses produtos, nem produzir tanta coisa, numa quantidade tão imensa que inútil. Mas, sendo assim, todos poderiam reduzir a labuta e ter tempo para si (o que é mal visto por muitos, a quebra da normalidade é sempre um risco). Desse modo, todos poderiam ter vivido suas próprias vidas, teriam tido tempo para si, sem gastar todo ele numa atividade sem sentido para si próprio, justificada apenas como parte de um sistema de engrenagens complexo. Não há, normalmente, um sentido pessoal na atividade diária das pessoas, justificada, apenas, como uma etapa na produção e distribuição de bens e serviços que mantêm o mundo girando normalmente. E assim seguem nossas vidas.

Convém lembrar que diariamente ele ingere alimentos imprórios que ensina seus filhos a comer também. Originalmente os refrigerantes foram lançados como xaropes; ninguém suportava aquelas beberragens intragáveis. Mas podemos ser convencidos dos maiores absurdos, depois bastará nos acostumar a eles. Lembro que, quando criança, me desagradava o gás carbônico injetado nessas bebidas. Quem terá tido a absurda ideia de enfiar esse nosso dejeto em substância para o consumo? Mas embora aquilo me desagradasse francamente, era compelido a beber, e o fiz repetidamente até me habituar ao fato, uma lástima, nada ganhei com o costume pouco saudável. Creio ter sido assim com todos os que foram poupados desse flagelo até certa idade. O mesmo vale para os inúmeros “alimentos” nada recomendáveis pelos quais costumamos pagar mais caro que pelos verdadeiros. É que os alimentos recomendáveis nunca são recomendados pelas propagandas, esses não precisam recomendação. Os anúncios só estimulam o consumo de porcarias quase venenosas das quais deveríamos manter distância. Fossem boas e não haveria a necessidade de gastar tanto dinheiro e esforço em propagandeá-las, naturalmente. Nosso mundo é meio estranho.

Embalamos nossas bebidas em garrafas feitas para durar por milênios. Durarão, trilhões delas.

Tendo aprendido a comer essas coisas intragáveis e nada saudáveis, tratamos de repassar o hábito a nossos filhos, socializando-os, introduzindo-os na normalidade, fazendo-os ser como todo mundo, absurdos. Temos que nos esforçar para isso; mas, com o tempo, eles aprendem a saborear essas “delícias”, ficarão até dependentes delas, e repassarão o hábito para os seus.

Mas não vivemos apenas para comer (embora uma quantidade crescente de pessoas venha sendo envolvida por uma obsessão que as compele a comer desbragadamente, não com o intuito de se alimentar, mas causando a si mesmo males extremos, deliberadamente), a maioria, creio, concordaria, vive para comprar coisas, seu maior prazer. Adoram trocar o fogão, a geladeira, o carro. Compram roupas que nunca usam, sapatos, bolsas, e toda sorte de quinquilharias. Compram pelo prazer da compra, raramente pela utilidade do objeto, usualmente desnecessário, já tendo, previamente, adquirido tudo de que necessitam para viver. Depois são obrigados a jogar tudo no lixo.

Talvez a mais desejável de todas as trocas seja a do carro, que a maioria almeja fazer anualmente, de modo a obter o último modelo. Um objeto sólido como um carro poderia ser feito para durar 50 anos, talvez 100. 10 com muita facilidade, mas não nos preocupamos com isso; e quem iria querer um calhambeque de 30 anos? Então os carros são trocados regularmente, ano após ano, ao menos pelos que possuem recursos para tal. Talvez devêssemos apreciar um carro durável e antigo, que não precisasse ser trocado anualmente, necessidade relativa a objetos vagabundos, descartáveis. Desfazem-se, no entanto, de um objeto novo, em perfeito estado, que poderia durar décadas, mas... qual seria o propósito de permanecer com o mesmo carro? Todos sentem enorme prazer em trocá-los anualmente.

