Algumas considerações sobre fricção interétnica (Antropologia)

No contexto histórico em que ocorre a fundamentação e o estabelecimento da antropologia “no e do Brasil”, as condições sociais favoreceram o aparecimento do conceito de fricção interétnica. O conceito de fricção interétnica toma a questão indígena como motivação para se pensar a sociedade nacional, através da presença de algum modo “incômoda dos grupos tribais” (Roberto Cardoso de Oliveira), o índio era um indicador sociológico para aqueles que estudavam a sociedade nacional, seu processo expansionista e sua luta para o desenvolvimento, o estudo sobre os negros serviu ao mesmo propósito para Florestan Fernandes, a antropologia moderna no Brasil descende mais dos estudos de Florestan Fernandes sobre a integração do negro que das suas analises sobre os tupinambás (Peirano, 1981).

Concretizado no Brasil , o estudo do contato interétnico constituiu a contribuição mais original da antropologia feita no país. A transformação dessa preocupação em tema genuinamente acadêmico ocorreu nas décadas de 1950 e 1960 com os estudos de Darcy Ribeiro, que centrou seu objeto na direção do indigenismo que mais tarde recebeu uma espécie de polimento teórico de Roberto Cardoso de Oliveira com a noção de fricção interétnica; hoje os trabalhos têm continuidade nos estudos realizados por Pacheco de Oliveira sobre territorialização, Antonio Carlos de Souza e lima sobre o indigenismo como conjunto de ideais relativas à inserção de povos indígenas em estado nacional etc.

No entendimento do senso comum, fricção interétnica seria o “atrito” entre etnias diferentes, culturas diferentes, ocasionando a apropriação de práticas, conflitos e junções ora negativos ora positivos e até mesmo a ocorrência de conflitos identitários, sendo assim traços culturais passam de uma sociedade para outra, como nos “estudos de aculturação”, ou instituições e atores concretos (porém imaginados em termos de “papéis sociais”) atuam como mediadores de complexas relações de confronto entre grupos humanos que se concebem como culturalmente distintos (sem que lhes ocorra indagar o que significa este “culturalmente”) como nos estudos de fricção interétnica iniciados por Cardoso de Oliveira em 1962.

Mais do que um descaso pelas ricas etnografias dos grupos ameríndios disponíveis a partir dos anos de 1960 existe um descaso pelo que pensam os índios, de que modo eles concebem a distinção entre os grupos? Como eles entendem o modo como esse contato acontece? O que estas etnografias nos mostram é que a sociologia indígena é antes de tudo uma “fisiologia”, de modo que no lugar de “aculturação” ou “fricção”, o que se tem é transubstanciação, metamorfose. Existem também relatos da apropriação dos símbolos cristãos por xamãs nativos, sendo os mais famosos os referentes aos Tupinambás seiscentistas.

Do mesmo modo que os missionários usavam algumas premissas do discurso dos xamãs – profetas, prometendo o fim dos males com a conversão, esses xamãs apropriavam-se do discurso dos padres e afirmavam estar em contato direto com Deus (Viveiros de Castro, 1992, pp. 33-34). Essa incorporação de símbolos e praticas cristãs pelos xamãs nativos é freqüente em movimentos messiânicos, como os que ocorreram no alto do rio Negro, descritos por Hugh – Jones e Wright.

É bem documentado também o movimento no sentido inverso, ou seja, da apropriação de práticas xamânicas nativas pela população cabocla. Viveiros de Castro retomou a questão da corporalidade ameríndia a procura de uma nova síntese e desenvolveu a sua teoria do perspectivismo ou multinaturalismo.De acordo com este autor, para diversos povos ameríndios:

“O mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não- humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos, relacionados aos seus opostos”.(Viveiros de Castro, 1996, p.115).

A noção de que o contato entre duas ou mais etnias assume um caráter sistêmico a partir de um certo momento, estruturalmente determinado, constitui a base do modelo, ou seja, o sistema interétnico começa a se constituir a partir do momento em que se cria uma certa interdependência entre os grupos étnicos em contato e se cristaliza quando tal interdependência se torna irreversível.Essa cristalização, não significa um estado estático do sistema, pelo contrário; o sistema interétnico é um corpus sócio cultural em movimento permanente: mesmo que incompatibilidades ou conflitos internos ao sistema interétnico não se manifestem é justo aceitar que estejam em estado latente.

