O samba que não ouço (por aqui, pelo menos)

Não sei, ao certo, se existe diferença entre ouvir e escutar. Na dúvida, consultei a mais poderosa "entidade" da Língua Portuguesa no Brasil (acredito eu): o dicionário Aurélio. Pelo que percebi, ambas querem dizer a mesma coisa, porém, para o contexto que preciso empregar o mais supostamente correto seria o ouvir.

Sendo assim, há muito tempo não ouço samba. Ou melhor, há muito tempo não ouço as rádios tocarem samba. Aliás, nunca ouvi! Pelo menos por aqui na região. Os mais hipócritas dirão: "estamos no Sul e samba não tem nada a ver com a nossa cultura!". Tudo bem, estamos no Sul. Mas antes de estarmos no Sul, estamos no Brasil. E o samba é a maior representação cultural desta terra.

Só pode ser o jabá. Sim, aquela velha prática, aquele péssimo jeitinho brasileiro, é que difama a nossa verdadeira arte (e não só o samba), a ligada às raízes, que tem história, que é ancestral. Só pode ser culpa desses malditos empresários que lançam mão de cifras consideráveis para subornar as rádios, a fim de divulgarem o trabalho de "novos artistas". De artista essa gente não tem nada! O que fazem é reciclagem de outros lixos culturais bem-sucedidos, infelizmente.

Voltando ao samba, é natural que as rádios não o toquem. São raras, escassas, aquelas programações que dedicam um espaço para mostrar o que é, de fato, brasileiríssimo da Silva. Não se ouve Jovelina Pérola Negra, Cartola, João Nogueira, Zé Kéti, Clara Nunes, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Candeia, Monarco, Donga, Ismael Silva, Ivone Lara, Paulinho da Viola, Leci Brandão, com ressalva ao nobre Zeca Pagodinho, que nesse jogo é exceção e não regra.

Mas você deve estar se perguntado: "por que é natural que as rádios não toquem samba?". Ora, a resposta é simples. Tão simples que em uma palavra defino-a: discriminação! Isso mesmo: discriminação. E não é nenhum factóide para polemizar. É a mera descrição da realidade. O samba antes era vítima de preconceito. Pudera: a sociedade era ignorante demais. Confundia macumba com ritual diabólico... E por aí vai. Tudo que emanava da cultura afro-brasileira era execrado. Com o samba, que sempre o vi como um acinte, um deboche, à dominação opressora e excludente da burguesia, não seria diferente. Samba era tido como contravenção, atentado à ordem pública, coisa de vagabundo. Ainda bem que nossos negros "livres do açoite da senzala, presos na miséria da favela" não deixaram a batucada ter sido silenciada. Enveredavam-se nos terreiros de umbanda e candomblé ou nos trens para rufar tambores, louvar a sagrada Aruanda, bater palmas, gingar os corpos e zombar da truculência dos "protetores da ordem social". Hoje, consagrado mundo afora, o samba não é mais um prato apreciado com um toque requintado de molho à moda preconceito. Restou agora a discriminação, segregação, divisão, marginalização, apartheid...

Para não ser injusto, é bom que se diga que algumas emissoras AM ainda tocam samba, principalmente nos domingos quando quase ninguém as ouve. Digo e repito: rádios AM, porque as FM o que tocam, sob, muitas vezes com rótulo de samba, é o tal pagode. Que me perdoem o menos puritanos, mas há diferença sim! Samba não tem nada a ver com o pagode contemporâneo. Pode até ser, concordo, que antigamente não havia diferença (nos tempos de Jovelina, por exemplo). Mas hoje, a voz do morro, a verdadeira voz do morro, não é o que os Jeitos, Inimigos, Moleques e afins fazem. Aliás, eles de certo nunca subiram o Borel, Rocinha, Salgueiro, Mangueira, Serrinha... Ou nunca estiveram em Madureira, Xerém, Vila Isabel, Estácio...

Só que com tanta adversidade, o samba resiste feito autêntico "negro forte e destemido", assim imortalizado nas palavras de Nelson Sargento. E vai, "inocente e pé no chão", vencendo a fúria de ventos contrários. Que assim seja. Saravá!

Willian dos Reis
Enviado por Willian dos Reis em 19/05/2007
Reeditado em 26/08/2007
Código do texto: T493608