Além disso, caso as pessoas parassem de trocar seus carros haveria uma interrupção na cadeia produtiva. Não comprando carros, as fábricas teriam que reduzir sua produção, comerciantes e fabricantes teriam que reduzir o número de funcionários, os demitidos reduziriam seu consumo, causando um enorme transtorno e redução em toda a cadeia produtiva. Assim, todos precisam continuar querendo trocar seus veículos, e o fazendo, sempre que possível, de modo a manter aceso esse mesmo desejo em todas as pessoas. Do contrário seria a ruína de todo o sistema, o colapso da economia e de nosso modo de vida. Para mantermos as coisas como estão, devemos cotinuar a trocar todos os nossos objetos, ainda que novos e intactos.

Isso acarreta certos problemas para o mundo, como um excesso de lixo, já que todos queremos comprar quase tudo o que nossos olhos consigam enxergar e nossos bolsos abarcar, mesmo sem o menor propósito, tratando-se apenas da compra pela compra, esse prazer singelo. Mas isso é outra história. Aliás, compramos bebidas, a própria água, igual à que nos chega nas torneiras de casa, embaladas em garrafas extremamente duráveis, capazes de perdurar por milênios, coisa espantosa. Poderíamos abrir a torneira do filtro e retirar dali a nossa água, a mesma que bebemos durante toda a nossa vida. Nossos filhos acreditarão ser essa água imprópria para o consumo, acreditarão ser de alguma forma, uma coisa nojenta. Então, em vez de retirar a água do filtro, compramos essas garrafinhas, bebemos a água e jogamos fora a garrafa feita de polietileno, material extremamente resistente, capaz de durar milênios. As garrafas descartadas hoje aos bilhões permanecerão por aí durante milênios. Se nada for feito, logo elas abarrotarão por completo todo o solo do planeta. Uma parte considerável de nosso lixo é desse tipo. Completamente desnecessário, e resistente, não havendo destinação conhecida para ele.

Mas isso talvez não seja problema nosso, demorará uns... uns.... uns 50 anos para que o lixo imenso transborde de baixo do tapete para o qual tem sido varrido, e, portanto, problema apenas para nossos filhos e netos. Mesmo assim, como nos acostumamos com qualquer coisa, as montanhas de lixo, ubíquas nesses tempos futuros, parecerão normais aos cidadãos de então, acostumados com elas.

Mais incômodo para nós é o tempo gasto para ir e vir ao trabalho, diariamente, um dos problemas mais acentuados em nossos tempos. Nas cidades grandes, onde habita a maioria da população, os que não têm veículo próprio perdem, em média, entre 3 e 5 horas diárias nessas idas e vindas, uma lástima. Tempo desagrádavel, desgastante, incrustado de transtornos e humilhações frequentes. Pessoas submetidas a isso sonham em se livrar dessa condição comprando condução própria, com a qual engrossarão o trânsito agravando o problema, dificultando o deslocamento de todos. Amanhã será ainda pior. Poderíamos, a maioria de nós, mudar para o interior, para cidades pequenas, mas preferimos perder, dessa maneira incômoda, enormes parcelas do tempo que passamos despertos, somos estranhos.

Bem, talvez vivamos um imenso absurdo, talvez nossa vida diária não passe de um enorme contrassenso completamente injustificável, mas ao qual estamos inexoravelmente atados, incapazes de assumir as rédeas de nossas próprias vidas, de viver por nós mesmos. Talvez nos reste apenas rezar. Oremos para papai Noel, ou qualquer outro deus igualmente absurdo, para que tenha havido algum propósito em toda essa loucura. Tenha sido lá como foi, deuses sarcásticos que tenham arquitetado tamanho absurdo devem tê-lo feito com propósitos humorísticos, não vejo outro. Mas, se assim for, riamos em vez de orar, riamos de nossa própria tragicomédia, da bufoneria tresloucada, burlesca e absurda que protagonizamos diariamente. Melhor que o façamos com humor.