A fricção interétnica estando freqüentemente em estado latente, manifesta-se por meio de estágios ou capítulos, isto porque os mecanismos que levaram a constituição do sistema interétnico continuam em plena vigência e operação: os interesses diretamente opostos que unem os grupos étnicos em contato, como os que se exprimem na dependência do índio dos recursos materiais postos ao seu alcance pelo “alienígena”, membro da sociedade nacional ambiente; e da dependência deste ultimo de recursos postos ao seu alcance pelo índio : o índio oferecendo matéria prima onde se inclui a terra ou a mão de obra e o “civilizado” oferecendo bens manufaturados.

Para o estudo do índio e de sua situação de fricção, essa sua dependência, que também retrata uma interdependência índio/branco, tem um poder explicativo especial por estar voltada para a satisfação de necessidades que não existiam antes do contato interétnico. Satisfeitas estas necessidades, o grupo indígena fica preso à sociedade tecnicamente mais poderosa; esta, por sua vez, tendo investido seus recursos nos territórios indígenas, deles também não pode abrir mão.Uma definição de Roberto Cardoso de Oliveira para fricção interétnica:

“Chamamos de ”fricção interétnica” o contato entre grupos tribais e segmentos da sociedade brasileira, caracterizados por seus aspectos competitivos e, na maioria das vezes, conflituais, assumindo esse contato muitas vezes em proporções “totais”, envolvendo toda a conduta tribal e não tribal que passa a ser moldada pela situação de fricção interétnica. Entretanto, essa “situação” pode apresentar as mais variadas configurações (...) Desse modo, de conformidade com a natureza sócio econômica das frentes de expansão da sociedade brasileira, as situações de fricção apresentarão aspectos específicos”.

A noção de fricção interétnica traduziria enfim, as relações de produção e de exploração econômica impostas pelas “frentes de expansão” (extrativa, agrícola, pastoril), que se singularizavam ao sabor de fatores tanto históricos como estruturais (p.87). A mudança metodológica, deste modo , revela-se sobretudo na ênfase posta pela situação de contato, a ser percebida como uma “totalidade sincrética”: “duas populações dialeticamente “unificadas” através de interesses inteiramente opostos, ainda que interdependentes, por mais paradoxal que pareça”.(p.85-86)

Referências

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. 1960. O processo de assimilação dos Terêna. Rio de Janeiro: Coleção Museu Nacional.

__________. 1964. O índio e o mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Européia do Livro.

__________. 1971. "Identidad étnica, identificación y manipulación". América Indígena, 31(4):923-53. I

__________. 1976. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira.

__________. 1995. "Identidade catalã e ideologia étnica". Mana – Estudos de Antropologia Social, 1(1).

__________. 1998. O trabalho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Editora Unesp.

__________. 2002. Os diários e suas margens: viagem aos territórios Terêna e Tükúna. Brasília: Editora UnB, Fundação Biblioteca Nacional. __________ & CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. 1996. Ensaios antropológicos sobre moral e ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

PEIRANO, Mariza. 1981. The anthropology of anthropology: the Brazilian case. PhD Thesis, Harvard University.

_____ . 1987. “A Índia das Aldeias e a Índia das Castas”. Dados, 30(1):109‑122.

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______. 1992a. Uma antropologia no plural: três experiências contemporâneas. Brasília: Ed. UnB.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. (1992), “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem”. Revista de Antropologia, 35: 21-74.

__________. (1996), “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 2(2): 115-43

__________. (1999), “Etnologia brasileira”, in Sergio Miceli (org.), O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). Antropologia (vol. I), São Paulo, Editora Sumaré/Anpocs/CAPES.

Bianca Wild
Enviado por Bianca Wild em 23/05/2007
Reeditado em 09/05/2019
Código do texto: T498022
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